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segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A vida íntima das palavras (Maria Lúcia Lepecki)


Marc Chagall, “Les amoureux de Vence”

   
      
Creio que está em "O Pároco da Aldeia”, de Alexandre Herculano. Um dos paroquianos do já idoso sacerdote, trabalhador no campo, apaixona-se por uma rapariga da mesma aldeia. Era no tempo da cerimónia conhecida como pedir namoro, ao pai da rapariga ou a quem lhe fizesse as vezes. O moço não ia, ficava quieto no seu canto. Pelo menos assim é no conto de Herculano. Em tão momentos a situação, o futuro namorado fazia-se representar por uma espécie de embaixador de cujos bons ofícios se esperava feliz desenlace.
Ora, o nosso apaixonado não tinha, ao que parece, parente de sangue ou por afinidade, nem padrinho, nem quem quer que fosse capaz de encarregar-se do recado. Solicita, assim, a colaboração do pároco que, antes de sim ou sopas, quer ver onde se mete. E indaga: “Tu ama·la?" Resposta: "Amar não amo, pois não sei as palavras. Mas preciso muito dela."
A minha citação, feita de memória, deve estar desrespeitando os termos precisos atribuídos, por Herculano, à sua personagem. Mas à ideia sou fiel: “não amo porque não sei, ou não tenho, as palavras...
Uma formulação como essa não traria desprimor a filósofos da linguagem, sendo muito significativo que Herculano, por instinto ou de caso pensado, a tenha posto na boca de uma personagem rural. Referindo carecer das palavras para amar, o nosso jovem revela uma extraordinária consciência retórica. No caso, manifesta-se essa consciência pela percepção de que as palavras fazem falta não apenas para expressar o amor (ou qualquer outro sentimento ou emoção) mas, e sobretudo, para experimentar, para viver, sentimentos e emoções.
Tendemos a crer, e talvez creiamos sempre, que o sentir é separado de, e preexistente a, qualquer verbalização. Primeiro sentimos, acreditamos nós, só depois nos vindo as palavras que serviriam, apenas, para fazer transitar o sentimento para um destinatário que até pode ser o mesmo emissor... Ora, as coisas não são assim, como atinou a personagem de Herculano. Na verdade, o sentimento, na acepção de "afecto, afeição, amor", nasce de aprendizados: do totalmente informal ou do mais formalizado. No primeiro caso, o informal, os convívios do quotidiano são decisivos para dar nascimento, e crescimento, ao conjunto de palavras que, ditas para nós mesmos, nos permitirão, ao longo da vida, sentir o sentimento. Essa gestação verbal, em primeira instância, faz-se na família próxima ou alargada, ouvindofalando, acarinhando, tocando O corpo do outro.
Modo mais formal de adquirir palavras para ter o sentimento é a leitura literária. Esse aprendizado pode começar muito cedo, primeiro pelas histórias contadas oralmente, depois pelos livrinhos que vamos lendo e onde contactamos não com uma pessoa na sua humanidade, mas com uma representação da humanidade da pessoa. É o que chamamos personagem. [...]

Maria Lúcia Lepecki
Super Interessante n.º 148, agosto 2010, Portugal.
   
   

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/08/23/lepecki.aspx]

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