domingo, 5 de janeiro de 2020

pena capital, Cesariny



pena capital

O Poeta, exorcismando ao seu atelier nos astros:
das páginas do livro jovialmente aberto
primeiro os pés     depois a cabeça     sais tu
não estás nada parecido
mas és sem dúvida o que se pôde arranjar

Olho-te no meu espelho de atravessar os mares
olho-te com simpatia com anterior amizade
respiras
tu respiras!
e deste um passo para o lado como quem chega
um pouco mais a si o seu ar pessoal

Caramba caramba António
estás muito mais parecido
ou então era eu que não me lembrava
Olha hoje o teu clima está magnífico
olha vamos sair desta cidade
onde o teu clima é sempre para dividir por cinco
vamos para as praias da alma arrebentar-nos vivos
vamos ser os heróis duma tragédia química
e convidamos o Azul por uma questão de princípio

O Azul, entrando:
Azul criado incriado
azul de todas as cores
dos caminhos anteriores
ao mistério revelado

António, erguendo-se agressivo:
Tu não és o azul tu és a morte
tu
estás feito com os meus olhos
fora daqui para fora
desaparece ou passo-te o automóvel em cima

O Azul:
Teus olhos lugar geométrico teus olhos estrada marinha
teus olhos vivos por dentro teus olhos treva exemplar

António:
Fora! Fora!

O Poeta:
Então que é isso rapazes estamos atrasados
toca a andar para o comboio meu amigo
e tu António cautela
estás mais que parecido vai ser mau continuar

António chora, contrariado. E assim vão para o comboio,
que os leva para o mar.

O Mar:
Eu faço a tempestade...

O Poeta:
Oh!

O Mar:
Eu, só, criei a terra por retirada minha...

O Azul:
Oh!

O Mar:
Eu dei o nome às pessoas...

O Azul e o Poeta:
Oh!

O Poeta, para António:
O Mar não nada às pessoas
O Mar é mau
O Mar o mais que é uma alma
negócio de bruxas rrrrr

O Mar, para António:
Escuta, corpo meu, meu filho natural...

António entra na água.

O Poeta e o Azul, ajoelhados na areia:
Deus o guarde do Espírito do Mar!

António, gritando no banho:
Quando eu for pequenino aumentará o mundo
Tudo me será dado por acréscimo!

Passa uma flor perseguida pela Morte.

Flor:
Bom dia, boa noite.

Desaparecem. António volta do banho,
António, O Azul e O Poeta comem figos e é chegada a hora da lição.
Dão-se humanidades, germânicas e ciências naturais.
O Azul ponta a lição servindo-se de um livro especialmente disposto.

O Poeta:
Pão a cozer...

António:
...Menino a ler.

O Poeta:
Fogo na palha...

António:
...Canta o canalha.

O Poeta:
Pouca atenção...

António:
...Cornos no chão.

O Azul, virando a página:
Virou!!

O Poeta:
Enterocolites...

António:
...Frederico Nites.

O Poeta:
Delirium trémos...

António:
...Dá os remos.

O Poeta:
Externo-cleudo-mastoideu...

António:
...Foi uma mulher que o perdeu.

O Azul, virando a página:
Virou!!

O Poeta:
A noite...

António:
...Não me lembro...

O Poeta:
A noite...

António:
...É o corvo em liberdade

O Poeta:
A Águia...

António:
...É o amor na cama

O Poeta:

Os Poetas...

António:
...São os mais fortes condutores-isoladores da corrente poética

O Azul:
Novalis.

O Poeta abraça António dando por finda a lição.
Passam então, em velocidades conformes:
Um barco a que faltam os pulmões
Goethe em cima dum plinto onde segue também o seu segundo Fausto
Um Frade que arrasta Ofélia pelo bico.
Reaparece a Morte com a Flor na lapela.

António:
Salvemos Ofélia!
Salvemos a pureza que vai pela mão
Salvemos o doce cabelo
Salvemos, pelo menos, o braço.

Corre atrás do Frade que puxa dum pau e para baixo
bem em cima da cabeça de António que se agarra ao Frade
e luta com ele, esquecendo-se ambos de Ofélia,
que se atira ao mar.

António, largando o Frade:
Ofélia! Ofélia!

O Frade desaparece transformado em lobo.

António, chorando:
Poeta!...

O Poeta:
Não.

António, chorando:
Poeta!...

O Poeta:
Não.

António lança-se ao Mar, onde flutua ainda
o branco corpo de Ofélia.
O Poeta e O Azul impedem-no de se afogar
dançando com ele animada sarabanda
que em estreitos movimentos circulares
os começa a subir pelo espaço fora.

António:
Olha olha os países.

O Poeta:
Não são mais do que três.

O Azul:
Eu vou acelerar vertiginosamente.

Acelera vertiginosamente. António começa a vomitar
nuvens de borboletas brancas e azuis, e a cabeça pende-lhe
ligeiramente para o lado, forma expressiva de dizer
que não se sente bem.

O Poeta:
Dança! Dança! Dança!

O Azul: Marialfabeta
Iowanalfabeta
Ariana alfa beta

Os Astros:
Um, três, cinco, sete, dez!
Dois, quatro, cinco, oito, um!

Voz, dentro duma nuvem:
Deixem passar Deus! Deixem passar Deus!

Passa Deus, seguido dos seus Anjos
e dos seus Animais.

António:
Eu amava, tu amavas, ele amava...

O Poeta, analisando à lupa os olhos de António:
De olhos para olhos a distância aumentou.

Passam então por um pequeno Olimpo
que anda a voar perdido de referências.
Os Deuses abandonam os jogos do costume e montam
observatórios-periscópios por onde estudam o grupo voante.
Zeus consulta a Máquina de Consultar Os Astros.
A Máquina de Consultar Os Astros diz o seguinte:
Um, dois, dois, três, um.
Das janelas dos terraços alguns Deuses mais importantes
escrevem em alvos cadernos individuais observações pertinentes
sobre o número e o propósito dos intrusos.

Caderno de Ares:
Tudo o que usa chapéu lhes diz respeito
Tudo o que à noite brilha conta com eles
Todo o anjo vestido de diamante
Toda a hora de luto e crueldade

Caderno de Zeus, em caracteres estenográficos:
São mágicos cartógrafos amando
pelos bolsos das calças A Montanha

Caderno de Afrodite Anadiómena. (Letra crispada, irregular,
denunciando  perturbação):
Vêm da Terra! Nada
pode salvá-los!
Nem as Torres do Reino das Pacientes Esperas
nem as rosas da mais solene exéquia!
Pelo espelho das suas pernas nítidas
pela curva dos seus braços     desce um pássaro
de límpida memória
e uma frota de cardos luxuosíssimos
segue-os para sempre      para toda a vertigem

Caderno de Afrodite Urânia:
São quatro! QUATRO! Aliás, cinco mil
pronunciados por crimes de aparição na duna
junto à terra da Ilha dos Amores
na pálpebra de sol que me deixaram
vêm exaustos de esperança, exaustos de água,
respirando pelas mãos, ouvindo atónitos
a música da guerra que levantam

Zeus, num grito:
Que cesse todo o trânsito
entre um corpo e outro corpo RODA E ESTRADA!!

Uma Vendedeira de Fruta, fechando as portas do Olimpo:
Estranha gente. Sem música. Sem armas
e bela, apenas, da sua própria beleza...

O Poeta, num murmúrio:
Para uma boca, outra boca, para um leito, o telhado.
Nem sempre, como se diz, a batalha é de flores.

Passa lentamente uma rosa.

António:
Olha olha uma rosa.

O Poeta, num repente:
As rosas deviam deixar de saber tão bem que são rosas
As rosas incomodam-me quando se põem assim
Com o ar de quem diz: Olha, este não é uma rosa
no seu jardim

O Azul:
Ó rosas catedráticas!      Esplendorosíssimas  rosas!

António:
Morte, morte, morte.

Dito o que, desfalece. É óbvio que vai morrer.
O Poeta e o Azul carregam-no para cima de uma cama de folhelho,
.
 
acendem duas candeias e velam a seus pés
Um vulto muito alto que parece pairar na vastidão dos ares,
mas que em verdade se dirige para eles a uma velocidade vertiginosa,
é A Morte.

António, delirante:
Poeta! Meu Poeta!

O Poeta, deitando sangue pelos ouvidos:
Eu vejo! Eu vejo! EU VEJO-TE!!

O Azul, soprando as candeias e gritando no escuro:
Dança!

O espaço tem agora a cor dos olhos de António.

Voz do Mar, falando de baixo:
Eu sei as bodas químicas do princípio e do fim
Eu, só, criei a Terra por retirada minha
Eu sei os grandes espaços intervalares
Eu sei Ofélia...

António:
Ofélia...

O Poeta:
Muito parecida, António, muito parecida.

Voz da Terra, falando de baixo:
Ah se toda a viagem fosse para mim
e todos os navios me buscassem!

A Morte, tocando a fronte de António:
HOME SWEET HOME

António morre.
 O Azul, o Poeta, o Desmaiado e a Morte,
 descem em lentidão pelo ar abaixo.

Voz, dentro duma nuvem:
Não deixem passar Deus! Não deixem passar Deus!

Não passa Deus, seguido dos seus Anjos e dos seus Animais.
O Poeta regressa ao seu atelier nos astros,
que a sua governanta encheu de flores.
Faz café, que ingere em goladas pequenas,
sentado abstracto em cima do telhado.
Chora um pouco e murmura, olhando o céu escuro:
Sou um rio injusto, com margens de labaredas,
Se me navegam, gelo, se me fogem, queimo.

Assim acaba este estranho poema, o último
de nome religioso escrito pelo Autor.

Mário Cesariny de Vasconcelos. Pena capital.
Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, pp. 78-90. (1.ª edição: 1957)



O poema como palco: “pena capital”.

Nos capítulos anteriores, propus, como um dos aspectos fundamentais da poética que Mário Cesariny se dedica a definir, a centralidade do encontro e do diálogo amorosos com o outro: a convocação de uma segunda voz como maneira de fazer soar a própria fala do poeta. Nesse sentido, foi necessário refletirmos acerca do “nós” composto da relação entre um “eu” e um “tu” e avaliarmos a identidade de cada um desses “personagens”. A relação conflituosa com a tradição declarada em “tal como catedrais” e em you are welcome to elsinore e a apropriação de outras poéticas como forma de fundação da identidade do sujeito poético – como lemos em autografia I e em a antonin artaud mostraram como o encontro amoroso e fundente com o outro é indispensável no trabalho de Cesariny.
Neste capítulo, a cena na qual “eu” e “tu” se encontram se passa num espaço cuja localização excede os limites terrenos da cidade: no atelier nos astros d’O Poeta36. A estrutura do poema é muito distinta das observadas nas composições dos capítulos anteriores, pois, se tomei os poemas de Cesariny analisados até aqui como palcos onde se desenvolvem cenas de escrita, na composição que motiva este capítulo, a “cena” deixa de ser uma metáfora de leitura e se literaliza num “poema em drama”, distinto do “poema dramático” clássico em alexandrinos, contando com rubricas do autor, as quais apontam nomes de personagens, indicações de entrada e de saída destes e conduzem os diálogos travados ao longo da peça, apresentando características mais prototípicas de um “texto dramático” (PAVIS, 2011, p. 404- 406). Trata-se do poema “pena capital”, publicado no livro homônimo de 1957, cuja cena inicial se passa no interior dum atelier, onde se encontra O Poeta, personagem principal do poema-drama.
Em consonância com autografia I”, poema no qual o sujeito poético afirma que seu “nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado à morte”, a pena capital do título do poema que analisarei a seguir também é uma sentença tirânica imposta ao Poeta que empreende o trabalho de leitura e de escrita, como verificamos principalmente nas falas finais desse personagem. Em carta enviada a Cruzeiro Seixas no ano de publicação do livro, Cesariny escreve as seguintes palavras a respeito da brochura e do poema:

o meu livro dito Pena Capital capital para todos, sem esquecer o autor chegou às livrarias. Vou fazer-to chegar apesar de, ao que me parece, não tenhas tomado na devida conta a matéria constante do poema que nome ao livro e que não é outro senão o que tens, mal titulado: António o Azul o Poeta. Pena Capital, é mais correcto (CESARINY, 2014, p. 135).

Avançando um pouco mais na interpretação da expressão que título ao poema e ao livro, é possível afirmar que “pena capital” remete não apenas a uma sentença proferida por um tribunal a pena de morte –, mas à pena do trabalho de escrita, levando a crer que a pena utilizada é capaz de transcender o papel e inscrever-se para além dele. Sobre esse aspecto, veremos como o trabalho empreendido pelo Poeta resulta na ressurreição do surrealista António Maria Lisboa, falecido em 1953, e na possibilidade de mais um encontro com o amigo perdido, indicando ainda outra manifestação da “força genésica da linguagem” (CUADRADO, 2002, p. 283), valorização, portanto, do caráter performativo da linguagem poética surrealista. Em “Esclarecimento a um crítico”, texto publicado em A intervenção surrealista (1997), mas datado de 1949, o próprio Lisboa afirma que

[a] actividade surrealista não é [...] uma simples libertação de coisas que chateiam, mas um golpe fundo, e de cada vez que é dado, na realidade presente... Não é mero exercício para se dormir melhor na noite seguinte, mas esforço demoníaco para se dormir de maneira diferente (LISBOA, 1997, p. 175).

Abordar o aspecto dramático desse poema significa salientar de que forma Cesariny exerce a função de autor e encenador da atividade poética, percebendo sua maneira não apenas de escrever essa cena, mas de criar um todo significativo a partir da disposição de diversos elementos convocados a contracenarem sobre um mesmo palco. Assim, será possível perceber como os diálogos com outros textos reincidem como a base de construção de sua poética, conforme percebemos na apropriação de diversos símbolos da tradição ocidental, em particular a portuguesa, e sua transformação em personagens convidados a entabularem um diálogo literal com o Poeta ao longo de uma viagem cósmica que vai desde seu atelier nos astros”, passando da Terra para O Mar, do Mar para o céu, numa ascensão vertiginosa, ultrapassando Deus e o Olimpo, para cair, novamente, no atelier do Poeta. Retomando, assim, a temática do diálogo como fundamento das cenas que se apresentam nos poemas de Mário Cesariny trabalhados até aqui, creio ser possível perceber como os movimentos de deslocamento e de apropriação da tradição se radicalizam no poema que leremos a seguir, fazendo com que a fundação da poética cesarinyana seja exemplificada em forma de espetáculo.

O longo poema pena capital” explora as possibilidades de criação de uma nova realidade a partir da potência evocatória das palavras e de seu poder de “golpear a realidade presente” (LISBOA, 1997, p. 175). Sua cena de abertura apresenta um momento de leitura-e- escrita, na qual o Poeta, ao exorcismar ao seu atelier”, sair, das páginas do livro”, o amigo António, com quem irá empreender uma viagem cósmica durante a qual os dois personagens, junto a um terceiro o Azul –, encontram-se com símbolos de certo imaginário marítimo caracteristicamente português. Através das páginas do livro jovialmente aberto”, testemunhamos a animação desses símbolos e sua transformação em personagens “duma tragédia química”, bem como a ressuscitação de um dos maiores poetas do surrealismo português, António Maria Lisboa, falecido quatro anos antes da publicação do poema. Com a leitura de um livro, atividade que parece equivaler a um trabalho criativo de escrita, António volta à vida e respira:

Olho-te no meu espelho de atravessar os mares
olho-te com simpatia    com anterior amizade
respiras
tu respiras!
e deste um passo para o lado como quem chega
um pouco mais a si o seu ar pessoal

Caramba caramba António
estás muito mais parecido
ou então era eu que não me lembrava
(CESARINY, 2004, p. 78).

Publicado originalmente como o poema final do livro Pena capital37, “pena capital” é construído como um texto dramático, contando com indicações cénicas destinadas a “esclarecer ao leitor a compreensão ou o modo de apresentação da peça” (PAVIS, 2011, p. 206), como define Patrice Pavis, em seu Dicionário de teatro. Aos diversos personagens que encontramos ao longo do texto, Cesariny atribui, para além de falas, marcas de entrada e de saída, apresentando comentários de atuação e descrições dos lugares onde se passam as sucessivas cenas da peça. Ao contrário, porém, do que se observa comumente em textos dramáticos escritos, os quais apresentam um “texto principal” (PAVIS, 2011, p. 409) que corresponde às falas dos personagens e um “texto secundário” (PAVIS, 2011, p. 409) – constituído das rubricas do autor e que não é pronunciado pelos atores –, as indicações cênicas espalhadas pelo poema de Cesariny devem ser lidas como falas de um personagem que encontraremos apenas ao final da peça, o Autor. Uma pista de sua existência, no entanto, é dada ainda na primeira cena do poema, na qual podemos observar como uma rubrica rima com os versos que compõem as falas dos personagens, como na passagem a seguir, quando a musicalidade da fala do Poeta ressoa nas rubricas do Autor:

O Poeta:
Então que é isso rapazes estamos atrasados
toca a andar para o comboio meu amigo
e tu António cautela
estás mais que parecido vai ser mau continuar

António chora, contrariado. E assim vão para o comboio,
que os leva para o mar
 (CESARINY, 2004, p. 79).


O encontro entre esses dois “níveis” de construção do drama, aquele do universo dos enunciados dos personagens e o das anotações a respeito deles, revela uma instância metateatral (ou mesmo metapoética) desse texto, indicando uma construção similar a uma mise en abyme, efeito reforçado pela afirmação encontrada, ao fim do poema, de que o Poeta é, na realidade, um personagem escrito pelo Autor que, por sua vez, está sendo escrito por um outro autor que se encontra fora do texto e que não é nomeado. O franqueamento das fronteiras entre esses diversos níveis de experiência, a dissolução das barreiras entre o textual e o extratextual, entre arte e vida, entre vida e morte, representa uma das características fundamentais do surrealismo francês das quais se apropriou a poesia de Mário Cesariny, conforme apontei em relação aos outros poemas analisados ao longo deste trabalho. A construção em abismo simula uma encenação de um palco-dentro-do-palco que ecoa, ainda, os diálogos com os teatros de Shakespeare e de Artaud que encontramos em “you are welcome to elsinore” e “a antonin artaud” e que pode ser percebida como uma marca característica da autorreferencialidade presente em artes poéticas, nas quais podemos perceber uma correspondência entre enunciado e enunciação.
No estranho poema acima, três personagens, o Poeta, António e o Azul, lançam-se em uma  viagem  quase  épica  durante  a  qual  encontram  diversos  personagens  e  espaços provenientes de certo imaginário cultural e poético português. Elementos marcantes dessa cultura mar, terra, astros e azul são transformados em personagens atuantes que intervêm no enredo do drama, e adotam características de seres animados. Cesariny destitui, assim, qualquer traço “natural” desses elementos e garante sua inserção em um universo estritamente cultural, no qual passam a ser O Mar, Voz da Terra, Os Astros e Azul, transformados não apenas em mitos, mas em personagens da cultura portuguesa.
Certamente, o tema da viagem e os personagens eleitos para comporem as cenas desse poema em drama levam-nos a crer que o diálogo intertextual fundamental em “pena capital” é entabulado com Os Lusíadas, de Camões. Podemos constatar, no entanto, certo apagamento desse poeta na obra de Cesariny, algo que é percebido quando buscamos, sem êxito, qualquer referência direta a ele. Sua aparente ausência nas publicações inaugurais de Mário Cesariny39 como Corpo visível (1950), Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano (1952), Louvor e simplificação de Álvaro de Campos (1953), Manual de prestidigitação (1956) e Pena capital (1957) contrasta com as diversas referências a outras obras que se espalham por esses livros, uma vez que o surrealista não hesita, como vimos nos capítulos anteriores, em citar explicitamente por vezes, nominalmente os poetas com os quais estabelece algum tipo de vínculo em sua poesia. O retorno a Camões é feito, portanto, de forma tortuosa e parece se dar através da leitura empreendida por outros poetas da obra camoniana, como Cesário Verde em “O sentimento dum ocidental”, ou Fernando Pessoa em Mensagem. Mário Cesariny retoma, assim, não apenas um livro ou uma obra determinada, mas um imaginário consagrado ao longo de séculos de cultura portuguesa.
Espaço percorrido pelos heróis ao longo da viagem épica e condutor da expansão do saber, bem como do encontro com o desconhecido, n’Os Lusíadas, lugar ao qual o herói dá as costas, como em Viagens na minha terra, ou lugar no qual se “escarra”, como nos poemas de Cesário Verde, o mar é imagem fundamental da literatura portuguesa, não apenas como a “via da glória nacional” (SILVEIRA, 1995, p. 7), mas como elemento cantado desde as cantigas trovadorescas, como não poderia deixar de ser em uma poesia peninsular. Em “pena capital”, Cesariny mantém a centralidade desse símbolo, uma vez que O Mar é o fio condutor e personagem-chave do drama, sendo alçado à posição suprema de um deus, mais potente que todos os outros personagens divinos referidos ao longo da peça, tendo, sozinho, criado “a terra por retirada” sua e de ter dado “o nome às pessoas”. O Mar é, no entanto, visto de forma negativa pelo Poeta, como percebemos na fala abaixo, na qual ressoa o “desdém” de Cesário Verde40:

O Poeta, para António:
O Mar não nada às pessoas
O Mar é mau
O Mar o mais que é uma alma
negócio de bruxas rrrrr
(CESARINY, 2004, p. 80).

Como destaquei também no primeiro capítulo deste trabalho, referindo-me à deriva das palavras “pelo mar fora cavando a sua avaria” (CESARINY, 2008, p. 151), parece haver uma trajetória percorrida também pelo personagem mar na literatura portuguesa. Para Silveira, tal trajetória resultou numa saturação do imaginário marítimo que exige, agora, a retomada da terra como paisagem (SILVEIRA, 2002). No poema de Cesariny, a terra, a quem os portugueses haviam dado as costas “para buscar do mundo novas partes” (Lus., IV, 85), é transfigurada numa voz que lamenta significativamente:

Voz da Terra, falando de baixo:
Ah se toda a viagem fosse para mim
e todos os navios me buscassem!
 (CESARINY, 2004, p. 90).

O desejo expresso pela Voz da Terra nos versos acima ecoa, também, o livro de Almeida Garrett, Viagens na minha terra (1846), cujo diálogo com Os Lusíadas se a partir da reelaboração da tradição camoniana (MARTELO, 1996, p. 299). Nesse processo, a recusa da viagem por mar aponta a necessidade de uma viagem na sua terra como uma declaração de “grande amor por tudo o que é português” (FERREIRA, 1999, p. 31). Em Cesariny, contudo, o lamento da Terra não parece corresponder a uma expressão de amor à pátria, mas a um antagonismo  verificável  entre  o  mar,  como  representante  do  imaginário  de  um  passado glorioso do qual se apropriou o Estado Novo, mas também como espaço a ser dominado segundo a ideologia colonialista, e a terra, enquanto lugar abandonado e degradado em consequência dessa mesma ideologia41. Como forma de oposição a ambos os símbolos, a viagem empreendida pelos personagens do drama de Cesariny não é marítima ou terrena, mas cósmica.
Se os personagens Poeta e Azul atribuem ao Mar características negativas e obscuras, como verificamos em sua fala em coro “Deus o guarde do Espírito do Mar!” –, António atua como se estivesse hipnotizado pelas águas. Em sua atração pelo Mar, na cena do banho, podemos perceber uma correspondência com o ensaio “Isso ontem único”, de António Maria Lisboa, sugestão de leitura dada por Mário Cesariny no texto “alguns vocábulos para a compreensão”, pequeno dicionário de termos surrealistas publicado em Pena capital, em 2004. Na entrada “MAR”, Cesariny anota:

MAR ...agitado, de água branca, atravessado, cavado, cruzado, desencontrado, desfeito, espelhado, esperto, estranhado, verde, em flor, de fora, grande, interior, lançado, largo, de leite, livre, vivo. Ver “Isso Ontem Único”, de António Maria Lisboa
(CESARINY, 2004, p. 197).

Se fizermos o que nos pede Cesariny, veremos que as características atribuídas ao “MAR” por seu amigo surrealista são, também, de uma potência incontrolável e fascinante, sendo o mar associado a todas as possibilidades de “amor”. No ensaio de Lisboa, lemos
Amor confuso, amor repetido, amor esotérico, amor mágico MAR mar perdido das conchas no meio do mar
mar de marés justapostas de amor num mar de marfim perdido no teu joelho de marfim
[...]
MAR para que não me chegam os olhos
mar branco de nuvens sobrepostas para lhe podermos passar por cima mar de esquecimento, de objectos sensíveis e distintos
mar onde guardei o aquário azul que trouxe até hoje na memória
e hoje te espalho para o mundo MAR
onde é possível e provável o envenenamento total da espécie onde descanso a minha mão esquerda sobre uma pantera negra e todos os dias mergulho em fogo

Amor sem nexo, amor contínuo, amor disperso MAR
[...]
MAR que flutua no MAR abusivamente medonho
amor esquecido, amor distante, amor insolente RAOMOMAR
(LISBOA, 2008, p. 90-91).

A partir do fragmento acima e da atuação do personagem António quando confrontado com o Mar, podemos perceber como as relações que o Poeta e António estabelecem com esse grande antagonista parecem se dar em termos de uma representação das poéticas de Cesariny e de Lisboa, respectivamente, e da forma como estas se referem ao mar.
No drama de Cesariny, o diálogo com a tradição parece inescapável. Nele, a convocação do “mar” é uma operação de apropriação de uma imagem consagrada pela cultura portuguesa. Nesse movimento de transformação do imaginário marítimo, Cesariny entra em diálogo com uma tradição de releitura da viagem épica, na qual os “mares nunca dantes navegados” (Lus., I, 1) camonianos transfigurados no “sinistro mar” (2010, p. 78) de Cesário, e no “Mar Portuguez” “salgado” de “lágrimas de Portugal” (1985, p. 82) pessoano, desaguam, finalmente, no mar crepuscular de Cesariny, que afirma, de maneira quase banal mas definitiva, “O Mar é mau”.
Na referência à Ilha dos Amores, Cesariny opera outro deslocamento. Ao contrário dos heróis liderados por Vasco da Gama que recebem a Ilha como prêmio de Vênus (Lus., IX), os viajantes cesarinyanos são percebidos como invasores, como lemos durante o consílio dos deuses no Caderno de Afrodite Urânia”:

Caderno de Afrodite Urânia:
São quatro! QUATRO! Aliás, cinco mil
pronunciados por crimes de aparição na duna
junto à terra da Ilha dos Amores
na pálpebra de sol que me deixaram
vêm exaustos de esperança, exaustos de água
respirando pelas mãos, ouvindo atónitos
a música da guerra que levantam
(CESARINY, 2004, p. 87).

Nessa fala, a conquista portuguesa deixa de ser vista como gloriosa, para ser tomada como um crime de invasão. Os personagens de Cesariny não são, como Gama e seus companheiros, viajantes que partem esperançosos e se tornam heróis orgulhosos de seus feitos. Agora, a esperança os cansa, a água os afoga e seus feitos são uma declaração de guerra.
Outro personagem ligado às viagens marítimas e terrenas, os astros, certeza de precisão e rumo, referências espaciais imprescindíveis para os viajantes, deixam de indicar, em “pena capital”, um caminho a ser seguido, uma vez que suas coordenadas passam a ser confusas e ilógicas. A fala matemática, que sugeriria uma progressão lógica e previsível, é destituída de precisão e surpreende pela ruptura sequencial:

Os Astros:
Um, três, cinco, sete, dez!
Dois, quatro, cinco, oito, um!
(CESARINY, 2004, p. 86).

A primeira sequência mostraria a progressão dos números ímpares, não fosse pelo aparecimento do número “dez” em lugar do esperado “nove”, a segunda sequência, mais desordenada do que a primeira, conta com uma interrupção na progressão lógica em dois momentos. Observando que se trataria de uma série de números pares, podemos perceber que Os Astros substituem o número “seis” pelo número “cinco” e o número “dez” pelo “um” Dessa forma, os viajantes do poema de Cesariny voam como o Olimpo, que anda a voar perdido de referências”, uma vez que os deuses, ao consultarem a Máquina de Consultar Os Astros, são também surpreendidos por uma fala ilógica:

Zeus consulta a Máquina de Consultar Os Astros.
A Máquina de Consultar Os Astros diz o seguinte:
Um, dois, dois, três, um
(CESARINY, 2004, p. 86).

O Azul é personagem improvável eleito por Cesariny para acompanhar O Poeta e António ao longo de sua viagem por céu. A cor azul é aquela presente tanto no espaço aéreo quando no marítimo, mas, principalmente, na junção dos azuis que se encontram no horizonte de quem se põe de costas para a Terra e fita O Mar. É, assim, a cor que quem olha para o infinito. Na fala do Azul, lemos uma citação de Novalis que propõe mais um protocolo de leitura da obra de Cesariny. Na sequência final de um jogo de diálogo automático42, a seguinte passagem:

O Poeta:
Os Poetas...

António:
...São os mais fortes condutores-isoladores da corrente poética

O Azul:
Novalis
(CESARINY, 2004, p. 83).

A citação é de um fragmento de Novalis, ao qual Cesariny retorna mais de uma vez em seus escritos, como nota Emília Pinto de Almeida43. A referência ao poeta alemão parece indicar certo modo de estar na poesia de Cesariny, uma vez que, ao pronunciar o nome “Novalis”, evoca a obra do romântico. Assim, ao seguirmos a pista de leitura que aqui encontramos, percebemos que o conceito de real absoluto formulado por Novalis parece próximo à busca de Cesariny pela ruptura dos níveis de experiência do mundo e pela liberdade, algo que é confirmado, ainda, por uma fala posterior de Cesariny: “A poesia é esse real absoluto que quanto mais poético mais verdadeiro. Era Novalis quem o dizia. A poesia vale como uma liberdade mágica” (CESARINY, 2007, p. 19). O fragmento de Novalis retoma o tema da travessia das palavras, “a atravessar fronteiras tantos anos” (CESARINY, 2008, p. 150), conforme lemos em “tal como catedrais”, e atribui aos poetas uma função que não é a de criadores, mas de condutores de uma corrente que também os atravessa.
Podemos associar o aparecimento e a nomeação dos personagens-mito Mar, Azul, Terra e Astros ao poema “a arte de inventar personagens”, publicado em Manual de prestidigitação (1956), no qual a criação, ou a “invenção”, é um modo de convocação.

arte de inventar personagens

Pomo-nos bem de pé, com os braços muito abertos
e olhos fitos na linha do horizonte
Depois chamamo-los docemente pelos seus nomes
e os personagens aparecem
(CESARINY, 2008, p. 125).

Parece ser este o procedimento posto em prática em “pena capital”. O ato de nomear personagens é responsável por sua presentificação, bem como de todos os significados que cada nome traz, potencialmente, em si. É o mesmo movimento que lemos no início do poema, quando António surge a partir das “páginas do livro jovialmente aberto”, e será o mesmo com os personagens-mito que, ao serem chamados “docemente”, “aparecem” (CESARINY, 2008,
p. 125), falam e interagem com O Poeta.
Há, portanto, uma função atribuída a esse personagem que revela outra forma de relacionar “pena capital” ao poema épico de Camões, encontrada no fio condutor (“- isolador”) das viagens narradas em ambos: O Poeta, ou O Autor que se assume nos dois últimos versos de “pena capital”, e o Poeta44 d’Os Lusíadas. Tanto para Cesariny, quanto para Camões, o poeta parece assumir o papel de transmitir um conhecimento por meio do trabalho
poético, no qual uma “pena” ganha o mesmo valor duma “espada”. Assim, se, em Camões, a morte é superada através da imortalização dos feitos dos homens por obra do canto, em Cesariny, António é ressuscitado pelo Poeta quando este se põe a ler.
No poema do século XVI, o Poeta defende que o louvor e a justa glória dos feitos só são doces caso sejam cantados, defendendo, com isso, sua fundamental missão, conforme lemos no Canto V, estância 92:

Quão doce é o louvor e a justa glória
Dos próprios feitos, quando são soados!
Qualquer Nobre trabalha que em memória
Vença ou iguale os grandes passados.
As envejas da ilustre e alheia história
Fazem mil vezes feitos sublimados.
Quem valerosas obras exercita,
Louvor alheio muito o esperta e incita
(Os Lusíadas, V, 92).

Da mesma forma, O Poeta de Cesariny é aquele capaz de trazer novamente à vida o amigo falecido, ressaltando a correspondência entre chamar os personagens “docemente pelos seus nomes” (CESARINY, 2008, p. 125) e a sua presentificação e concretização no mundo cotidiano. Em “pena capital”, ao olhar pelo “espelho de atravessar os mares”, lendo um “livro jovialmente aberto”, o Poeta participa ativamente do processo de criação do livro que lê, fazendo com que António respire, “caramba”.

Ao final do poema de 1957, lemos que O Poeta não passa de um personagem escrito pelo Autor, o qual é, também, uma criação de alguém que escreve, mas não é nomeado. Esse encadeamento de escrita está presente, também, na estrutura d’Os Lusíadas. Cleonice Berardinelli, afirma que, no poema, “há vários narradores: um narrador não é nomeado, extradiegético, que introduz os outros, todos é óbvio personagens da estória – intradiegéticos, portanto que é narrada pelo primeiro” (BERARDINELLI, 2000, p. 20). Responsável por “iniciar e concluir o poema, fechar todos os dez cantos, retornar quatro vezes à reinvocação à(s) Musa(s) e tecer comentários de vária ordem” (BERARDINELLI, 2000, p. 33), o Poeta é aquele que conduz o canto e não o Narrador1, que narra a viagem “do canal de Moçambique a Melinde” (BERARDINELLI, 2000, p. 18), ou o Narrador2 a quem aquele passara a palavra –, Vasco da Gama, que descreve a viagem “da praia do Restelo a Melinde” (BERARDINELLI, 2000, p. 18). Dessa forma, parece haver uma viagem da palavra que é possível através do trabalho de leitura e escrita que empreende o Autor, cuja voz ecoa nas palavras do Poeta e do Narrador1: Camões45.

Outra característica formal que parece ligar os dois poemas em questão cujo traço já podemos perceber na identificação dos diferentes condutores do canto diz respeito a seus caráteres dramático e performático. Há, assim, uma encenação da própria evolução do “acontecimento canto”, o qual passa desde a primeira enunciação do poeta na Proposição do poema, pelas Invocações às musas, que podem ser feitas mediante verbos performativos, como é o caso de “[d]ai-me agora um som alto e sublimado” (Lus., I, 4), até o cansaço do poeta que percebe que viera cantar expondo, dessa forma, a passagem do tempo de escrita e de leitura “a gente surda e endurecida” (Lus., X, 145). O poema de Cesariny parece captar tal característica do texto camoniano em sua estrutura de peça teatral, na qual “dizer é fazer” (AUSTIN apud PAVIS, 2011, p. 103). Segundo Pavis, “o discurso teatral se distingue do discurso literário ou ‘cotidiano’ por sua força performática, seu poder de, simbolicamente, levar a cabo uma ação” (PAVIS, 2011, p. 103).
O caráter performático de ambos os textos, porém, parece ultrapassar os limites de suas diegeses para encontrar o leitor que tem os livros em mãos. Na epopeia camoniana, podemos observar como esse artifício se mostra ainda mais potente quando as instruções que o Poeta a d. Sebastião na Dedicatória se estendem a nós, leitores:

Inclinai por um pouco a majestade
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno Templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios feitos valorosos,
Em versos devulgado numerosos
(Os Lusíadas., I, 9).

Há, por certo, uma forte relação com o ato que, n’Os Lusíadas, é atribuído ao Rei a quem o poema é dedicado e, consequentemente, ao leitor que põe seus olhos sobre ele e o e os leitores do texto do surrealista, quando observamos que, nas versões de “pena capital” publicadas antes de 2004, uma coincidência entre o ato de virar a página do livro pena capital e o virar de páginas que sucede na cena da “hora da lição”, durante a qual [d]ão-se humanidades, germânicas e ciências naturais e o Azul ponta a lição servindo-se de um livro especialmente disposto”, conforme podemos ver na Figura 1, retirada de Poesia (1944- 1955) (1961), e na Figura 2, de Pena capital (1999).
Figura 1
Figura 2

Nessa coincidência entre o ato que se passa no interior da peça de Cesariny e o movimento que se espera que o leitor faça, encontramo-nos, novamente, com os teatros de Shakespeare e Artaud. Recorrendo à peça trabalhada no primeiro capítulo deste estudo, é necessário retornarmos à cena na qual o príncipe da Dinamarca convida atores ao castelo de Elsinore para encenarem uma tragédia cujo enredo é idêntico àquele da peça da qual são personagens. Também conhecido como teatro dentro do teatro, o palco-dentro-do-palco é um “[t]ipo de peça ou representação que tem por assunto a representação de uma peça de teatro” (PAVIS, 2011, p. 385). Dessa maneira, é inserida, na diegese de Hamlet, uma metadiegese, cuja função é, justamente, intervir na realidade da diegese principal. Montado o palco-dentro- do-palco, os espectadores da peça de Shakespeare que se encontram na plateia e assistem a Hamlet passam a ser, também, espectadores sobre o palco que assistem à nova tragédia da mesma perspectiva que os personagens shakespearianos, ou seja, são postos no mesmo nível de existência de Hamlet, Gertrude, Laertes e Claudius, uma vez que esses personagens se tornam, eles também, espectadores da metadiegese.
No Teatro da Crueldade artausiano, com o qual Cesariny parece dialogar no poema dedicado ao francês, trata-se menos de palco-dentro-do-palco do que de ação direta sobre o público, sem que haja qualquer mediação representacional. Nele, não qualquer distanciamento entre o que se passa no palco e na plateia, como percebemos na descrição “A Cena A Sala”, no primeiro manifesto de “O Teatro da Crueldade”:

Suprimimos o palco e a sala, substituídos por uma espécie de lugar único, sem divisões nem barreiras de qualquer tipo, e que se tornará o próprio teatro da ação. Será restabelecida uma comunicação direta entre o espectador e o espetáculo, entre ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação, estar envolvido e marcado por ela. Esse envolvimento provém da própria configuração da sala (ARTAUD, s/d, p.110).

No Teatro da Crueldade, portanto, o espectador é constantemente interpelado pelo que se passa na encenação e vice-versa.
pena capital é a representação de um Autor que escreve um “estranho poema”, no qual um Poeta está exorcismando ao seu atelier nos astros”. A mise en abyme sobre a qual se estrutura drama, da qual o “palco-dentro-do-palco” shakespeariano é uma das muitas formas de realização, convida os leitores a participarem em um de seus níveis estruturais. Podemos perceber essa estrutura também n’Os Lusíadas, como nota Berardinelli, quando afirma que “[n]uma imagem de que o cinema tantas vezes lançou mão (com outros fins) vemos [o Poeta e o Narrador1] um deslizar de dentro do outro e agir independentemente, em concordância às vezes, às vezes em completa discordância” (BERARDINELLI, 2000, p. 25).
Apesar de distintos, desses tipos de construção resulta um profundo abalo da quarta parede imaginária que separa a realidade diegética (do texto, ou do palco), da realidade extradiegética (cotidiana, habitada por nós, leitores e espectadores). Em relação a essa divisão imaginária no teatro, Pavis afirma que, “[n]a qualidade de voyeur, o público é instado a observar as personagens, que agem sem levar em conta a plateia, como que protegidas por uma quarta parede” (PAVIS, 2011, p. 316). O poema de Cesariny analisado neste capítulo, assim como Hamlet, evocado em you are welcome to elsinore”, e as teorias teatrais desenvolvidas por Antonin Artaud, em O teatro e seu duplo, apesar de apresentarem estruturas distintas, parecem ensaiar uma fratura dessa barreira imaginária.
Em “Magias parciais do Quixote”, Jorge Luis Borges (1999) registrou da seguinte maneira a estranheza que a encenação de um palco-dentro-do-palco provoca em leitores e espectadores:

Por que nos inquieta que Dom Quixote seja leitor do Quixote, e Hamlet, espectador de Hamlet? Creio ter encontrado a causa: tais inversões sugerem que, se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios (BORGES, 1999, p. 50).

Em consonância com Borges, Rosa Maria Martelo aponta, no ensaio “Livros, filmes, metalepses”, que o que nos inquietaria em construções como aquelas mencionadas acima “não seria tanto o processo de replicação especular a que chamamos mise en abîme quanto o facto de a replicação nos alertar para a possibilidade conexa de se verificar uma hipótese ‘inaceitável e insistente’” (MARTELO, 2015, p. 2) segundo a qual os leitores e espectadores pertenceriam a uma narrativa. Baseando-se na obra de Gérard Genette, notadamente em seu Metalepsis (2004), Martelo vai além do que dissera Borges e afirma que “nada poderá assegurar-nos que a ficção não pertence a este outro domínio que seria o da não-ficção – questão por certo não menos perturbadora” (MARTELO, 2015, p. 2). O movimento que se simula no poema de Cesariny parece gerar um efeito similar. Se fizermos o caminho inverso ao do desenvolvimento do poema, veremos que “pena capital” é estruturado sobre três – talvez quatro planos. Assim, partindo do mais externo ao mais interno, num primeiro plano, estamos nós que lemos o poema “pena capital” escrito pelo poeta português Mário Cesariny de Vasconcelos; nesse poema (o segundo plano), um Autor afirma ter escrito este estranho  poema, o último de nome religioso”, isto é, aquele que acabamos de ler; em seu estranho poema (o terceiro plano), um personagem, o Poeta, está em seu atelier lendo um livro; desse livro (talvez um quarto plano que transborda no terceiro),  o Poeta sair outro poeta, António, com quem será herói “duma tragédia química” e encontrará, ainda, personagens de outras tragédias, como Ofélia e Fausto, este último acompanhado de seu autor, Goethe, além dos personagens da cultura portuguesa e ocidental, como O Mar e Os Deuses de um pequeno Olimpo”. Portanto, não se trata apenas da possibilidade de transformação dos leitores ou espectadores em ficção, mas da transposição, para fora do poema, dos acontecimentos passados em “pena capital”, tal como sucedera com a ressuscitação de António Maria Lisboa e seu aparecimento, no atelier do Poeta, em forma de António, desde as páginas de um livro, confirmando algo que Lisboa afirmara em “Alguns personagens”: o poeta não morre (como poderia ele morrer?!...)” (LISBOA, 2008, p. 105).
Assim, se o poema de Cesariny joga com a transgressão de diversos planos narrativos, podemos aproximá-lo do conceito de “metalepse” conforme retomado por Genette. Enquanto modo, figural ou ficcional, de “transgredir o umbral da representação” (GENETTE, 2004, p. 16, tradução minha)46 tomando como “representação” tudo aquilo que pertence ao “âmbito literário e a outros: pintura, teatro, fotografia, cinema” (GENETTE, 2004, p. 15)47, entre outros –, a metalepse de Genette é interpretada por Martelo como uma figura de linguagem associada à “porosidade entre o mundo do texto e o nosso mundo enquanto leitores, fazendo- nos tomar consciência do acto de leitura como vertigem e como fruição da vertigem” (MARTELO, 2015, p. 4).
Dessa maneira, se assumirmos que “pena capital” é mais uma arte poética cesarinyana, na qual a apresentação de um modo de escrita sugere, também, um protocolo de leitura, então, o franqueamento das fronteiras entre o textual e o extratextual na diegese desse poema funciona como uma declaração de um desejo do poeta de inscrever, na vida cotidiana, uma nova possibilidade de existência. A encenação de um ato de leitura corresponde à apresentação de um modo de ler Cesariny, o qual se aproxima da definição dada por Scholes em seu Protocolos de leitura, quando o autor afirma que “[n]ão nos é possível penetrar nos textos que lemos, mas estes podem entrar em nós; é isso precisamente o que constitui a leitura” (SCHOLES, 1991, p. 22). Assim, a cena de escrita representada pelo Autor que se mostra ao fim do poema corresponde à fundação de uma poética na qual “ler é escrever, é viver, é ler, é escrever” (SCHOLES, 1991, p. 23).
O conhecimento adquirido na cena final do poema parece dizer respeito à condenação do Poeta, que recebe como sentença a “pena capital”. O contraste entre a primeira e a última fala do personagem principal parece apontar para essa tomada de consciência de um destino que lhe cabe, de uma condenação final paradoxal. Assim, à atmosfera otimista do início do poema, opõe-se o lamento do Poeta retornado da viagem:

Olha hoje o teu clima está magnífico
olha vamos sair desta cidade
onde o teu clima é sempre para dividir por cinco
vamos para as praias da alma arrebentar-nos vivos
vamos ser os heróis de uma tragédia química
(CESARINY, 2004, p. 78).

Ao final:

[O Poeta] Chora um pouco e murmura, olhando o céu escuro:
Sou um rio injusto, com margens de labaredas,
se me navegam, gelo, se me fogem, queimo
(CESARINY, 2004, p. 90).

Se a atitude surrealista pode ser definida como a busca por “um certo ponto do espírito no qual a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente” (BRETON, 1929, p. 1, tradução minha)48, a escrita de Cesariny seria uma tentativa de inscrever no mundo, a partir daquela potência criadora da linguagem, um novo real poético. Seguindo a linha de pensamento de André Breton, o português reconhece que aquilo que chamamos de realidade é, de fato, uma pequena parte do real. Se esse poema é o último de nome religioso escrito pelo Autor”, isso se como efeito da transcendência de Deus, que não passa seguido de seus Anjos e de seus Animais”, uma vez que o Poeta se capaz de criar homens, animais, terra, mar, céu, deuses e o Olimpo, desde o interior de seu atelier. A “pena capital” é a condenação daquele que se atreve a reivindicar para si o poder da criação e da nomeação do mundo.

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36 Os personagens do poema, bem como todas as citações retiradas de suas rubricas, serão sempre grafados em itálico, para sua melhor identificação.
os artigos definidos que, invariavelmente, antecedem os nomes dos personagens são ora grafados em maiúsculas ora em minúsculas no próprio texto de Cesariny e tal fato parece se dar aleatoriamente, uma vez que não observei nenhuma justificativa para a mudança de grafia. Dessa forma, neste texto, as minhas referências aos personagens de Cesariny também apresentam certa variação no que diz respeito aos artigos definidos.
37 A partir da edição de 1982, no entanto, o poema “autoractor” é o último.
39 No  entanto,  em  Alguns mitos maiores alguns mitos menores propostos à circulação pelo autor,  livro publicado em 1958, um ano depois da edição de Pena capital, podemos ver uma citação de Os Lusíadas estampada na capa (ANEXO A). O fato é registrado por Mário Cesariny em A intervenção surrealista (1997): 1958 [...] Publicação de A antologia em 1958, dirigida por Mário Cesariny: Alguns mitos maiores alguns mitos menores propostos à circulação pelo autor, de Mário Cesariny. Na capa: Aqueles Que Por Obras Valerosas Se Vão Da Lei Da Vida Libertando” (CESARINY, 1997, p. 81).
40 Em “Cesário: duas ou três coisas”, Jorge Fernandes da Silveira comenta o verso de “Heroísmos”, articulando- o ao célebre “O sentimento dum ocidental”:
“Nas suas viagens em círculos pelas ruas de Lisboa, Cesário acaba sempre por chegar à beira dum rio fechado: o Tejo. Corajosamente, no limite da cidade, é ele o primeiro poeta português a sujar a via da glória nacional: ‘Escarro, com desdém, no grande mar’, Heroísmos (SILVEIRA, 1995, p. 7).
41 António José Saraiva e Óscar Lopes, em História da literatura portuguesa (2001), afirmam que “[q]uer no plano económico-social, quer no da ideologia dominante, o Estado corporativo limitou-se a levar ao extremo certas tendências da República democrática liberal: a concentração do capital à custa de assalariados e rendeiros, o mito da regeneração pelas virtudes agrárias provincianas, e de um nacionalismo passadista que se projetava em novo ciclo de expansão colonial. No entanto, [...] este ideário [...] tende para uma ideologia desenvolvimentista e tecnocrática, face à [...] intensificação em escala inédita da emigração (c. 1 milhão e 500 mil entre 1956 e 1974), e ao beco sem saída de um colonialismo de tipo oitocentista, insustentável a prazo e universalmente condenado” (SARAIVA; LOPES, 2001, p. 950).
42 Nessa passagem, Cesariny reproduz diversos trechos de diálogos automáticos e de cadáveres esquisitos produzidos pelos surrealistas portugueses na década de quarenta e publicados na Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito, em 1961. Contudo, Maria de Fátima Marinho Saraiva, em O surrealismo em Portugal e a obra de Mário Cesariny de Vasconcelos (1986), afirma que, nessa passagem de “pena capital”, Cesariny reconstrói diálogos que tivera com Lisboa. Afirma a autora: “Invocando os processos usados nos jogos do cadáver esquisito, Cesariny faz [em ‘pena capital’] como que uma homenagem ao seu amigo, reconstruindo um diálogo entre os dois” (1986, p. 381). É a própria Saraiva quem afirma, entretanto, que o segmento “Pão a cozer
menino a ler” é um fragmento retirado do texto “Alguns provérbios e não”, de Mário Cesariny e Alexandre O’Neill (idem, p. 38), ao qual podemos somar o provérbio “enterocolites Frederico Nites” (CESARINY, 1961,
p. 20) do mesmo texto produzido por Cesariny e O’Neill, também retomado no poema “pena capital”. Assim, na cena da lição, Cesariny faz uma recolha de diversos textos surrealistas ou não, como é o caso da citação de Novalis que se segue.
43 Cf. ALMEIDA, Emília Pinto de. Para a consideração de um plano de criação poética na obra de Mário
Cesariny (2011). Afirma a autora: “‘Os poetas são, simultaneamente, isoladores e condutores da ‘corrente poética’’, afirma Novalis, num dos aforismos de Fragmentos que Cesariny traduziu e dos que mais cita e retoma” (ALMEIDA, 2011, p. 26).
Uma das retomadas a esse aforismo é verificada no Prefácio de Cesariny a Os poetas lusíadas, de Teixeira de Pascoaes (1987). No texto, Cesariny traduz o aforismo exatamente da mesma maneira que o fizera, anos antes, em “pena capital”.
44 Minha leitura de Os Lusíadas é, sem dúvida, devedora dos estudos publicados no fundamental Estudos camonianos, da professora Cleonice Berardinelli (2000), especialmente no que se refere à divisão dos narradores da epopeia.
45 Berardinelli, em “A estrutura d’Os Lusíadas afirma que “o Narrador1 é um ente de papel: teoricamente é verdade; na prática, nem tanto. Como dissociá-lo do Autor, quando é este que pede ao rei o alvará de licença para passar, com seu canto, à posteridade” (BERARDINELLI, 2000, p. 26). No entanto, a mesma autora afirma, no texto “Os Excursos do Poeta n’Os Lusíadas”, que o pedido de alvará ao rei é feito pelo Poeta e não pelo Narrador1. Assim, podemos admitir que ambos os personagens são indissociáveis do Autor.
46 “transgredir el umbral de representación” (GENETTE, 2004, p. 16). Todas as traduções de GENETTE (2004) são minhas.
47 “digo ‘representación’ para abarcar a la vez el ámbito literario y algunos otros: pintura, teatro, fotografía, cine
y, sin duda, alguno que ahora no recuerdo” (GENETTE, 2004, p. 15).
48 “un certain point de l’esprit d’où la vie et la mort, le réel et l’imaginaire, le passé et le futur, le communicable et l’incommunicable, le haut et le bas cessent d’être perçus contradictoirement” (BRETON, 1929, p. 1).

Maria Silva Prado Lessa, O poema como palco: algumas cenas da escrita de Mário Cesariny, Rio de Janeiro, 2017.


Poderá gostar de ler algumas cenas da escrita de Mário Cesariny:






CARREIRO, José. “pena capital, Cesariny”. Portugal, Folha de Poesia, 05-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/pena-capital-cesariny.html



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