YOU ARE WELCOME TO ELSINORE
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
Mário de Cesariny de Vasconcelos, Pena Capital, 1957
O título do poema remente para o Hamlet de Shakespeare, quando no Ato II, cena II, Hamlet dá as boas vindas, no castelo de Elsinore, aos velhos amigos Rosencrantz e Guildenstern, convocados pelo Rei sob o pretexto da «loucura» do Príncipe e destinados a ser os seus carrascos (sem eles o saberem) para serem afinal (sem eles suspeitarem) as suas vítimas.
[…] A referida obra do dramaturgo inglês foi aliás foi aliás reiteradamente invocada para assinalar obliquamente a miséria da «prisão» do Portugal salazarista, e baste para isso lembrar o lugar explicitamente nomeado por O’Neill – No Reino da Dinamarca (no diálogo entre Hamlet e os seus amigos/convidados, o príncipe dirá a uma dada altura da conversa que «Dinamarca é uma prisão»). Dinamarca é assim o Portugal onde o Surrealismo português quis materializar o seu sonho de Liberdade, Desejo, Amor e Poesia, e Elsinore a Lisboa que foi o seu território eletivo, a cidade amada/abominada por O’Neill e contrasposta a um Paris «onde o amor encontra os seus caminhos» (o Paris de Nadja por exemplo), a cidade de Palagüin de Carlos Eurico da Costa ou, enfim, a cidade do poema «Crónica» de Fernando Lemos. […]
O poema, assim, define como poucos o que foi, o que quis ser e o que não pode ser a intervenção surrealista em Portugal, ao mesmo tempo que assinala os limites que à reabilitação da realidade e à nossa própria realização impõem aqueles que fizeram de Elsinore uma prisão, e da Dinamarca toda um território de podridão e de mentira; mas também aponta para a celebração do poder libertador da Palavra, instrumento de evasão da realidade real e de criação duma poética onde melhor nos instalarmos, porque, afinal, como lembrava o próprio Cesariny em 1949 no «Final de um Manifesto»,no círculo da sua ação, todo o verbo cria o que afirma.
Perfecto E. Cuadrado Fernández, Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX.Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002.
Aquilo que os surrealistas pretendem alcançar através da linguagem poética não é, de todo, a elaboração de teses baseadas em juízos analíticos mas antes uma consciência profunda e sincrética da realidade humana em todas as suas manifestações. Esta consciência só poderá ser alcançada quando colmatada a distância existente entre os signos e as coisas, e quando a palavra surgir, ela própria, não como nomeadora de um real já formulado, mas enquanto reveladora de um real que desconhecemos. Embora sem excluir a dimensão criativa da linguagem, a poesia surrealista aponta mais no sentido da revelação, na medida em que pretende aceder a um real que efetivamente existe mas que a linguagem comum não poderia apreender. Esta problemática encontra-se bem patente no célebre poema “you are welcome to elsinore”.
A construção anafórica assente na expressão “entre nós e as palavras (...)”, que se repete ao longo do poema, salienta, precisamente, a distância que a linguagem mantém com aquilo que lhe é exterior, apontando para um espaço onde existem entidades de permeio. Estas entidades partilham semas de destruição e estagnação e funcionam como obstáculos à ligação profunda entre o eu, a linguagem e o mundo : “metal fundente”, “ hélices que andam”, “perfis ardentes”, “gente de costas”, “altas flores venenosas”, “portas por abrir”, “escadas”, “ponteiros”, “crianças sentadas”. De facto, os adjetivos “fundente”, “ardente” e “venenosa”, aliados a hélices em movimento, surgem enquanto obstáculos impossíveis de transpor, dado o seu poder mortífero. A imagem veiculada pelo verso “espaços cheios de gente de costas” transporta-nos para uma situação de solidão e de falta de comunicação, a que também podemos associar as “portas por abrir”, como símbolo de uma incapacidade de conhecimento de algo que permita que nos encontremos com o desconhecido ou com o Outro, e, em última instância, com nós próprios. As escadas que se encontram entre o sujeito plural do poema e as palavras podem representar igualmente um obstáculo a essa fusão entre a palavra e o referente. Embora possamos entender a palavra “escada” como um meio de ligação e de passagem, neste contexto este termo surge enquanto símbolo da distância a ser percorrida entre os dois elementos em questão. Também o tempo, representado pelos ponteiros do relógio, aparece como um elemento distanciador da palavra face aos objetos, podendo mesmo indiciar um certo desfasamento no tempo entre as duas realidades. Por último, a imagem das crianças sentadas “à espera do seu tempo e do seu precipício” sugere-nos, como diz Fernando de Azevedo, “o prenúncio de uma fatalidade e de um ambiente fúnebre, uma vez que as crianças se caracterizam intrinsecamente pela sua vivacidade e dinamismo” (Fernando José Fraga de Azevedo, Texto literário e ensino da língua: a escrita surrealista de Mário Cesariny, Braga, Universidade do Minho / Centro de Estudos Humanísticos, 2002, p. 159). No contexto surrealista, a imagem de um ambiente de estagnação associado à infância reveste-se de um valor simbólico forte, na medida em que é a este período do desenvolvimento do ser humano que os surrealistas atribuem a verdadeira Vida, enquanto liberta de imposições sociais e morais. Assim, vemos que, no contexto surrealista, a fratura existente no seio do processo de significação é entendida como destruidora de uma verdadeira perceção do mundo e do ser humano.
Diana Isabel Fontes Vasconcelos, O Poeta Mago – Presenças da Magia na Obra Poética de Mário Cesariny deVasconcelos. Dissertação de Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, ramo de Literatura Portuguesa, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009.
O poema de Cesariny inicia com um convite, uma receção de boas-vindas, explícito no próprio título: sê/sede bem-vindo/vindos a Elsinore. Porém a referência a este local, transporta-nos para o ambiente de tensão dramática do Hamlet de Shakespeare. Esse é o espaço das dúvidas sobre o ser, das reflexões sobre a vida, das lutas pelo poder. Desta perspetiva, este convite está imbuído de um carácter irónico já que nos convida a partilhar um espaço nefasto e destrutivo.
Elsinore surge como uma espécie de mediador, de espaço separador que se interpõe entre o sujeito poético plural – “nós” – (insistentemente reiterado ao longo do poema através da repetição anafórica) e as palavras (o seu poder criador e libertador). Essa designação global é, depois, particularizada.
O primeiro contacto é feito com a parte que representa o mundo-máquina: com o seu “metal fundente” e as “hélices que andam” e desempenham o papel de um assassino. Esta personificação das hélices tem um carácter extremamente violento uma vez que elas não só podem “dar-nos morte”, mas principalmente violar a nossa intimidade – a alma – para tirar “do fundo de nós o mais útil segredo”. Por esse motivo, elas geram a angústia de não poder guardá-lo, de não saber quando o “nós” vai ser roubado, sendo-lhe retirado o seu próprio eu, a sua individualidade e os seus pensamentos. Esta violação do pensamento é visualmente percetível não só pelos espaços em branco que isolam a forma verbal “violar-nos”, mas também pelo uso da conjugação perifrástica no presente do indicativo (“podem dar-nos morte”, “[podem] violar-nos”, “[podem] tirar…”) que projeta num tempo futuro e indeterminado a ação agressiva das hélices. O segundo contacto com Elsinore, apresenta um mundo aparentemente mais humanizado. No entanto, nesse espaço estão disseminados vocábulos e expressões com conotações negativas. Tal é o caso de “perfis ardentes” que, se por um lado, podem ser vistos como sugestões do entusiasmo, da euforia; por outro, remetem para silhuetas capazes de queimar, de destruir sem necessidade de se materializarem. Também as pessoas que deambulam por este local são incapazes de comunicar, funcionam como estranhos, como seres que não compartilham os mesmos projectos e ideias, por isso, estão “de costas”. Uma outra referência disfórica é a menção às “altas flores venenosas”. Muito embora exteriormente possam estar associadas à beleza ou à sua simulação, elas minam a existência já que são letais e esse carácter nefasto é intensificado pelo recurso à aliteração da sibilante.
Apesar destas referências disfóricas, este espaço apresenta alguns laivos de esperança. Há ainda “portas por abrir” (nem tudo se esgotou, há outras possibilidades a explorar) e há “crianças” (aquelas que representam a eterna capacidade humana para sonhar e perseverar). Esta ideia é intensificada pelo recurso simultâneo à enumeração, aliteração e reiteração da conjunção copulativa “e” (“e escadas e ponteiros e crianças sentadas”). Este verso gera uma certa ansiedade relativa à espera, uma vez que as crianças estão inativas. Com efeito estas “crianças sentadas” (o próprio nós) estão nesse espaço negativo “à espera do seu tempo e do seu precipício”: elas aguardam o momento em que urge ser, isto é, em que é necessário iniciar, agir, mesmo que a esse início esteja inerente o fim (a destruição, a morte).
Após esta humanização do espaço, ele metamorfoseia-se e passa a ser a metáfora da própria vida, é a “muralha que habitamos”. Mais uma vez, enfatiza-se o facto de o sujeito poético plural viver aprisionado, rodeado por uma barreira inexpugnável, intransponível, geradora do isolamento, da solidão, que o impede de comunicar e ser. Elsinore revela, assim, o seu carácter dominador das individualidades. Por isso mesmo, há duas categorias de palavras que o povoam: as “de vida” e as “de morte”. Esta constatação constrói-se a partir de uma ambiguidade já que estes dois grupos podem ser encarados como as palavras geradoras de vida e as que a destroem ou aniquilam; porém, as primeiras são “imensas”, “esperam por nós” (pela criança que ainda não agiu, que ainda não descobriu o “seu tempo”), as segundas, as “que deixaram de esperar” (aquelas que morreram, que se tornaram vãs, que foram espoliadas do seu significado). Apesar da opressão contínua de Elsinore, nem todas as possibilidades se esgotaram, já que “há palavras acesas como barcos” (dominadas pela ânsia da liberdade, não foram feitas prisioneiras, liberdade essa realçada pelo uso da comparação, aliteração e a imagem associada à visualidade do adjetivo “acesas”) e “palavras homens” (numa fusão total entre homem e poder persuasor/criador da palavra). No entanto, essa breve esperança é aniquilada pela consciência que o sujeito poético de tem que estas palavras são inacessíveis, “guardam/o seu segredo e a sua posição”, para que as hélices as não extirpem do seu conteúdo. De novo é realçada a incapacidade de comunicar livremente, de confidenciar ideias por opção, imposição ou medo.
Este cenário controlador vai atingir o seu apogeu na terceira estrofe, quando Elsinore assume todas as suas potencialidades, daí a abundância de aliterações das nasais e da sibilante para sugerir auditivamente esse ambiente opressivo e ameaçador. A sua presença impõe-se “surdamente” e surgem as suas “mãos e as paredes” a sugerir a ideia da prisão, do enclausuramento, da impossibilidade de fuga. De igual forma, este poder opressor determina o tipo de palavras existentes: são as “nocturnas palavras gemidos”, o sofrimento. Novamente ocorre uma certa ambiguidade: se as palavras podem implicar, neste contexto, a referência ao desalento, é possível também associar-lhes a capacidade de segredarem e murmurarem, daí a sua escuridão e quase inaudibilidade. Desta perspetiva, vislumbra-se uma nova esperança: surge a vontade de o sujeito poético se fazer ouvir. Mas a este propósito está inerente uma nova dificuldade: estas palavras são “ilegíveis” (ninguém as descodifica). Apesar disso, elas são “diamantes” (o brilho, a transparência, a revelação), embora “nunca escritas” porque ainda não foram inventadas ou devido ao seu cariz oral, já que a palavra escrita compromete o seu autor, denuncia o seu pensamento; há também aquelas que são “impossíveis de escrever” devido à presença surda de Elsinore que tudo e todos controla até ao mais íntimo de cada um. A esta situação acrescem duas outras impossibilidades: o instrumento que as tocaria está danificado - faltam as “cordas de violinos” (expressão esta que cumula em si a metáfora das cordas vocais, da mudez voluntária ou imposta e a referência à música enquanto veículo da manifestação da vitória da liberdade) – e seria necessário usar o que não se encontra disponível - “todo o sangue do mundo” e “todo o amplexo do ar”. Este verso, construído a partir de um paralelismo anafórico associado à hipérbole, permite visualizar o tipo de esforço que seria exigido às “crianças sentadas” para superarem o poder de Elsinore. De imediato, surge um leve resquício de possibilidade de anulação dessa entidade opressiva: “os braços dos amantes escrevem muito alto/muito além do azul”. Num primeiro momento parece que há algumas vozes que ainda conseguem exprimir com palavras o que pensam, mesmo que isso implique escrever num papel diferente: no firmamento, no azul de todas as possibilidades. Mas se esse caminho distante, enfatizado pela repetição do advérbio de intensidade “muito”, pode ser percorrido pelos “braços dos amantes”; é nesse azul que eles encontram o seu “precipício”, a morte por oxidação. A esta breve esperança está também inerente a própria destruição da vontade do eu (bem percetível pelo uso da anástrofe que prolonga o efeito da morte já que o tempo verbal utilizado é o presente do indicativo que não permite formular hipóteses de fuga). O ambiente opressor é explorado até à exaustão, muito embora sempre pincelado de vislumbres de perspetivas positivas. É o caso do final desta estrofe em que se lembram as “palavras maternais”, aquelas que geram a vida, as que representam a esperança incondicional nos outros; mas também estas aparecem desvirtuadas, associadas ao sofrimento calado, “só sombra só soluço/só espasmo só amor só solidão desfeita”. Mesmo estas palavras estão impossibilitadas de se compartilharem com os outros/outras, vivem no mundo da solidão e, mesmo essa, “desfeita”; tal decorre da presença surda das muralhas que nos cercam e das hélices que nos violam. Esta negatividade torna-se particularmente notória pela repetição sistemática do advérbio de exclusão “só” associado à aliteração e à alternância entre a vogal aberta do advérbio e uma profusão de vogais fechadas nas restantes palavras.
Traçado este retrato claramente negativo, o sujeito poético sintetiza no dístico final o seu conselho, a sua hipótese de solução. Elsinore – o espaço “Entre nós e as palavras” – está preenchido pelos “emparedados”, pelos prisioneiros do silêncio, condenados à solidão perpétua; mas, simultaneamente pelo “nosso dever falar”, pela nossa obrigação em não compactuar, em dar por terminado o tempo da espera. Decorrente dessa situação, o poema termina com essa conjugação perifrástica apenas composta por infinitivos: a liberdade inerente à obrigação de não calar é ainda uma leve potencialidade que urge atualizar pelo uso da palavra.
O convite inicial acaba por ser um duplo convite. Cada um de nós é convidado a ver o mundo da opressão, fingimento e medo que separa homem e palavras devido à silhueta omnipresente de Elsinore. Inerente a este, está o segundo convite: apela-se à atuação, ao agir das “crianças sentadas” que deverão denunciar essa presença avassaladora para que ela seja derrotada.
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavras. Tese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005.
“you
are welcome to elsinore”
O poema como palco: o antes da escrita de Mário
Cesariny
Ao contrário da cena posterior
à escrita representada em “tal como catedrais”, “you are welcome to elsinore”
expõe a gagueira do poeta e sua dificuldade em iniciar o trabalho com as palavras.
Publicado em Pena
capital (1957), esse poema é considerado por alguns críticos como um dos maiores exemplos da poética cesarinyana, sendo objeto de relevantes estudos, como os ensaios de Perfecto E. Cuadrado, que sucede o poema na antologia Século de Ouro (2002), e de Manuel Gusmão, “Entre nós e as palavras
(Mário Cesariny)” (2010).
A composição parece ter como ponto central a tentativa de expressão e comunicação com o
outro através da fundação de uma linguagem poética frente à constatação da
existência de um intervalo
entre o que se deseja exprimir e aquilo que se consegue efetivamente
dizer, refletido pela repetição de uma fórmula ao longo de todo o poema: “entre nós e as palavras”. “you are welcome to elsinore” se apresenta, assim,
como mais uma arte poética
cesarinyana na qual vemos em cena um poeta em crise com “as palavras”, onde o encontro
com o outro é condição fundamental para o trabalho
de escrita.
Assim,
se, em “tal como catedrais”, “tu e eu” são abandonados à própria sorte, “pálidos” e “tristes” após a consumação
da obra, em “you are welcome to elsinore”, “o nosso
dever falar” se mostra como um dever ético ainda a ser cumprido. Como no primeiro,
o sujeito plural que nele
se
apresenta
pode
ser
pensado
tanto
como
uma
tentativa
de
comunicação com o outro, futuro encontro amoroso de liberdade
entre texto e leitor, quanto como um encontro entre
textos, perceptível pelo deslocamento dos discursos alheios
para dentro do poema. Nesse sentido, o “nós” que percorre todo o poema poderia ser tomado como uma
constatação da situação
comum de emparedamento do homem dentro
dos muros da linguagem, retomando
a problemática em torno da ineficiência das palavras, as “senhoras” a quem é preciso dar “descanso”, as quais já não “atravessam fronteiras”, mas formam uma
muralha dentro da qual habitam
os homens. Assim,
o poema de Cesariny parece encontrar
André Breton e sua acusação
a respeito do “peu de réalité”13 com o qual contatamos através da linguagem
cotidiana. Para o francês,
as palavras
tendem a se agrupar de acordo com afinidades particulares, cujo resultado é, normalmente, o constante recriar do mundo em seu antigo modelo. [...] É suficiente que critiquemos as leis que regem o seu agrupamento. A mediocridade de nosso
universo não depende
essencialmente do nosso poder de enunciação?
(BRETON, 1992, pp. 275-276, tradução
minha)14.
Porém,
“you are welcome
to elsinore” parece
ir além, ao propor o encontro com a palavra poética, as palavras “dos amantes” e as “maternais”, aquelas que são “só solidão
desfeita”, como forma de libertação dos homens não apenas do emparedamento dentro
dos muros da “medíocre” realidade
fundada pela linguagem, mas do aprisionamento entre as paredes
de Elsinore/Portugal.
you are welcome to elsinore
Entre nós e as
palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
(CESARINY, 2004, pp. 34-35).
Ao contrário da cena final de “tal como catedrais”, o poema acima encena um momento prévio à escrita,
no qual se representa uma situação angustiante de constatação de que “entre nós e as palavras”
há uma distância com a qual é preciso negociar
para que seja possível empreender esse trabalho, algo que se percebe através
das imagens violentas
em seus primeiros versos, tais como “metal fundente”
e “hélices que [...] podem dar-nos morte”.
Ao ensaiar repetidamente seu começo, o poema parece um tanto fragmentário. O efeito é provocado pela repetição da expressão que o inicia, “entre nós e as palavras”, não menos que seis vezes ao longo das quatro estrofes, formando
uma espécie de fórmula para o lermos, ou
uma “coluna vertebral do poema” (2010, p. 398), como caracteriza Manuel Gusmão. Mesmo quando não a encontramos integralmente, seu eco permanece e vemos seus vestígios
espalhados pelos versos do poema: “há palavras
de vida há palavras de morte/há palavras imensas/[...] há palavras acesas como barcos/e há palavras homens”. Porém, a imagem construída pela palavra “entre”
sugere não apenas um hiato ou um espaço vazio que divide duas ou mais coisas,
mas também uma inter-dicção, um entredizer, uma fala que se põe em meio a outra.
Nesse sentido, o espaço existente
“entre nós e as palavras” deixa de ser percebido como vazio que separa, e passa a ser um espaço de ligação dos elementos que carregam em si um sentido de interrupção ou incompletude, como “portas por abrir”, e a
marcante imagem do
emparedamento, unidas como por “metal
fundente” no espaço
do discurso poético que afirma repetidamente a fissura e a censura.
As análises do poema de Cesariny empreendidas nos ensaios citados
anteriormente desenvolvem-se a partir de duas características principais nele identificadas: Perfecto Cuadrado ressalta seu caráter engajado, “como denúncia e crítica dum tempo e dum país” (2002, p. 282), apontando
“para a vontade de intervenção e de transformação [...] desse país e desse tempo” (CUADRADO, 2002, p. 282), caráter
esse sugerido pela comparação, no título do poema, entre a Dinamarca de Hamlet e o Portugal
do momento de escrita de “you are welcome to elsinore”15; Manuel Gusmão
atenta para aquilo
que chama de um “perturbante intervalo” (2010, p. 398)
entre nós e as palavras, relativo
à percepção de que há uma “distinção entre a articulação verbal e o mundo da vida”, apontando, portanto, a existência de algo que resiste à simbolização e indicando a possibilidade de as palavras
do poema serem uma maneira de tocar o insimbolizável
(GUSMÃO, 2010). Aceitando essas duas
perspectivas como complementares, isto é, tomando “a miséria da ‘prisão’
do Portugal salazarista” (CUADRADO, 2002, p. 282) como algo que permanece como um resto da operação
de nomeação, como o “irrepresentável” (2010, p. 400) de que fala Gusmão,
e retomando a distinção sublinhada
por Compagnon entre o “sentido
da citação (o enunciado)” (COMPAGNON,
1996, p. 46) e “o ato da citação (a enunciação)” (COMPAGNON, 1996, p. 46), creio ser possível
aproximar-me de “you are welcome to elsinore”
tendo em vista que, a partir da movimentação de discursos alheios dentro de seu poema e da busca por um diálogo amoroso com o outro perceptível por um “dever
falar” que permanece como dever ético
ainda a ser cumprido, Cesariny
tenta abrir uma via de saída à situação de emparedamento dentro
dos muros da ditadura e da linguagem
petrificada pelo “mundo informativo da fala” (1982, p. 47), como a qualifica Octavio Paz. Assim, o “nosso dever falar” se converte
no esforço da união
em canto coral de amantes
como maneira de dar conta
do irrepresentável e de “impor
à realidade real uma realidade poética” (2002, p. 283), como afirma Cuadrado.
Podemos perceber o deslocamento de discursos alheios
para dentro do poema desde o
título até seu dístico final. Em seus versos, julgamos
ler o Elsinore de Shakespeare e o “vale escuro das muralhas” (1977, p. 102) de Cesário Verde, passando
pela “criança [que] passa de costas para o mar” (1971, p. 92), de Eugénio de Andrade, pelas
“Notícias do Bloqueio” de Egito Gonçalves
(1952), ou pelas “palavras nocturnas” de Isabel Meyrelles
(1954), além das referências ao léxico neorrealista, como percebemos nas imagens da “noite” e da “muralha”, bem como na fala em nome de um suposto coletivo
representado pelo pronome
“nós”. Aproximando a teoria
de Compagnon dos estudos de literatura portuguesa, encontramos o ensaio “O retorno do épico: a nau e a nave” (2010), de Jorge Fernandes
da Silveira, no qual o autor
defende que, na literatura contemporânea portuguesa, principalmente naquela
produzida durante o período do Estado Novo, a dissonância entre o sujeito
e o mundo ao seu redor
produz uma poesia que encontra,
através de um jogo intertextual, de troca de versos, a forma de se falar em liberdade. O conceito elaborado
por Silveira parte da constatação de que há imagens que se repetem ao longo da cultura portuguesa que passam a servir a um propósito comunicativo em estados de “proibição do livre trânsito
da palavra” (SILVEIRA, 2010, p. 34). Seria possível, portanto,
observar como os poemas escritos
sob um estado de censura evocam poetas da tradição
literária portuguesa de forma a comunicarem certas
“notícias do bloqueio” (SILVEIRA, 2010, p. 34), como afirma
com Egito Gonçalves. A linguagem poética que valorizasse os jogos intertextuais seria, assim, uma linguagem da comunicação possível num estado de exceção.
Apesar de as leituras de Silveira se restringirem a análises de obras
que dialogam especificamente com a cultura portuguesa, tomo como igualmente oportuna a leitura do diálogo com o poeta e dramaturgo inglês no poema de Cesariny como uma forma de comunicação no estado de exceção, algo que pode ser observado
tanto na comparação entre Elsinore e Portugal, como já observado por Cuadrado, quanto
na problemática da comunicação movimentada por ambos os textos.
Desde
o título do poema acima, podemos perceber
como Cesariny recorre
a um discurso que não é o seu para dar conta do espaço para o qual os leitores são convidados.
Trata-se de uma citação que figura como uma das referências mais emblemáticas de sua poética: uma passagem
de The Tragedy
of Hamlet, Prince
of Denmark, de Shakespeare, o mais
longo drama do bardo inglês.
A escolha de Cesariny por uma citação
direta dessa peça, a qual não é sequer adaptada
ao português – para além das duas diferentes grafias do nome do
castelo, escrito “Elsinore” no título e “Elsenor” na terceira estrofe
– talvez indique
certa “dificuldade em nomear/grafar o lugar para o qual somos convidados
– o impossível lugar da poesia” (2010, p. 397), como nota Manuel Gusmão. Porém indica, sobretudo, que só se pode falar desse espaço através da voz fantasmagórica que remete a Hamlet e Elsinore, a voz de um outro.
A citação da tragédia shakespeariana no título do poema de Cesariny sugere um protocolo
de leitura, fazendo
com que seja necessário “procurar
[...] a intenção na metáfora que utiliza”
seu autor (SCHOLES,
1991, p. 25). Nesse sentido,
ler “you are welcome to elsinore” implica ter em mente as principais questões
do enredo de Hamlet e o porquê de sua
convocação nesse
poema16. No drama
de Shakespeare, surpreende a inação do personagem
principal e sua incapacidade de vingar o pai rapidamente, como percebemos no Ato III, Cena 2, quando é montada uma peça dentro da peça na qual é encenado um assassinato idêntico ao do Rei Hamlet para que Claudius,
uma vez confrontado pelo drama encenado à sua frente, confessasse seu crime. Afirma
Hamlet que
[...] I have heard
That guilty creatures sitting at a play
Have by the very cunning
of the scene
Been struck so to the soul, that presently
They have proclaimed their malefections;
[...] The play’s
the thing
Wherein I’ll catch the conscience of the king. (Hamlet, II, 2, 541-558).
Durante a encenação, Hamlet tem certeza da culpa de Claudius,
porém é incapaz de confrontá-lo. Em oposição à inação do personagem principal, são dominantes na peça seus solilóquios, os quais concentram mais da metade das falas de toda a composição. Indo na contramão
dos dramas encenados
no teatro elisabetano, que se baseavam
no ensinamento aristotélico a respeito do drama, o qual “‘precisa
focar em sua ação, não em seu personagem’
[...][,] Shakespeare reverte essa técnica, substituindo as ações pelos solilóquios como meio de explicar para o público os pensamentos e os motivos de Hamlet” (VASCONCELOS, 2013, p.
20). A tragédia se prolonga,
portanto, por mais dois longos
atos, até que se encerre
com as mortes quase simultâneas de Claudius, Laertes
e Hamlet.
Ao encontrarmos a expressão “you are welcome
to Elsinore” (Hamlet, II, 2, 340) numa
fala do príncipe da Dinamarca, no momento em que recebe seus amigos Rosencrantz e Guildenstern no castelo de Elsinore, torna-se
possível estabelecer uma comparação entre
o personagem Hamlet e o eu-lírico
de Cesariny. A expressão do título, descontextualizada da fala original,
passa a significar um “és (sois) bem-vindo(s) a Elsinore”, e não um mero “bem- vindo(s) a Elsinore”, levando a crer que não se trata de um desejo de boas-vindas àquele que já chegou a Elsinore, mas de um convite feito às portas do castelo.
Dessa maneira, o receptor
da mensagem do poema de Cesariny, portanto um tu-leitor,
é bem-vindo caso queira entrar. Atravessamos essas portas no momento em que começamos
a ler o poema. Ao serem para ele convocadas,
a escuridão e a podridão
da Dinamarca de Shakespeare são comparadas ao Portugal salazarista do emparedamento e silenciamento no qual vive o poeta, como apontado por Perfecto Cuadrado (2002),
e sugerem que, como o discurso de Hamlet em Elsinore, o poema
se movimenta em torno de uma crise frente à constatação de que a realidade é uma narrativa,
com a percepção de que a “verdade”
é ditada pela linguagem, como, aliás, fora apontado por Breton. No drama, ao tomar conhecimento do assassinato de seu pai, Hamlet se encontra preso no intervalo de dois discursos a respeito do que se passou: o discurso oficial
de Claudius, agora
rei da Dinamarca, e o de seu pai, agora
fantasma que clama
por vingança. Aceitando a condição que lhe fora conferida por Claudius, Hamlet assume a fala de um louco como
forma de sobrevivência até que execute
sua vingança. O diálogo abaixo,
retirado do texto da peça de Shakespeare, demonstra
como a fala do príncipe
toma as palavras em um sentido descolado daquele utilizado comumente, quando interpelado por Polônio a respeito do que lê:
LORD POLONIUS
[...] what do you read, my lord?
HAMLET
Words, words, words.
LORD POLONIUS
What is the matter, my lord?
HAMLET
Between who?
LORD POLONIUS
I mean, the matter that you read, my lord. [...]
(Aside) Though this be madness,
yet there is method in’t.
– Will you walk out of the air,
my lord?
HAMLET
Into my grave?
LORD POLONIUS
Indeed that’s out of the air. Aside
How pregnant sometimes his replies are! (Hamlet, II, 2, 187 – 204).
Em Hamlet, podemos
ver como a loucura assumida
pelo herói, enquanto
efeito de linguagem,
torna-se uma forma de sobrevivência do príncipe. Hamlet passa a ser percebido como um louco justamente por se recusar a atribuir àquilo que diz lógica ou significados únicos,
delegando àqueles que o escutam
a tentativa de dar sentido
final ao seu discurso,
fazendo com que os outros
personagens efetuem um exercício de tradução de suas falas: “What is the matter
my lord?”, pergunta Polônio
após a resposta sem sentido.
No ensaio “Hamlet and the Power
of Words” (1995),
Inga-Stina Ewbank afirma
que
o próprio Hamlet está, ao longo de toda a peça, tentando encontrar
uma linguagem com a qual se expressar,
assim como linguagens com as quais se comunicar
com os outros; e, a seu redor, os membros da corte
de Elsinore empreendem atos de tradução, quer para favorecê-lo, quer para prejudicá-lo (EWBANK, 1995,
p. 59, tradução minha)17.
Assim como Hamlet em seu castelo,
o eu-lírico que nos conduz pelo Elsinore
que o poema tenta representar somente pode se referir a esse lugar a partir
de um trabalho com a língua que seja capaz de deslocar as palavras de seus significados cristalizados pela fala quotidiana, para fundar uma nova realidade através
da poesia. Dessa maneira, se há qualquer
mudança observável entre aquilo que há “entre nós e as palavras”
na passagem da primeira estrofe
– na qual se afirma que “há metal fundente” ou “há hélices
que andam” – para a segunda estrofe
– onde encontramos “há palavras de vida”, “há palavras imensas” ou “há palavras acesas como barcos” –, podemos tomá-la como uma manifestação da percepção a respeito daquilo que Perfecto Cuadrado chama de “força
genésica da linguagem, a capacidade das palavras
para criar realidade” (2002, p. 283). Da mesma forma,
Ewbank reconhece como,
na peça shakespeariana, “o mistério da comunicação humana é encenado
e o poder das palavras demonstrado: aquilo que dizemos – e, ao dizer, fazemos – uns aos outros, criando e destruindo
continuamente” (EWBANK, 1995, p. 60)18.
Nesse
sentido, podemos perceber
como há uma transformação progressiva das palavras sobre as quais o poeta fala ao longo do poema, “criando e destruindo” à medida que este se desenvolve. Assim,
na primeira estrofe,
vemos como os elementos “entre
nós e as palavras” remetem à censura, a imagens negativas
e violentas com as quais se fundamenta a ideia de que há uma interdição brutal entre aquilo
que desejamos e aquilo que realmente podemos falar. A repetição da expressão “entre nós e as palavras
há” três vezes nessa estrofe aponta certa dificuldade do poeta em iniciar o trabalho com as palavras.
O efeito de gagueira causado pelas repetições anafóricas reafirma a dificuldade de comunicação e provoca uma sensação de impotência angustiante naquele que lê. Podemos nos imaginar a escrever, ou a falar, ou nos colocar em qualquer situação
que exija nossa expressão através
de palavras, e nos vermos,
imediatamente, confrontados com a mesma questão: existe uma barreira
entre o que quero
e o que posso dizer.
Assim, o “nós”
que identifica leitor
e eu-lírico é uma união resultante do reconhecimento da condição comum à qual estão sujeitos
todos os homens. Porém, o “nós” que remeteria ao coral neorrealista e apelaria à identificação de Elsinore com o Estado Novo surge, aqui, cindido, uma vez que o espaço “entre nós e as palavras”
expõe a impossibilidade comunicativa e incapacidade momentânea
de se superar esse hiato. As
lacunas entre as palavras dos versos 3 e 7 reforçam a imagem da interdição e da gagueira:
Entre nós e as palavras
há metal fundente
entre nós e as palavras
há hélices que andam
e podem dar-nos
morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheio
de gente de costas
altas flores venenosas portas
por abrir
e escadas
e ponteiros e crianças sentadas
à espera
de seu tempo e do seu precipício (CESARINY, 2004, p. 34, grifos
meus).
Na segunda
estrofe, entretanto, encontramos justamente aquela “força
genésica da linguagem”
sobre a qual falava Cuadrado:
Ao longo da muralha
que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas,
que esperam por nós
e outras,
frágeis, que deixaram
de esperar
há palavras
acesas como barcos
e há palavras
homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição (CESARINY, 2004, p. 34).
Agora,
não encontramos mais os elementos
violentos do espaço
“entre nós e as palavras”, mas as próprias palavras
que existem “ao longo da muralha que habitamos”. Nesse
sentido, o poeta não nos fala da impossibilidade de expressão, mas aponta a possibilidade de um encontro
libertador com as palavras. A citação de “O sentimento
dum ocidental” que notamos no primeiro verso dessa
estrofe convoca a “escuridão” das “horas mortas”
do poema de Cesário Verde para dentro
do poema de Cesariny e, assim como notamos anteriormente a respeito de seu título,
permite que se fale do espaço onde esse “nós” habita. Como afirma Cuadrado,
“no interior desses muros, apesar da evidência
do abismo, sempre existe a possibilidade de criar ou reinventar a realidade pela força conjuradora, convocadora, invocadora e criadora
da linguagem” (2002, p. 284) – através,
também, do encontro
com as palavras alheias.
Portanto, aquelas “palavras imensas, que esperam
por nós”, podem ser
tomadas como as palavras que já foram ditas, ou escritas, por outros, à espera do encontro
com um leitor, assim como Mário Cesariny
encontrou as palavras
de Cesário Verde. Dessa maneira,
as próprias palavras
serão capazes de iluminar a escuridão onde habitam os que estão “emparedados, / Sem árvores,
no vale escuro das muralhas...!” (VERDE, 1977, p. 102),
uma vez que “há palavras
acesas como barcos” e aqueles que foram violados e tiveram seus “mais
úteis segredos” tirados de si pelas “hélices que andam” podem encontrar,
“ao longo da muralha”, “palavras que guardam / o seu segredo e a sua posição”.
A terceira estrofe
do poema retoma o refrão
“entre nós e as palavras”. Agora, porém, o advérbio de modo que se segue à expressão
introduz uma nova perspectiva para pensarmos o espaço
de interdição, a qual diz respeito não apenas ao dizer, mas ao ouvir:
“surdamente”. Isto é, as paredes de “Elsenor” – uma grafia distinta do “Elsinore” da peça de Shakespeare e do
título
do
poema 19 –
não
têm
ouvidos
(um
tanto
como
o
rei
Hamlet),
mas
mãos.
A
incapacidade das “paredes de Elsenor” de escutarem
abre uma via de resistência dentro dos muros, algo que é reforçado pelos
versos seguintes: “E há palavras
e nocturnas palavras gemidos / palavras que nos sobem ilegíveis à boca”, palavras
que só existem no encontro noturno de amantes, na “surdina”, as quais não deixam de ser tentativa
de comunicação. As palavras são “palavras diamantes” que não se tornaram “palavras grafites” e nunca serão
“escritas”, apesar da idêntica composição química dos minerais,
são “palavras impossíveis de escrever”, contudo,
são palavras [de amantes].
Os versos seguintes,
introduzidos pela conjunção
explicativa “por”, são os únicos que pretendem
justificar o silenciamento, ou localizar a experiência do emparedamento numa ordem lógica, apresentando os elementos necessários para a escrita das palavras.
Seria necessária a união de três elementos que são o âmago, a parte mais fundamental para a garantia da sobrevivência dos universos aos quais pertencem
– “cordas de violinos”, “todo o
sangue do mundo” e “todo o amplexo do ar”: o coração de uma orquestra sinfônica, convocando a música e a arte; toda a vida, ou todo amor, do mundo; e toda respiração, ou todas
as vozes, do mundo. A falta de ar que sentimos após a leitura
em voz alta do verso
“nem todo o sangue do mundo nem todo o
amplexo do ar”, o mais longo de
todo o poema, reforça a imagem por ele convocada e apela ao silêncio antes que retomemos
a leitura do poema.
“Silêncio, para que eu passe lá onde ninguém jamais passou, silêncio! – Depois de ti, minha bela linguagem” (BRETON, 1992, p. 276)20, diria André
Breton.
Encontramos novamente as palavras de amantes
nos versos seguintes. Neles, podemos
notar a aposta em outra forma de liberdade – se a “muralha que habitamos” não pode ser ultrapassada por terra, ainda é possível
voar. Na sequência dos versos, percebemos uma valorização de união absoluta
com o outro, seja ele amante ou mãe, e um apagamento do excesso de significados das palavras, sentido especialmente na aliteração da sibilante nos dois últimos versos dessa estrofe,
a qual leva a um progressivo silenciamento no interior do poema:
e os braços dos amantes
escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados
morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só
solidão desfeita (CESARINY, 2004, p. 35, grifos meus).
Assim,
se “a distância entre a palavra e o objeto
[...] é precisamente o que obriga
cada palavra a se converter
em metáfora daquilo
que designa” (PAZ, 1982, p. 43), é necessário que a criação poética seja feita “como
violência sobre a linguagem” (PAZ, 1982, p. 47). Dessa maneira,
para que atravessem
o espaço “entre nós e as palavras”,
é preciso que as palavras do
poema se convertam exatamente naquilo
que nomeiam: sejam “sombra”, “soluço”, “espasmo”, “amor”,
“solidão desfeita”. Nesse ponto, “you are welcome
to elsinore”, da mesma forma
que “tal como catedrais”, parece
querer “dar descanso
a estas senhoras”, apostando no diálogo amoroso com o outro como alternativa à censura imposta pelo discurso dominante.
O dístico final do poema,
aquele que encerra
“a concentração da lição de poética” (GUSMÃO, 2010, p. 398), retoma a expressão
central “entre nós e as palavras”, repetida em ambos os versos.
A insistência da mesma construção do verso inaugural, nessa estrofe, nos leva
a crer que aquela primeira
resistência percebida pelo poeta não foi ainda ultrapassada.
Nesse sentido, a cena representada ao longo de todo o poema é a de uma preparação da escrita, na qual o eu-lírico que nos interpela
parece gaguejar em sua tentativa
de expressão. Assim como no poema analisado na primeira seção, a encenação
do ato de escrita que vemos
representada em “you are welcome
to elsinore” não coincide com a escrita
do poema que estamos a ler. Se, no primeiro,
vemos uma cena final, posterior
à escrita de uma “Obra”, no
segundo, encontramos um poeta preparando-se para escrever, ainda às voltas com um “dever
falar” que indica a realização futura do ato poético.
Nessa
estrofe, encontramos, novamente,
aqueles mesmos versos do poema de Cesário Verde, cuja marcante imagem do emparedamento nos revela algo a respeito
de nossa própria condição humana.
Aqui chegados, porém,
podemos perceber como o que inicialmente se apresentava como um problema,
como algo a ser superado,
aquele “perturbante intervalo
[...] entre nós, os
emparedados, aqueles que estão prisioneiros entre as paredes da cidade moderna ou entre o pouco de realidade que nos querem
impor como todo o real acessível e as palavras”
(GUSMÃO, 2010, p. 398), já não parece ser tomado como um obstáculo. A percepção de que nossa relação com a realidade é pautada pela linguagem apresenta-se como uma possibilidade de solução tanto para o eu-lírico cesarinyano quanto para o personagem shakespeariano. O argumento de Ewbank, segundo o qual “o que as vozes silenciosas na peça têm em comum
com as vozes sonoras e eloquentes é a crença na importância da fala” (EWBANK,
1995, p. 61)21, não deixa
de nos soar muito familiar: “entre nós e as palavras, o nosso dever
falar”. Dessa forma, o “dever” que se coloca ao fim do poema não é percebido como uma condenação,
ou uma obrigação violenta que retomaria a imagem da tortura representada nos versos 2, 3 e 4, mas como um dever ético a ser cumprido
pelo poeta. Assim como Horácio
ao
fim
da tragédia de Shakespeare, o poeta carrega
consigo a tarefa
fundamental de “falar”, fundando, através de um diálogo amoroso,
uma nova realidade que seja possibilidade de liberdade. O poeta que se põe ao trabalho,
“não, certamente, em busca da salvação, mas da verdadeira vida” (1980, p.29)22, como afirma Octavio Paz.
A princípio estreitamente ligado a uma concepção neorrealista do fazer poético,
o compromisso ético representado pelo “nosso dever” que se coloca ao fim do poema, no entanto, parece depender fundamentalmente do encontro com o outro: trata-se do “nosso
dever falar”. Seria, como afirmamos
ao final da seção anterior,
um falar “na intenção de” e não “no lugar de” – uma mudança fundamental na concepção do canto coletivo
neorrealista, como nota Rosa Maria Martelo
em relação à poética de Carlos de Oliveira. Dessa forma, a intenção ética
na poética cesarinyana e a forma de
“intervenção” à qual se dedicará
o surrealista parecem contemplar uma mudança na concepção do interlocutor ao qual se dirige e do papel que o sujeito poético representa dentro da poesia, cujos primeiros
traços já podemos notar na problematização do sujeito plural que se apresenta nos dois poemas sobre os quais
falamos neste capítulo. A defesa dos surrealistas portugueses de uma atividade poética individual, como pode ser observado no “Comunicado dos surrealistas portugueses” (1981), parece corroborar essa hipótese. Afirmam
Cruzeiro Seixas, João Artur Silva e Maria Henrique Leiria que
em Portugal,
estando, como estamos, limitados por
todos os lados, só temos à nossa frente
a feroz presença
do desejo individual para lutarmos contra
a extinção do Homem que o estado vai realizando sistematicamente e não podemos, portanto, enfileirar em qualquer partido que, a título de futuras liberdades políticas (ou outras quaisquer) nos faria cair fatalmente noutra
ditadura. Também não acreditamos que o seguir esta ou aquela
tendência estética que, a título
de revolucionária, pretenda
criar outro tipo de academismo, fosse de qualquer
maneira suficiente para nos levar
à libertação desejada (LEIRIA; SEIXAS; SILVA, 1981,
p. 151-152).
Declaradamente contrário à poética neorrealista, e à sua busca por abarcar uma coletividade dessubjetivada representada por uma voz coral,
o projeto poético
surrealista e cesarinyano propõe uma mudança de voz dentro
da poesia, como veremos nos poemas que apresentarei no próximo capítulo.
A afirmação
final de “you are welcome to elsinore”,
portanto, aponta um imperativo
_________________
13 Cf. BRETON, André. “Introduction au discours sur le peu de réalité”
(1992 [1924]).
14 “Les mots sont sujets à se grouper selon des affinités particulières, lesquelles ont généralement pour effet de leur faire recréer à chaque instant le monde sur son vieux modèle . […] Il suffit que notre critique porte sur les
lois qui président à leur assemblage. La médiocrité de notre univers ne
dépend-elle pas essentiellement de notre pouvoir d’énonciation?” (BRETON, 1992, p. 275-276).
Todas as citações desse
texto foram traduzidas por mim.
15 Perfecto Cuadrado explora essa comparação
apoiando-se, também, na obra do surrealista Alexandre O’Neill: “A referida
obra do dramaturgo inglês foi aliás reiteradamente invocada
para assinalar obliquamente a miséria da ‘prisão’ do Portugal
salazarista, e baste para isso lembrar o lugar explicitamente nomeado por O’Neill – No Reino da Dinamarca”
(CUADRADO, 2002, p. 282). Ao inventário surrealista de comparações entre a Dinamarca de Shakespeare (que, como alguns autores
defendem, é também uma comparação
entre o contexto político dinamarquês representado
na tragédia e aquele da Inglaterra
no momento de suas primeiras encenações) e o Portugal de Salazar, gostaria de acrescentar outro poema de Cesariny:
“elogio do príncipe da dinamarca”, publicado originalmente em Nobilíssima visão (1959), presentemente publicado na seção “visualizações” de Manual de prestidigitação (2008).
16 Para tal, poderíamos tentar resumir o drama
shakespeariano da seguinte maneira: o rei da Dinamarca, Hamlet, é morto e sua viúva, Gertrude,
casa-se com seu cunhado,
Claudius. Uma noite, o príncipe Hamlet,
filho da rainha com o falecido
monarca, é visitado pelo fantasma do pai e este lhe revela a verdade a respeito de sua morte: ele fora envenenado no ouvido, durante a noite, a mando de seu irmão, que agora ocupa o trono real. No encontro com o espectro, o jovem Hamlet promete
vingança para que o espírito
do pai descanse em paz. O primeiro
plano que executa consiste em
convidar atores ao seu castelo, Elsinore, para que encenem um drama cujo enredo
seria exatamente idêntico
aos acontecimentos narrados
pelo espectro a respeito de seu assassinato, para que o rei ilegítimo, ao ser confrontado pela peça, confessasse seu crime. O plano não é bem-sucedido e Claudius percebe as intenções de Hamlet. Desejando livrar-se
das ameaças do sobrinho,
planeja seu assassinato e convence os outros personagens de que Hamlet teria ficado louco
após a morte do pai. Atormentado pela responsabilidade da empreitada e tendo assumido
o papel de louco a ele imputado,
Hamlet vê seu desejo de vingança
causar um banho de sangue iniciado com o suicídio
de Ofélia, seu “par”, seguido
dos assassinatos de Polônio, pai de Ofélia, de seus amigos Rosencrantz e Guildenstern e de sua mãe, culminando com as mortes
quase simultâneas de Claudius, de Laertes, irmão da jovem, e da sua própria.
17 “Hamlet himself is throughout the play trying to find a language
to express himself
through, as well as languages to speak to others in; and round him – against him and for him –
the members of the court of Elsinore are engaging in acts of translation” (EWBANK, 1995, p. 59). Todas as traduções de Ewbank são minhas.
18 “the mystery of human intercourse is enacted and the power of words demonstrated: what we say, and by saying do, to each other, creating
and destroying as we go along” (EWBANK,
1995, p. 60).
19 Em uma palestra que proferi em fevereiro de 2016 na Faculdade de Letras da UFRJ, Mariana Gonçalves
dos Santos reconheceu, nessa diferença de grafia, as palavras “el señor”. Acredito
que a leitura é pertinente e aprofunda a discussão
a respeito da comparação
entre Elsinore e Portugal. Assim, a personificação de Elsenor, ao qual são atribuídas
mãos além de paredes,
revelaria uma comparação
entre o suposto “el señor” e o próprio Salazar.
20 “Silence, afin qu’où nul n’a jamais passé je passe, silence! – Après toi, mon beau langage”
(BRETON, 1992,
p. 276).
21 “what the still small voices in the play have in common with the loud and eloquent
ones is a general belief in the importance of speaking” (EWBANK, 1995, p. 61).
22 “No, ciertamente, en busca de salvación, sino de la verdadera vida” (PAZ, 1980, p. 29).
Maria Silva Prado Lessa, O poema como palco: algumas cenas da escrita de Mário Cesariny, Rio de
Janeiro, 2017.
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- “Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro
Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/19/elsinore.aspx
Última atualização: 2020-01-02
Última atualização: 2020-01-02