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segunda-feira, 1 de maio de 2023

A Virgínia da Bretanha (crónica de Alfredo da Ponte)

 


A Virgínia da Bretanha

Num destes dias tive de ir ao Wall Mart, um pouco antes das oito da manhã. Estas conveniências de comércio aberto a balançar com os nossos horários de trabalho simplificam-nos a vida, de tal maneira que, se algum dia há um desequilíbrio neste sistema, para muita gente será uma visão do fim do mundo. Uma adaptação que muitas vezes não damos o devido valor. Graças a estas vantagens, quem não gosta de estragar tempo, segue as regras do ditado: “É de manhã que começa o dia”.

Ao entrar na loja deparei-me com a Virgínia, que vinha a sair com dois sacos de compras. Reconheci-a, claro! Mas, ao que parece, ela reconheceu-me muito mais, por ter naquela altura o meu nome debaixo da língua, e soltá-lo a bom som, mesmo ainda quando se encontrava a cerca de dez metros de distância de mim.

- Eh, Alfredo, há que anos eu não te vejo!...

- Sra. Virgínia, sempre nova!... Parece uma rapariga de vinte anos...

- Eh, hóme, isto já não é o que era...

- A mim, parece-me, que além do que era é muito mais.

Uma gargalhada dos dois lados, que durou a caminhada de ambos até ficarem frente-a-frente. Nisto, ela deixou o solo segurar os sacos, e no mesmo instante me atirou seus braços, lançando-os à minha volta.

Não resisti. Tive de fazer o mesmo. Apertou-me com metade da sua força, e o abraço demorou perto de dez segundos - o tempo suficiente para me deixar sem jeito, num espaço onde todos passam, e que sem fazer caso, toda a gente vê. Ninguém fala, mas português critica, e faz enredos.

-Os teus pequenos estão bons? Credo, já devem estar tão grandes!... a tua mulher, também...

Que sim, respondi. Perguntei-lhe pelo marido, e ela, então, contou-me que o seu companheiro havia partido deste mundo, há pouco mais de dez anos.

Lamentei, fazendo os gestos de dor, tentando mostrar a cara triste, enfim: usando aquelas expressões que devemos apresentar em momentos como aquele.

Reviveu comigo aquele dia triste, em pouco mais de um minuto; e enquanto ela falava, apreciei-a de alto a baixo sem más intenções.

Terá sido impressão minha, ou a Virgínia, realmente, não envelheceu. Tem oitenta e seis anos, com os dentes todos que Deus lhe deu. Na cabeça, o tom doirado domina de longe a cabeleira rija e farta, e as rugas ainda hesitam quando pensam em atacar-lhe. É uma sortuda.

A Virgínia é de estatura pequena, mas muito viva. Sempre assim foi. Impunha respeito aos colegas de trabalho, e seria capaz de lançar um soco, ou uma punhada, sopapos ou pontapés, fosse a quem fosse, sem avisar.

Na sua Bretanha, em São Miguel, era campesina. Por isso, na América sempre cuidou do seu quintal nas horas vagas, tirando dele a mais variada colheita de frutas e vegetais.

Por sua vez, o marido, por aquilo que ela me dizia, há pouco mais de vinte e cinco anos, cuidava das lides domésticas. Porque se reformara aos cinquenta e tal, estava em casa à espera da terceira idade da mulher para lhe fazer companhia. Embora estivesse a tomar conta da casa, era ele quem vestia as calças, porque a Virgínia só usou saias toda a vida. É de realçar o fato das calças do Manuel andarem sempre bem seguras ao corpo, porque para além de usar cinto, ele não saía à porta da rua sem lhe acrescentar os suspensórios.

Nas horas vagas, quando as lides caseiras estavam adiantadas, o Manuel dedicava-se à leitura. Gostava muito de ler, sem nunca lamentar a pouca escola que teve. Possuía em casa uns dez livros, e já os havia devorado várias vezes, porque não tinha mais nada para ler. Até as publicações semanais de O Jornal, em cada semana era lidas duas ou três vezes.

Quando a Virgínia me contou isto, eu prometi oferecer-lhe alguns livrinhos. Daqueles que já não me faziam falta.

Dito e feito. Uns dias depois entreguei à Virgínia cerca de uma dúzia. O marido consolou-se, e a alegria dele, descrita pela esposa, foi como se estivesse nas ilhas, naquele tempo, recebendo uma saca de roupa da América, com “candins” e tudo. Não se fartou de agradecer.

Agarrou-se, com unhas e dentes, pelo menos por uma semana, ao trabalho do Dr. Mário Moura, intitulado “Os moinhos da ribeira Grande”. Depois, chegou ao meu conhecimento que ele queria ter uma conversa comigo, para falarmos de levadas, rodizes, eixos, pedras, milhos e farinhas. Tudo fiz para que esta reunião não se realizasse. Será que ele pensava que eu era moleiro? Moleiro, não; fuseiro, sim, com todo o gosto. Com muitas graças a Deus, livrei-me da conversa das mós.

O Manuel quando era rapazote brincou muitas vezes nos arredores do moinho de vento do Pico Vermelho, na Ajuda da Bretanha. Aquele que há poucos anos foi restaurado e, como hoje se vê, faz-nos lembrar do Moulin Rouge de Paris, pelas suas cores, claro; onde predomina o vermelho em cima do branco. Já, agora, podiam adicionar-lhe o azul. Ás velas, talvez. É que se formos a aprofundar as coisas vamos acabar ao lado da teoria que defende que as raízes dos bretões micaelenses vieram da Bretanha francesa; e os inhames de Portugal Continental, que sendo também raízes, foram os portugueses que ensinaram os bretões a cultivar.

Com cinquenta e tal anos de América, a Virgínia só foi aos Açores uma vez, e diz à boca-cheia que não tem saudades nenhumas. Para ela pouco importa se a Ajuda e o Pilar são outras duas freguesias independentes, tal como já eram os Remédios desde 1960. Para ela tudo isto é, e sempre há-de ser, a Bretanha. João Bom também está lá metido. Porque é João Bom. Se fosse João Mau, haveria de ficar para os lados de Rabo de Peixe.

O Manuel vê a coisa de maneira diferente. Nas três vezes que lá foi, sozinho, descuidou-se das datas de regresso, e as viagens de retorno lhe saíram muito mais caras.  

Numa daquelas vezes em que lá se encontrava, um amigo convidou-o a ir ao mercado das rezes, na Ribeira Grande, num domingo de manhã. Isto, lá pelos finais da década de setenta.

Aceitando, com todo o gosto, o homem ficou maravilhado com o movimento do mercado agrícola, pelas seis da manhã, devido ao alvoroço das gentes e com os altos pregões dos vendedores. Porém, o que mais o impressionou foi que dali a pouco mais de meia hora já estava tudo calmo!

Dali, da praça, atravessaram a rua e foram ao mercado dos porcos. Outro alvoroço. Um endoidecimento.

O amigo do Manuel comprou quatro leitões. Quatro “marrãos do norte”, como se dizia; e o Manuel fez questão de comprar um. Todo pretinho, menos as orelhas e a rabiça, que era pequena. Se a Virgínia soubesse, fazia um grande leilão, e dava-lhe com o marrão pela cara, até lhe partir o nariz!

Dali, foram à loja do Amâncio, às favas. Meiozinho de vinho a cada um, e um prato de favas para os dois.

Marrãos para baixo, marrãos para cima. Estando mais calmo, Manuel pensou que não poderia trazer o porquinho para a América. Mas era tão riquinho, e desejava que não lhe acontecesse mal nenhum. Por isso decidiu oferecê-lo ao amigo, que já tinha quatro.

Afinal, como eram todos irmãos, deviam crescer juntos. Bendita porca foi aquela de Água de Pau, que fez questão de furar o Pico para ir à Ribeira Grande – a terra das oportunidades.

Para não perdermos mais tempo com esta estória, importa-nos deixar claro que estes descuidos do Manuel da Bretanha eram causados pelos frequentes ataques da saudade. Se a Virgínia não fosse capaz de controlar a situação em cada momento de desastre, o Manuel teria perdido o sentido da vida, há muitos, muitos anos.

Duas semanas depois de eu ter entregue os livros à Virgínia, num daqueles dias, ela chegou ao trabalho maldisposta.

Perguntei-lhe se estava tudo nos conformes. Ela olhou para mim furiosa, e avançou na minha direção com ar de guerreira. Inspirou fundo, e despregou-se com esta conversa:

- Tu, nunca mais me tragas livros p’ró meu home!... Ele mete-se a ler o dia todo, e as coisas de casa ficam por fazer... Eu tive uma briga com ele por causa disso...

Eis mais um exemplo de como um benfeitor se transforma em culpado de certos dramas familiares.

Condenei-me, então, a mim mesmo, e fiz todo o possível para a Virgínia soltar um sorriso. Pregou-me um empurrão, e desatou à gargalhada. Viva! A Virgínia estava de volta!

Nestes escassos minutos do reencontro com a Virgínia vieram tantas recordações à mente. Se eu tivesse dado fio à meada teria várias horas de conversa que me trariam anos de boas recordações. Mas como o tempo é marcante e cada segundo conta, tive de pôr termo ao diálogo, com a desculpa de ter que ir trabalhar.

A verdade é que estes escassos minutos, que nem chegaram a quatro, trouxeram-me um pouco de felicidade para o dia todo. Talvez nem a própria conversa tenha sido a responsável, ficando em seu lugar o primeiro sorriso, ou a gaitada. A festa da Virgínia. Sim, foi isso:

A festa que a Virgínia fez quando me viu proporcionou-me um dia feliz.

Haja saúde!

 

Os inhames da Bretanha
Regalam o coração,
Alegram quem os apanha,
Fazem boa refeição!

No teu moinho de vento
Do milho se fez farinha.
Porque o pão era o sustento
Da nossa humilde casinha.

Os inhames e as batatas,
Quando está o tempo fresco
Valem as mesmas patacas,
São do mesmo parentesco.

 

Crónica de Alfredo da Ponte (EUA).

Diário dos Açores, 11-04-2023

 


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