“Sou negra – MAS bela”? - Não!
(A propósito dos episódios de racismo desta semana que envergonham toda a
raça humana)
O nome – ainda que não o punho – de Salomão foi
responsável por aquele que pode ser considerado o brinde-surpresa da Bíblia: o
facto de, neste heteróclito e tantas vezes contraditório conjunto de livros (de
épocas e autorias muito diversas) sobre a história da relação dos judeus com
Jeová, se encontrar lá no meio uma pequena antologia de versos eróticos de que
Jeová está totalmente ausente.
O motivo que justificou a inclusão desta antologia
erótica no Antigo Testamento foi a atribuição da sua autoria ao rei Salomão. Na
versão grega do Antigo Testamento, o título afirma-se como “Cântico dos
Cânticos, que é de Salomão” e o nome do filho de David surge, com efeito, no
interior do texto; de tal forma, aliás, que não é impossível experimentarmos a
ilusão de ser o próprio rei a enunciar alguns dos versos emitidos por uma boca
masculina, em resposta a outros versos claramente enunciados por uma mulher. No
entanto, tal como no caso do livro de Sabedoria (também falsamente atribuído a
Salomão), questões de cronologia tornam impossível a aceitação de que tenha
sido o grande rei judeu a compor este conjunto de versos desgarrados em que um
noivo e uma noiva antevêem (e, a dada altura, parecem gozar) as delícias do
leito conjugal.
Excluída a possibilidade da autoria salomónica, fica
então a pergunta: o que fazer deste pequeno livro, no seio da austera Bíblia,
livrinho esse cujo tema é sintetizado pela palavra “sexo”? Porque com ou sem a
assinatura de Salomão, o conteúdo do livro é inescapável: é uma antologia de
versos eróticos.
Confrontados com a necessidade de explicar a razão da
existência do Cântico dos Cânticos, exegetas bíblicos de todas as épocas e
quadrantes (judeus, católicos, ortodoxos, protestantes, etc.) desenvolveram uma
artilharia de interpretações metafóricas do Cântico, através das quais
procuraram fazer-nos ver que não é de sexo entre um casal humano que aqui se
trata, mas do amor de Deus (o “noivo”) ou de Jesus por uma noiva que pode ser o
povo eleito, a igreja católica ou até a Virgem Maria. A liturgia das Vésperas
Marianas inclui trechos do Cântico dos Cânticos, como “Pulchra es, amica mea”
(“És bela, minha amiga”), e – surpreendentemente – os versos do primeiro
capítulo deste livrinho que começam “Nigra sum – sed formosa” (“Sou negra – mas
bela”, Cântico dos Cânticos 1: 5).
Esta voz feminina que aqui nos fala descrevendo-se
como negra (“mas” bela) sugere um caminho de reflexão bem interessante. Porquê
o “mas”? Que surge tanto na tradução portuguesa da Bíblia dos Capuchinhos, como
na consagrada tradução latina da Vulgata? Na versão grega do Antigo Testamento,
a noiva do Cântico dos Cânticos diz de si própria “sou negra e bela” (μέλαινά εἰμι καὶ καλή). Segundo o comentário ao Cântico de Othmar Keel, também é nessa linha que devemos entender o original hebraico
(e por isso o ilustre teólogo suíço traduz “schwarz bin ich und anziehend”).
São Jerónimo, autor da tradução latina, deve ter sentido a necessidade de pôr
uma desculpa na boca da Sulamita (como a noiva é designada no capítulo 7 do
Cântico) por ser negra, levando-a a afirmar que era bela apesar de ser negra.
Os tradutores da Bíblia dos Capuchinhos mantêm espantosamente o “mas”,
mitigando-o por meio da alteração de “negra” para “morena”: “Sou morena, mas
formosa... não estranheis eu ser morena: foi o sol que me queimou...” Tanto em
hebraico, em grego como em latim, a noiva é claramente negra. Não há volta a
dar.
E o noivo – surpresa! – é branco. “O meu amado é alvo
e rosado”, canta a noiva negra (5: 10); o ventre dele é da cor de marfim (5:
14); as pernas são “pilares de alabastro” (5: 15). Além de ser uma antologia de
versos eróticos incrustada no meio da Bíblia, o Cântico dos Cânticos celebra
aquilo que, ainda nos anos 60 do século passado, era proibido no chamado Bible
Belt dos EUA: um casamento “misto”. Ainda bem que, “no fundo”, se trata de um
texto altamente alegórico que nada tem que ver com aquilo que ostensivamente se
lê no próprio texto... Ainda bem que é tudo sobre (os nunca mencionados) Jeová
ou Jesus ou Maria ou a Igreja... É que ler o Cântico dos Cânticos de forma
literal e simplista seria decerto muito redutor! É melhor dizermo-nos que os
peitos referidos (8: 10) não são peitos, mas símbolos de realidades
místico-divinas. Contudo, temos o direito de ser selectivos com a aplicação
destas leituras alegóricas, pois por vezes é mais aconselhável ler o texto à
letra! É claro que o noivo a entrar no “seu jardim” para “colher lírios” no
“canteiro dos aromas” (6: 2) só designa mesmo actividades hortícolas...
Sarcasmo à parte (e perdoem-me todos aqueles que
perfilham a ideia de que o Cântico dos Cânticos é o grande texto religioso
sobre o amor místico de Deus): como são belos os versos desta extraordinária
antologia erótica; versos para os quais a filologia bíblica contemporânea
encontra paralelos expressivos em tantas outras literaturas de territórios
próximos de Israel (mormente o Egipto antigo e helenístico). Quão belos são os
versos que nos dizem “forte como a morte é o amor; implacável como o abismo é a
paixão” (8: 6). Como é verdade, meu Deus, que não há fortuna no mundo que possa
comprar o amor (8: 7). E como é mais verdade ainda que se identifica o
verdadeiro amor por ser aquele que, simplesmente, é portador da paz (8:10).
#RacismoNão #viniciusjunior #Bíblia #teologia
Crónica de Frederico
Lourenço, «Sou negra – MAS bela? - Não!» in https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco,
28-05-2023
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Orfeu Negro ou Orfeu do Carnaval, Marcel Camus, Brasil,
Itália, 1959 |
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