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sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A MATÉRIA DO POEMA

René Magritte (1898-1967) “Call of the peaks"
Magritte, Call of peaks (1943)
                        
    
         
    
      
CARREGO O QUADRO
       
Carrego o quadro, o trabalho no mar
respirado
a casa que deixei logo que o dia clareou
ou mesmo o regresso à paixão do verbo.
Sigo o voo do milhafre.
   
Para lá do vão indisponível da porta
apenas raízes ou teias a expressar o tempo
inquietas máscaras perfazendo o espaço apertado
onde ainda volteias.
   
     
       


        
NESU GLEZNU
    
Nesu gleznu, uzgleznotu jūrā,
kas izelpo
māju, ko atstāju pēc tam, kad diena noskaidrojās,
vai visdrīzāk paša vārda kaislības atgriešanos.
Sekoju klijas lidojumam.
    
Viņpus ostas bezjēdzīgā tukšuma
tik tikko samanāmas saknes vai laika izpausmes gaismekļi;
satrauktas maskas, kas piepilda šauro telpu,
kurp tu vēl joprojām atgriezies.
      
“Carrego o quadro”, José Maria de Aguiar Carreiro
tradução: Leons Briedis (Letónia)
Azoru Salu. Dzejas antoloģija. Rīga, Minerva, 2009
         
     
    
        
     
       
                     
Magritte, “The Difficult Crossing”, 1926,
Oil on canvas, Jean Krebs Collection, Brussels
 
   
  
NO POEMA
   
Transferir o quadro    o muro       a brisa
A flor      o copo     o brilho da madeira
E a fria e virgem limpidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso;
   
Preservar de decadência  morte e ruína
O instante real de aparição e da surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa.
    
Sophia de Mello Breyner Andresen
Livro Sexto 1962
   
    
    

Não está em causa «descrever» um mundo que há-de ser o mundo do «poema limpo e rigoroso», mas o acto de o nomear.
    
É a sobrecarga de nomes concretos (ligados à ideia de visualidade e de clareza – quadromuro, brisa, flor, copo...) que, sobretudo, se associa ao acto de nomear. Este aproxima e implica o Eu no mundo nomeado (= criado), aspecto que o emprego do artigo definido reforça.
    
(Note que nomes abstractos como «limpidez», «instante» «gesto», o não são assim tanto, porque pertencem ao mesmo mundo concreto dos nomes presentes nos dois primeiros versos e são precedidos de artigos definidos que os tornam mais palpáveis.)
   
O poema fixa o mundo nomeado num tempo fora do tempo, isto é, não sujeito à sua acção corrosiva, como se explicita no verso “Preservar de decadência  morte e ruína”
    
Veríssimo, 2003: 309
    
   



René Magritte (1898-1967) “Auto-retrato”
René Magritte (1898-1967) "A Vitória"
  
    
   


PARA ESCREVER O POEMA
   
O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.
   
O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.
   
O poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.
   
Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.
   
Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.
   
Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.
   
Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.
   
A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.
   
E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.
   
E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.
   
O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.
   
Nuno Júdice, A Matéria do Poema
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2008
   
   
Três elementos que o poeta pretende utilizar como matéria do seu poema: pássaro, maçã e flor.
    
   
   
   
   
   
   
   
   
«uma gaiola de palavras» pode ser identificada com um «texto», porque, tal como uma gaiola pode servir para prender um pássaro, um texto, através das suas palavras, permite fixar uma ideia ou conter uma representação de algo (um pássaro, por exemplo).
   
   
   
   
Há uma oposição entre as decisões tomadas pelo poeta e o que destas resultou, ou seja, entre fazer uma gaiola, chamar pela serpente e pôr água na estrofe e, respectivamente, o facto de um pássaro não cantar quando está preso, o facto de Eva temer serpentes e o facto de os versos não reterem a água.
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   


   
A complexidade da escrita.
   
No poema de Nuno Júdice, descreve-se o processo de escrita e se enunciam as dificuldades por que passa o poeta para escrever o poema, simbolizadas em versos como «e o pássaro foge-lhe do verso» (verso 2), «e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou» (verso 4), «e a flor murcha no jarro da estrofe» (verso 6).
   
   
O percurso de um poema.
   
No poema, representam-se fases do processo de criação poética, uma vez que se enunciam decisões tomadas pelo poeta, o que delas resulta, a interrupção do acto de escrita, o regresso à escrita e o momento em que se dá o poema por terminado.
   
(adaptado de: Exame Nacional do Ensino Básico. Prova 22/1ª chamada, GAVE, 2010)
      
   
   
  
   
     
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/08/13/poema.aspx}

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