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| Saudades do Faial, Facebook, 12-10-2024 |
UMA ILHA SÓ DELA
[…]
A Horta, cidade com o seu nome, na ilha que
julgava ser dela, entra-lhe no sangue para todo o sempre.
Teresa criou o hábito, que ainda mantém, de verificar o boletim
meteorológico da ilha. Prometeu voltar, não sabe se o fará.
Há um episódio que permanece intacto. Existe uma
estátua do infante Dom Henrique perto da estrada e, depois,
um jardim com muitas árvores. Do parapeito de um miradouro
chegava-lhe o mar hipnotizante. Camila pegava em Teresinha ao colo para verem aquele
oceano, agressivo, e a ilha do Pico, que Teresinha acreditava – ainda hoje o mantém
– ser o lugar onde viviam as feiticeiras e bruxas. Estava convencida
disso e dizia à avó: «Não vês as bruxas?» E ela respondia: «Acho que vejo uma sombra.»
O que a fascinava, e que ela observava sem sossego, eram os anéis de nuvens sucessivos,
a adornar a ilha, a escondê-la e a descobri-la, numa dança permanente que a menina considerava
ser só para si. «Às vezes, penso que talvez
seja a razão para esta
minha paixão por anéis, nunca entendi
exactamente. A minha
mãe usava anéis, o Pico tinha anéis, eu
uso-os em quase todos
os dedos da mão.»
Camila, nesse dia, levou as meninas para um passeio,
para as tirar da frente de Carlota. Teresinha carregava
consigo um livro da colecção Manecas. Belinha estava irrequieta,
brincava a subir e descer o banco de jardim. Chilinha mantinha-se
bem tapada no carrinho de bebé. Teresinha, perturbada
com o vaivém da irmã, resolveu afastar-se e a avó chamou-a: «Teresinha, volta para aqui.»
Regressou ao banco e, assim que se sentou, o
banco descaiu para
o precipício, em direcção ao oceano. Camila
ficou em pânico, Belinha
não parava de se mexer e Teresinha
percebeu que aquilo
que as prendia eram cabos de aço. Deu-se
um deslizar contínuo
que era acompanhado por gritos – eram
as pessoas que estavam
por ali, que assomaram para ver, «Pousei os olhos no Atlântico e fiquei apaixonada.
Estava tudo ali, aquela magia; ia em direcção àquilo sem medo.»
Camila não gritava, não chorava. Em aflição silenciosa,
temtava passar a neta para os braços de alguém. A memória
fixará uma imensa lentidão associada à queda e um barulho
desconexo. Camila consegue empurrar o carro de Chilinha
para longe, mantém-se no banco com as outras duas netas.
Belinha insistia em pular, Camila mantinha-a agarrada pelo
pulso. Juntaram-se algumas pessoas. «Conseguiram agarrar-me debaixo dos
braços. Entendi esse agarrar como se fosse um sítio de obscuridade.
Tudo o resto estava sem mácula, a ilha, o mar
e eu, maravilhada.
Não me teria importado de ter ficado por lá
perdida.» Teresinha
foi puxada até estar com os pés bem assentes na terra, depois, no último minuto,
Camila foi salva. Já estava pendurada no vazio. Teresinha fitou-a, aterrorizada. «O que recordo
são as pessoas a olharem para um buraco e
depois surgir a minha
avó.» Nesse instante, em que as três já
estavam a salvo, em
que o susto já passara, as pessoas vociferavam e começavam a caminhar na direcção
de um homem que não se tinha aproximado. Gritavam com ele, chamavam-lhe nomes, acusavam-no
e, por fim, batiam-lhe. «Era um desgraçado de um judeu alemão que tinha procurado
refúgio na ilha E as pessoas pensaram que era ele o culpado do
que tinha acontecido. Era preciso culpar alguém e o judeu estava ali à mão. Diziam: «Ele
é culpado de tudo!”»
Jorge Horta, que tinha sido prevenido do que se
tinha passado, chegou esbaforido do hospital, perdido de medo – estariam a mãe bem?
E as filhas? Deparou-se com as acusações e os
maus-tratos e tentou
impedir as pessoas de continuarem a culpar quem não poderia ter culpa. Teresinha
repetiu: «Ele não teve culpa, o senhor não teve culpa.» O pai, a
tentar salvar o senhor, gritava que tudo aquilo era um disparate.
Era médico, as pessoas conheciam-no e respeitavam-no, rapidamente
aquele tumulto terminou. De volta a casa, o evento foi
relatado e repetido várias vezes. Carlota pediu pormenores, Jorge ouviu, atento. «Tive
consciência, pela primeira vez, de que havia uma
guerra e que as pessoas
podiam ser acusadas; de que alguém
tinha “a culpa da guerra”,
a culpa que derivava de ter fugido da
guerra.»
Décadas mais tarde, no livro Meninas, a
Teresa-escritora sítio
escreverá sobre este
episódio. O conto chama-se «Ondas» e é
também uma homenagem
a Virginia Woolf, que se suicidou no
ano em que Teresinha
poderia ter sido arrastada até ao mar, sem
destino seguro. No
conto, lê-se:
«Lembro-me da queda e também de
não ter sentido nenhum desassossego, primeiro aturdida e logo sufocada
de maravilhamento diante do esplendor, enquanto ela durou no sentido das ondas, comigo
perfeitamente imóvel no centro da voragem.
O rugido do mar a tornar-me
surda para os gritos da minha
avó de pé a meu lado
gesticulando, e para o cada vez mais
longínquo choro da
minha irmã, que ficara do lado de fora do
buraco lá no alto,
de onde pouco a pouco nos íamos distanciando» (HORTA, Maria Teresa,
Meninas, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2014).
A ilha que torturava Carlota era o lugar encantado
de Teresinha. Nunca dirá o Faial, falará sempre da Horta, essa terra que treme. Para
Teresinha, os pequenos tremores eram momentos de maravilhamento. Na sala de jantar,
existia um armário de madeira com portas de vidro, um quadriculado
de vidrinhos. Lá dentro, estavam as loiças mais bonitas, expostas
e por usar. Na parte superior, presas por pequenos camarões
de ferro, perfilavam-se as chávenas de chá Vista Alegre.
Tudo aquilo tilintava sempre que havia um tremor de terra.
Teresinha não sabia porquê, mas achava graça. O que é um tremor
de terra? Achava a possibilidade de a terra estremecer um
gesto lindo. Certa vez, adulta, a viver em Lisboa, estava ao
telefone com o escritor José Cardoso Pires e deu-se um tremor
de terra. O escritor fugiu para a rua, apavorado com a possibilidade
de o
tecto lhe cair em cima da cabeça. Teresa ficou especada com o telefone na
mão, não percebeu o medo que o amigo sentiu. Mais
tarde, Cardoso Pires
voltou a telefonar e perguntou: «Não sentiste o tremor de terra?» Teresa respondeu-lhe
que sim, acrescentando: «Mas que mal tem um tremor de terra?», Para ela era algo encantatório,
fazia com que as chávenas brincassem umas
com as outras.
Era impossível não viver os grandes acontecimentos
da ilha. Um deles seria motivo de notícia e pelas piores
razões. No dia 13 de Junho de 1942, nas oficinas da Fayal Coal,
junto ao Largo Doutor Manuel de Arriaga, ocorreu uma explosão
violenta que se fez sentir em toda a Horta. Destruiu o edifício
da Fayal Coal e alguma envolvente. O barulho foi tremendo, Carlota
assomou à janela, Teresinha alcançou a cadeira mais próxima, trepou e foi ver o
que acontecera lá fora. Queria saber a razão do
barulho. Quando chegou
ao parapeito, uma parte da ilha parecia ter desaparecido, só se via fumo. Numa janela,
ao lado daquela onde estava, viu um dedo de um homem com
um anel, um dedo que resultava da explosão. «Nunca mais
me esqueci disto. Foi misterioso, porque ninguém explicava
nada às crianças. Morreram pessoas. Explodiram» A criança que era poderia ter sentido
apenas o susto, ou a náusea de ver um membro
amputado, colado ao
vidro da sua casa. Mas não foi assim.
Teresinha disse: «Mãe, está ali um dedo.» Viu a mãe: ela tinha os olhos fechados
de uma maneira afincada. Não queria ver.
E Teresinha repetiu:«Mãe, está ali um dedo.» Sentiu tudo como se fosse um
filme, como se não fosse a vida real.
Era de manhã muito cedo. Jorge Horta apressou-se
a ir para o hospital. A pressa foi tanta que levou vestidas
as calças por cima do pijama. Teresinha não percebeu a urgência
e pareceu-lhe absurda a aflição paterna. Mais tarde, soube-se
que, na oficina, se procedia a uma soldagem a altas temperaturas
a uma pequena bóia de ferro. Esta tinha sido encontrada
há mais de vinte anos e era utilizada para amarrar pequenas
embarcações. A «pequena bóia» era na verdade uma bomba, que
terá chegado ali durante a Primeira Guerra Mundial.
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| Fernando Manuel, "Senhor dos Passos Cidade da Horta 2020", Facebook, 29-03-2020 |
FICAR COM OS ANJOS
Era então uma menina calada e envergonhada. Sentia
que os desconhecidos traziam com eles o poder de um qualquer perigo. Importava-lhe
a mãe, a avó, o pai, as irmãs e pouco mais.
Não precisava de alternativas,
outros rostos, histórias diferentes. Tudo o resto, tudo o que poderia interferir
nessa bolha familiar, quebrava o encanto e Teresinha repudiava.
Mas o deslumbramento improvável foi capaz de a libertar da timidez, da fundura do seu
sossego. Era o dia da Procissão do Senhor dos
Passos, um domingo
soalheiro. A família foi para a varanda ver
passar a procissão.
Teresinha observou tudo com pasmo e
intensidade. Escapou
da varanda, desceu as escadas e seguiu o
cortejo. Era uma menina
doentiamente tímida. Sem descolar
os olhos do chão, manteve-se
em silêncio; a procissão surgia-lhe como um apelo. «Vi anjos, meninos-anjos e meninas-anjo. Eu, tão envergonhada
que era, meti-me na procissão a seguir
os anjos, já apaixonada.»
Jorge Horta descobre a filha a andar
ao lado dos anjinhos.
«A Teresinha vai ali?», perguntou incrédulo. Carlota não deu importância e terá
dito: «Ah, não... talvez não seja.») Jorge correu na direcção da filha mais velha, Carlota foi
no seu encalço, Camila ficou a ver tudo da varanda, tomando conta
das outras duas netas. O pai aproximou-se da
procissão com rapidez,
pegou-lhe ao colo e afastou-se.
«Tiraram-me dos
anjos e eu fiquei desolada. Até hoje. Desatei
a espernear e a chorar.
Não queria sair daquela coisa mágica,
nunca tinha visto uma
procissão. Eram anjos. Eu tinha encontrado os anjos.» Não vislumbrou o andor com
o Senhor dos Passos, fixou-se naquela visão improvável de anjos
feitos crianças, e guardou aquela imagem de modo tão único,
que afirmará que os anjos a invadiram. Na sua poesia, na ficção,
os anjos são uma constante -humanizados, sexualizados, tangíveis.
«Fazem parte de mim.»
«Foi
nessa altura que mais do que as vi adivinhei as asas brancas, filas
à minha frente, anjos de asas translucidas de verdade, quem sabe… E num arremesso,
num arroubo, numa pressa ansiosa e desmedida corri num ápice, célere,
esquecida de tudo o mais, pois os anjos esperavam-me.» (HORTA, Maria Teresa,
«A Ilha» in Meninas, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2014).
A
Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta,
Patrícia Reis. Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 38-44.



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