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domingo, 7 de julho de 2024

Desfado, Ana Moura e Pedro da Silva Martins


 

DESFADO

Quer o destino que eu não creia no destino
E o meu fado é nem ter fado nenhum
Cantá-lo bem
sem sequer o ter sentido
Senti-lo como ninguém,
mas não ter sentido algum

Ai que tristeza, esta minha alegria
Ai que alegria, esta tão grande tristeza
Esperar que um dia
eu não espere mais um dia
Por aquele que nunca vem
e que aqui esteve presente

Ai que saudade que eu tenho de ter saudade
saudades de ter alguém que aqui está e não existe
Sentir-me triste só por me sentir tão bem
E alegre sentir-me bem só por eu andar tão triste

Ai se eu pudesse não cantar «ai se eu pudesse»
e lamentasse não ter mais nenhum lamento
Talvez ouvisse
no silêncio que fizesse
uma voz que fosse minha
cantar alguém cá dentro

Ai que desgraça esta sorte que me assiste
Ai mas que sorte eu viver tão desgraçada
Na incerteza
que nada mais certo existe
além da grande incerteza
de não estar certa de nada

Ai que saudade que eu tenho de ter saudade
saudades de ter alguém que aqui está e não existe
Sentir-me triste só por me sentir tão bem
E alegre sentir-me bem só por eu andar tão triste

 

Ana Moura, in Desfado. Letra e música de Pedro da Silva Martins

 

"Desfado", escrito por Pedro da Silva Martins e interpretado por Ana Moura, é um poema que subverte a tradição do fado português, oferecendo uma reflexão metalinguística sobre o próprio conceito de destino e saudade. Este texto não apenas celebra a ambivalência emocional característica do fado, mas também questiona e desconstrói as noções de destino, tristeza e alegria.

Desde o início, o poema estabelece uma relação paradoxal com o destino: "Quer o destino que eu não creia no destino / E o meu fado é nem ter fado nenhum". A palavra "fado" aqui carrega uma dupla conotação, referindo-se tanto ao destino inevitável quanto ao género musical tradicional. A negação do destino — ou a ideia de ter um fado "sem sentido algum" — desafia a fatalidade típica do fado, abrindo espaço para uma abordagem mais pessoal e subjetiva da existência.

O poema prossegue com uma exploração profunda da dualidade emocional: "Ai que tristeza, esta minha alegria / Ai que alegria, esta tão grande tristeza". Esta ambiguidade emocional é central ao fado, mas aqui é elevada a um novo nível de introspeção. A justaposição de alegria e tristeza cria uma tensão que revela a complexidade das emoções, refletindo a incerteza e a instabilidade da vida.

A saudade, um tema recorrente no fado, é abordada de maneira inovadora: "Ai que saudade que eu tenho de ter saudade / saudades de ter alguém que aqui está e não existe". A saudade de uma ausência presente sugere uma nostalgia paradoxal, onde o sujeito lírico anseia por uma ligação com alguém que nunca esteve verdadeiramente presente. Este sentimento de ausência dentro da presença destaca a fragilidade das relações e a constante busca por significado.

Uma das características mais marcantes do poema é a sua reflexão sobre o próprio ato de cantar o fado: "Ai se eu pudesse não cantar 'ai se eu pudesse' / e lamentasse não ter mais nenhum lamento". Esta autocrítica sugere um desejo de transcender as limitações do gênero e encontrar uma voz autêntica dentro do silêncio. A voz que "fosse minha" representa a busca por uma identidade própria, distinta das tradições impostas.

O poema conclui com uma meditação sobre a incerteza: "Na incerteza / que nada mais certo existe / além da grande incerteza / de não estar certa de nada". Este reconhecimento da incerteza como a única certeza da vida reflete um profundo existencialismo. A aceitação da incerteza não é apenas uma resignação, mas uma afirmação da liberdade individual e da complexidade da experiência humana.


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