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sábado, 25 de outubro de 2008

FERNANDO PESSOA (ELE MESMO) REVISITADO

         
     
FERNANDO PESSOA (ortónimo)
E OS ARTISTAS CONTEMPORÂNEOS
        
reescrita/prolongamento de versos
imitação de estilos do autor
transformação (pastichesparódias)
escrita motivada de poemas, cartas
. representações de Fernando Pessoa nas artes plásticas





        


POEMA QUE PESSOA NUNCA PÔS NA ARCA

   

   

De Álvaro sei como sei

desse latim do Ricardo

do pensamento de Alberto

luz incerta em gato pardo

sei de algum outro tão bem

como ele sabe de mim

e de quantos sei ainda

metidos na arca sem fim

e de Bernardo esquisito

como espelho em mim cravado

se quebra me quebro eu

mas sangue só de meu lado

sei com todo o pormenor

de tu do o que me nasceu

sei de toda a criação

só não sei o que sou eu.

 

    
Agostinho da Silva,
in Do Agostinho em torno do Pessoa, Ed. Ulmeiro, 1990.
     
     
     
       

     
     
     


     
     
    
O MENINO DA SUA MÃE

   
   
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
– Duas, de lado a lado –,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino de sua mãe”.

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe
   
    
Fernando Pessoa
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece
De varas trespassado
— Duas, de cada lado —
Jaz exposto e arreféce.

Raia-lhe a farda o sangue
Da quádrupla função.
Nórdico mouro exangue
Fita com olhar langue
O que ainda tem na mão.

Que varonil quimera!
Agora, que vara tem?
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome, e o mantivera:
O menino de sua mãe.

Caiu-lhe da algibeira
A lapiseira breve.
Dera-lhe o pai. Está inteira
E boa a lapiseira,
Ele é que já não escreve.

De outra algibeira, alada
Espuma de porto covo,
A brancura manchada
De um lenço... Foi a criada
Quando êle era mais novo.

Lá longe — na Casa do Conto — há prece:
«Que morra cêdo, e bem!»
Malhas que o Império tece!
Ainda vive e parece
O menino de sua mãe.
   
Mário Cesariny Vasconcelos
O Virgem Negra, Assírio & Alvim, 1989
   


O SOLDADO MORTO

 

Os infinitos céus fitam seu rosto

Absoluto e cego

E a brisa agora beija a sua boca

Que nunca mais há de beijar ninguém.

 

Tem as duas mãos côncavas ainda

De possessão de impulso de promessa.

Dos seus ombros desprende-se uma espera

Que dividida na tarde se dispersa.

 

E a luz as horas as colinas

São como pranto, em volta do seu rosto

Porque ele foi jogado e foi perdido

E no céu passam aves repentinas.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo, Lisboa, Guimarães Editores, 1958


     
   

Jaz morto e arrefece o menino da sua mãe” (1973)
 escultura de Clara Menéres



     
     
        
   
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerteza voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
    
Fernando Pessoa, 1914
in Athena, nº 3, 1921
ele dorme, pobre ceifeiro, quando
a goiva e o formão
lhe encontraram
   
o corpo circunscrito sob
o lenho supérfluo.
desbastando-o

a mão obediente
seguia o intelecto
ao talhar-lhe outro reino

que é da serenidade
deste mundo, pátria às vezes
sensível, melhorável.

dorme no seu anonimato, não
vai enlevado para
parte nenhuma.

seu corpo se fez sono
e deus, ou seja,
a palavra poética

ao fim de tudo, é uma
questão de técnica
e de melancolia.
   
   
Vasco Graça Moura,
in Poesia 1963-1995
Ed. Círculo de Leitores
    
   
     
     
   
   
APÓCRIFO PESSOANO
   
O eu sentir quando penso
e pensar enquanto sinto
origina um labirinto
onde me perco e convenço
de que tudo é indistinto,

do que o mundo se organiza
desorganizadamente
nos recônditos da mente
como uma ideia imprecisa
que quando se pensa, sente

e quando se sente, pensa,
numa confusão total,
num processo irracional
em que se esfuma a diferença
entre o que é ou não real.

Dos meandros disso tudo
nasce apenas um desejo:
distinguir o que não vejo
e é talvez o conteúdo
deste infinito bocejo

a caminho não sei de onde,
à espera não sei do quê.
Quem me ouve? Quem me vê?
A vida não me responde
e, afinal, ninguém me lê.
   
   
Fernando Pinto do Amaral
in A Escada de Jacob, Assírio & Alvim, 1993
     
Num poema como “Apócrifo pessoano”, de Fernando Pinto do Amaral, o que sobressai é a componente lúdica do trabalho intertextual, aqui, mais próximo, nos seus resultados, do pastiche, irónico, obviamente, do que da paródia, através de uma adequação ao estilo do ortónimo e a alguns dos temas mais recorrentes da poética pessoana, como a dialéctica do “pensar” e do “sentir”, a “confusão” entre o “real” e o irreal e o “labirinto” da “mente” onde o eu se perde (cf. Martinho: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/4Sem_08.html)
   
   
     
     
     
   


PARA FERNANDO PESSOA

   

Acendo um cigarro e esquecido a olhar
entredentes me alheio sem querer
Sobeja de mim o que não sou
Para além disso tudo é demais
(De resto só pensamentos são
o que o pensar apenas alcança)
Cansa a companhia do querer
ao que no pensar está
como o incómodo breve duma agitação
d’alma que logo a si regressa
Sossega ó eternidade
que te seja leve a agrura do tempo
o malquerer dos dias
a fadiga de sonhar caminhos
Apaga-se-me o cigarro entrededos
e estranho de mim extingo-me
como coisa de quase nada

   
Fernando Martinho Guimarães,
 in apenas um tédio que a doer não chega, Edições Fluviais, 2005
   



     
        

   
   
     
     
     
AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
 
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm
 
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda  
Que se chama coração
   
Fernando Pessoa
in PresençaAbril de 1932
   
   
   
   
   
   
   
   
O POETA É UM FINGIDOR

Entreteço palavras
na malha áspera destes versos
e a tessitura triste que faço
mais esmorece no azul baço
do papel. Entristeço então
a alma numa renda miúda
e apertada de ponto incerto
e complicado. Estabeleço assim
dois mundos convergentes:
A textura entristecida dos versos
e a tristeza entretecida da alma.
E logo esqueço onde tudo isto
teve começo:
Se de entristecer palavras,
se de entretecer sentimentos,
se de constranger a alma, 
se de contristar palavras:
se me contristei constrangendo,
se me constrangi contristando.

Sei que me contristo entretecendo
E me entreteço de tristeza.
   
Rui Knopfli,
in Mangas Verdes Com Sal (1969)
    
    
    
     
     
Também no poema "Dores", constituído por uma breve estrofe de quatro versos, Alexandre O'Neill alude ao texto poético da "Autopsicografia", operando uma irónica reinterpretação da complexa teoria do fingimentoracionalista pessoano. O excessivo celebralismo pessoano não se coaduna com uma estética surreal, valorizadora do fantástico e do maravilhoso, nem com o humor magoado de O'Neill.(http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/candid04.htm)
    
   
   

     
   
DORES

Às dores inventadas
Prefere as reais.
Doem muito menos
Ou então muito mais...
     
   
Alexandre O’Neill,
 in No Reino da Dinamarca, Guimarães Ed. 1958





FERNANDO PESSOA, 1925
Fernando Pessoa descendo o Chiado (Lisboa) com Augusto Ferreira Gomes.

Cinco fotografias instantâneas transformadas em cinco fotogramas - a única filmagem conhecida de Fernando Pessoa.

c. 1925
              

       
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/10/25/revisitarpessoaortonimo.aspx]                    


 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

                         

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