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quinta-feira, 25 de abril de 2024

25 de Abril: 50 anos | Camões: 500 anos


 

Há 100 anos, celebrou-se em Portugal o 4.º centenário de Luís de Camões. Foi estreada na Faculdade de Letras de Lisboa uma nova cadeira, chamada Estudos Camonianos. Na aula inaugural, o Prof. José Maria Rodrigues sintetizou desta maneira a razão de lermos o maior poeta de Portugal:

«Estudemos "Os Lusíadas", para neles haurirmos o mesmo estímulo que impulsionou o Poeta a escrevê-los; debruçados sobre as suas estâncias, compenetremo-nos bem do nosso glorioso passado e sentiremos pulsar em nós uma alma nova, um desejo ardente de vermos respeitado e engrandecido o nome português, de vermos novamente esboçar-se um Portugal maior.»

Lidas no ano em que celebramos o 5.º centenário de Camões, as palavras deste professor e padre católico deixam-nos uma sensação estranha. O que é isso, «um Portugal maior?» A terminologia faz-nos pensar hoje no horrível Donald Trump e no seu slogan «Make America Great Again».

Poucos anos depois da lição inaugural de José Maria Rodrigues, Portugal passaria a ser dominado (e sê-lo-ia durante 48 anos) pela ditadura salazarista. Na vizinha Espanha, surgiu Franco; em Itália, já surgira Mussolini. A União Soviética e a China estavam mergulhadas nas trevas de regimes totalitários. Quanto ao nazismo, nascia por volta desta altura: a lição de José Maria Rodrigues foi proferida na Faculdade de Letras de Lisboa em 1924, mas foi publicada (em Coimbra, curiosamente) em 1925, o ano da publicação de «Mein Kampf» de Adolf Hitler.

Deu-se a 2.ª Guerra Mundial, seguida pela Guerra Fria. E, em Fevereiro de 1961, começou a Guerra Colonial Portuguesa, que durou até ao 25 de Abril de 1974. O povo português que, em séculos anteriores, investira na escravização de africanos no comércio negreiro tinha passado agora a assumir a missão de matar africanos. Em nome de «um Portugal maior».

A liberdade que o 25 de Abril nos trouxe há 50 anos permite-nos afirmar sem medo que o maior argumento contra esse «Portugal maior» são os crimes contra a humanidade que foram necessários para o conseguir: o comércio negreiro, a exploração desumana do Brasil e de outras colónias, o terror religioso da Inquisição. E, como se esse passado deprimente não bastasse, a ditadura fascista de Salazar ainda obrigou a geração do meu pai a envolver-se, contra os ditames da sua consciência de católico progressista, numa guerra colonial. O serviço militar que o meu pai cumpriu na guerra em Angola foi um trauma que o marcou para toda a vida. Participar, obrigado, na matança de angolanos deixou sequelas de que ele nunca se curou. Vale a pena, esse «Portugal maior»?

Dir-se-á que essa é, justamente, a ideia de Portugal que Camões defende n'«Os Lusíadas». Mas há muito que foram identificados (por António José Saraiva, Helder Macedo e outros) os elementos deste poema complexo e subtil, os quais nos levam a perceber que Camões nos apresenta, n' «Os Lusíadas», duas faces da mesma moeda: uma face é a «glória» do império português; a outra face é o custo humano que ele implica.

Não podemos esperar de Camões, como é óbvio, que ele escrevesse no século XVI como um professor de Estudos Pós-Coloniais numa universidade contemporânea. Camões foi um homem do seu tempo, que trabalhou com os conceitos vigentes na época em que viveu. Mas se lermos «Os Lusíadas» tomando como guia os estudos de António José Saraiva e de Helder Macedo (há também o livro um pouco simplista, embora bem intencionado, de José Madeira, «Camões contra a Expansão e o Império», 2000), veremos que, afinal, a epopeia camoniana não é aquilo que o Portugal de Salazar quis ver nela.

Camões compôs uma epopeia polifónica, em que várias vozes têm lugar de fala. Temos de ouvir todas as vozes, porque é a sua soma que nos traz a voz do próprio Luís de Camões. Quando o Velho do Restelo chama os bois pelos nomes e recusa a resignificação como «esforço e valentia» da «bruta crueza e feridade» das conquistas portuguesas (Lusíadas 4.99), temos de perceber - como António José Saraiva percebeu tão bem - que o Velho do Restelo também é Camões.

Camões coloca o contraditório da mensagem imperialista na boca de várias personagens, mas acima de tudo temos de ler com atenção os muitos desabafos n'«Os Lusíadas» escritos na voz do próprio cantor épico: é nesses desabafos que intuímos quanto Camões estava lúcido no tocante à realidade do imperialismo português.

Cada vez mais me convenço disto: se lermos «Os Lusíadas» com olhos para as atitudes diferenciadas que Camões adopta na abordagem ao fenómeno «Portugal», veremos que a sua intenção não foi de propor um «Portugal maior» (como disse José Maria Rodrigues), mas sim um Portugal MELHOR.

Viva o 25 de Abril! Y

 

25 de Abril: 50 anos | Camões: 500 anos”, Frederico Lourenço, Coimbra, 24-04-2024

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