pena
capital
O Poeta, exorcismando ao seu atelier
nos astros:
das
páginas do livro jovialmente aberto
primeiro os pés depois a cabeça
sais tu
não
estás nada parecido
mas és sem dúvida o que se pôde arranjar
Olho-te no meu espelho de atravessar os mares
olho-te com simpatia com anterior amizade
respiras
tu
respiras!
e
deste um passo para o lado como quem chega
um
pouco mais a si o seu ar pessoal
Caramba caramba António
já
estás muito mais parecido
ou
então era eu que não me lembrava
Olha
hoje o teu clima está magnífico
olha
vamos sair desta cidade
onde
o teu clima é sempre para dividir por cinco
vamos para as praias da alma arrebentar-nos vivos
vamos ser os heróis duma tragédia
química
e
convidamos o Azul por uma questão de princípio
O Azul, entrando:
Azul criado incriado
azul
de todas as cores
dos
caminhos anteriores
ao
mistério revelado
António, erguendo-se agressivo:
Tu
não és o azul tu és a morte
tu
estás feito com os meus olhos
fora
daqui para fora
desaparece ou passo-te o automóvel em cima
O Azul:
Teus
olhos lugar geométrico teus olhos estrada
marinha
teus
olhos vivos por dentro teus olhos treva exemplar
António:
Fora! Fora!
O Poeta:
Então que é isso rapazes estamos
atrasados
toca
a andar para o comboio
meu amigo
e
tu António cautela
já
estás mais que parecido vai ser mau continuar
António chora, contrariado. E assim vão para o comboio,
que os leva para o mar.
O Mar:
Eu
faço a tempestade...
O Poeta:
Oh!
O Mar:
Eu,
só, criei a terra por retirada minha...
O Azul:
Oh!
O Mar:
Eu
dei o nome às pessoas...
O Azul e o Poeta:
Oh!
O Poeta, para António:
O Mar não dá nada às pessoas
O
Mar é mau
O Mar o mais que dá é uma alma
negócio de bruxas — rrrrr
O Mar, para António:
Escuta, corpo meu, meu filho natural...
António entra na água.
O Poeta e o Azul, ajoelhados na areia:
Deus o guarde
do Espírito do Mar!
António, gritando no banho:
Quando eu for pequenino aumentará o mundo
Tudo
me será dado por acréscimo!
Passa uma flor perseguida pela Morte.
Flor:
Bom dia, boa noite.
Desaparecem. António volta do banho,
António, O Azul e O Poeta comem figos e é chegada a hora da lição.
Dão-se humanidades, germânicas e ciências naturais.
O Azul ponta a lição servindo-se de um livro especialmente disposto.
O Poeta:
Pão
a cozer...
António:
...Menino a ler.
O Poeta:
Fogo
na palha...
António:
...Canta o canalha.
O Poeta:
Pouca atenção...
António:
...Cornos no chão.
O Azul, virando
a página:
Virou!!
O Poeta:
Enterocolites...
António:
...Frederico Nites.
O Poeta:
Delirium trémos...
António:
...Dá cá os remos.
O Poeta:
Externo-cleudo-mastoideu...
António:
...Foi uma mulher que o perdeu.
O Azul, virando
a página:
Virou!!
O Poeta:
A noite...
António:
...Não me lembro...
O Poeta:
A noite...
António:
...É
o corvo em liberdade
O Poeta:
A Águia...
António:
...É
o amor na cama
O Poeta:
Os Poetas...
António:
...São os mais fortes condutores-isoladores da corrente poética
O Azul:
Novalis.
O Poeta abraça
António dando por finda a lição.
Passam então, em velocidades conformes:
Um barco a que faltam
os pulmões
Goethe em cima dum plinto
onde segue também o seu segundo
Fausto
Um Frade que arrasta Ofélia
pelo bico.
Reaparece a Morte com a Flor na lapela.
António:
Salvemos Ofélia!
Salvemos a pureza que vai pela mão
Salvemos o doce cabelo
Salvemos, pelo menos, o braço.
Corre atrás do Frade que puxa dum pau e dá para baixo
bem em cima da cabeça
de António que se agarra
ao Frade
e luta com ele, esquecendo-se ambos de Ofélia,
que se atira ao mar.
António, largando o Frade:
Ofélia! Ofélia!
O Frade desaparece transformado em lobo.
António, chorando:
Poeta!...
O Poeta:
Não.
António, chorando:
Poeta!...
O Poeta:
Não.
António lança-se ao Mar, onde flutua
ainda
o branco corpo
de Ofélia.
O Poeta e O Azul impedem-no
de se afogar
dançando com ele animada sarabanda
que em estreitos movimentos circulares
os começa a subir pelo espaço
fora.
António:
Olha
olha os países.
O Poeta:
Não são mais do que três.
O Azul:
Eu
vou acelerar vertiginosamente.
Acelera vertiginosamente. António
começa a vomitar
nuvens de borboletas brancas e azuis,
e a cabeça pende-lhe
ligeiramente para o lado, forma
expressiva de dizer
que não se sente bem.
O Poeta:
Dança! Dança! Dança!
O Azul: Marialfabeta
Iowanalfabeta
Ariana alfa beta
Os Astros:
Um, três, cinco, sete, dez!
Dois, quatro, cinco, oito, um!
Voz, dentro duma nuvem:
Deixem passar Deus! Deixem passar Deus!
Passa Deus, seguido dos seus Anjos
e dos seus Animais.
António:
Eu
amava, tu amavas,
ele amava...
O Poeta, analisando à lupa os olhos de António:
De olhos para olhos a distância aumentou.
Passam então por um pequeno
Olimpo
que anda a voar perdido
de referências.
Os Deuses abandonam os jogos do costume e montam
observatórios-periscópios por onde estudam
o grupo voante.
Zeus consulta a Máquina de Consultar Os Astros.
A Máquina de Consultar Os Astros
diz o seguinte:
Um, dois, dois, três, um.
Das janelas dos terraços alguns
Deuses mais importantes
escrevem em alvos cadernos individuais observações pertinentes
sobre o número e o propósito
dos intrusos.
Caderno de Ares:
Tudo
o que usa chapéu lhes diz respeito
Tudo
o que à noite brilha conta com eles
Todo
o anjo vestido de diamante
Toda
a hora de luto e crueldade
Caderno de Zeus,
em caracteres estenográficos:
São
mágicos cartógrafos amando
pelos bolsos das calças
A Montanha
Caderno de Afrodite
Anadiómena. (Letra crispada, irregular,
denunciando
perturbação):
Vêm da Terra!
Nada
pode
já salvá-los!
Nem as Torres
do Reino das Pacientes
Esperas
nem
as rosas da mais solene exéquia!
Pelo
espelho das suas pernas nítidas
pela
curva dos seus braços desce um pássaro
de
límpida memória
e uma frota de cardos luxuosíssimos
segue-os para sempre para toda a vertigem
Caderno de Afrodite
Urânia:
São
quatro! QUATRO! Aliás, cinco
mil
pronunciados por crimes de aparição na duna
junto à terra da Ilha dos Amores
na
pálpebra de sol que me deixaram
vêm
exaustos de esperança, exaustos de água,
respirando pelas mãos, ouvindo atónitos
a
música da guerra
que levantam
Zeus, num grito:
Que cesse todo o trânsito
entre um corpo e outro corpo RODA E ESTRADA!!
Uma Vendedeira de Fruta, fechando
as portas do Olimpo:
Estranha gente. Sem música.
Sem armas
e
bela, apenas, da sua própria
beleza...
O Poeta, num murmúrio:
Para
uma boca, outra boca,
para um leito, o telhado.
Nem sempre, como se diz, a batalha
é de flores.
Passa lentamente uma rosa.
António:
Olha
olha uma rosa.
O Poeta, num repente:
As rosas deviam
deixar de saber
tão bem que são rosas
As rosas incomodam-me quando se põem assim
Com o ar de quem diz: Olha,
este não é uma rosa
no
seu jardim
O Azul:
Ó rosas catedráticas! Esplendorosíssimas rosas!
António:
Morte, morte, morte.
Dito o que, desfalece. É óbvio que vai morrer.
O Poeta e o Azul carregam-no para cima de uma cama de folhelho,
|
acendem duas candeias
e velam a seus pés
Um vulto muito
alto que parece
pairar na vastidão
dos ares,
mas que em verdade se dirige para eles a uma velocidade vertiginosa,
é A Morte.
António, delirante:
Poeta! Meu Poeta!
O Poeta, deitando
sangue pelos ouvidos:
Eu
vejo! Eu vejo! EU VEJO-TE!!
O Azul, soprando
as candeias e gritando no escuro:
Dança!
O espaço tem agora a cor dos olhos de António.
Voz do Mar, falando
de baixo:
Eu
sei as bodas químicas do princípio e do fim
Eu,
só, criei a Terra por retirada minha
Eu
sei os grandes espaços intervalares
Eu
sei Ofélia...
António:
Ofélia...
O Poeta:
Muito parecida, António, muito parecida.
Voz da Terra,
falando de baixo:
Ah se toda a viagem
fosse para mim
e
todos os navios
me buscassem!
A Morte, tocando
a fronte de António:
HOME SWEET HOME
António morre.
O Azul, o Poeta, o Desmaiado
e a Morte,
descem em lentidão
pelo ar abaixo.
Voz, dentro duma nuvem:
Não deixem passar Deus! Não deixem passar
Deus!
Não passa Deus, seguido
dos seus Anjos e dos seus Animais.
O Poeta regressa
ao seu atelier nos astros,
que a sua governanta encheu
de flores.
Faz café, que ingere em goladas pequenas,
sentado abstracto em cima do telhado.
Chora um pouco e murmura, olhando
o céu escuro:
Sou
um rio injusto, com margens de labaredas,
Se
me navegam, gelo, se me fogem, queimo.
Assim acaba este estranho poema, o último
de nome religioso escrito
pelo Autor.
Mário
Cesariny de Vasconcelos. Pena capital.
Lisboa,
Assírio & Alvim, 2004, pp. 78-90.
(1.ª edição: 1957)
O poema como palco:
“pena capital”.
Nos capítulos anteriores, propus, como um dos aspectos fundamentais da poética que Mário Cesariny
se dedica a definir, a centralidade do encontro e do diálogo
amorosos com o outro:
a convocação de uma segunda voz como maneira de fazer soar a própria fala do poeta.
Nesse sentido, foi necessário refletirmos acerca do “nós” composto da relação entre um “eu” e um “tu” e avaliarmos a identidade de cada um desses “personagens”. A relação conflituosa com a tradição
– declarada em “tal como catedrais” e em “you are welcome to elsinore” – e a apropriação de outras poéticas
como forma de fundação da identidade do sujeito poético
– como lemos em “autografia I” e em “a antonin artaud” – mostraram
como o encontro amoroso e fundente
com o outro é indispensável no trabalho de Cesariny.
Neste capítulo, a cena na qual “eu” e “tu” se encontram se passa num espaço cuja localização excede
os limites terrenos
da cidade: no “atelier nos astros” d’O Poeta36. A estrutura do poema é muito distinta
das observadas nas composições dos capítulos anteriores, pois, se tomei os poemas de Cesariny analisados até aqui como palcos onde se desenvolvem cenas de escrita, na composição que motiva este capítulo, a “cena” deixa de ser uma metáfora de leitura e se literaliza num “poema em drama”, distinto do “poema dramático” clássico em
alexandrinos, contando com rubricas do autor, as quais apontam
nomes de personagens, indicações de entrada e de saída destes e conduzem os diálogos travados
ao longo da peça,
apresentando características mais prototípicas de um “texto
dramático” (PAVIS, 2011, p. 404- 406). Trata-se do poema
“pena capital”, publicado no livro homônimo
de 1957, cuja cena inicial se passa no interior
dum atelier, onde se encontra
O Poeta, personagem principal
do poema-drama.
Em consonância com “autografia
I”, poema no qual o sujeito poético afirma que seu
“nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado
à morte”, a pena capital
do título do poema que analisarei a seguir também é uma sentença
tirânica imposta ao Poeta que empreende o trabalho de leitura e de escrita, como verificamos principalmente nas falas finais desse personagem. Em carta
enviada a Cruzeiro
Seixas no ano de publicação do livro, Cesariny escreve
as seguintes palavras
a respeito da brochura e do poema:
o meu livro dito Pena Capital – capital para todos, sem esquecer o autor – chegou às livrarias. Vou fazer-to
chegar – apesar de, ao que me parece, não tenhas tomado na devida conta a matéria constante
do poema que dá nome ao livro e que não é outro senão o que lá tens, mal titulado: António o Azul o Poeta. Pena Capital, é mais correcto (CESARINY, 2014, p. 135).
Avançando um pouco mais na interpretação da expressão que dá título ao poema e ao livro, é possível afirmar
que “pena capital”
remete não apenas a uma sentença proferida
por um tribunal – a pena de morte –, mas à pena do trabalho de escrita, levando
a crer que a pena utilizada é capaz de transcender o papel e inscrever-se para além dele. Sobre esse aspecto,
veremos como o trabalho empreendido pelo Poeta resulta na ressurreição do surrealista António Maria Lisboa,
falecido em 1953, e na possibilidade de mais um encontro com o
amigo perdido, indicando ainda outra manifestação da “força genésica da linguagem”
(CUADRADO, 2002, p. 283), valorização, portanto, do caráter
performativo da linguagem poética surrealista. Em “Esclarecimento a um crítico”, texto publicado em A intervenção surrealista (1997), mas datado
de 1949, o próprio Lisboa
afirma que
[a] actividade surrealista não é [...] uma simples libertação
de coisas que chateiam, mas um golpe fundo, e de cada vez que é dado, na realidade presente... Não é mero exercício para se dormir melhor na noite seguinte, mas esforço demoníaco para se dormir de maneira
diferente (LISBOA,
1997, p. 175).
Abordar o aspecto dramático desse poema significa
salientar de que forma Cesariny exerce a função de autor e encenador da atividade poética,
percebendo sua maneira
não apenas de escrever
essa cena, mas de criar um todo significativo a partir da disposição de diversos elementos
convocados a contracenarem sobre um mesmo palco. Assim, será possível perceber como os diálogos
com outros textos
reincidem como a base de construção de sua poética, conforme percebemos na apropriação de diversos símbolos
da tradição ocidental,
em particular a portuguesa, e sua transformação em personagens – convidados a entabularem um diálogo literal com o Poeta ao longo de uma viagem cósmica que vai desde seu “atelier nos
astros”, passando da Terra para O Mar, do Mar para o céu, numa ascensão vertiginosa, ultrapassando Deus e o Olimpo, para cair, novamente, no atelier do Poeta. Retomando, assim, a temática do diálogo como fundamento das cenas que se apresentam nos poemas de Mário
Cesariny trabalhados até aqui, creio ser possível
perceber como os movimentos de deslocamento e de apropriação da tradição se radicalizam no poema que leremos a seguir,
fazendo com que a fundação
da poética cesarinyana seja exemplificada em forma de espetáculo.
O longo poema “pena capital” explora as possibilidades
de criação de uma nova realidade a partir da potência
evocatória das palavras
e de seu poder de “golpear a realidade presente” (LISBOA, 1997, p. 175). Sua cena de abertura apresenta um momento de leitura-e-
escrita, na qual o Poeta, ao “exorcismar ao seu atelier”, vê sair, “das páginas do livro”, o amigo
António, com quem irá empreender uma viagem cósmica
durante a qual os dois personagens, junto a um terceiro – o Azul –, encontram-se com símbolos de certo imaginário marítimo caracteristicamente português. Através
das “páginas do livro jovialmente aberto”, testemunhamos a animação
desses símbolos e sua transformação em personagens “duma tragédia química”,
bem como a ressuscitação de um dos maiores poetas
do surrealismo português, António Maria Lisboa, falecido quatro anos antes da publicação
do poema. Com a leitura de um livro, atividade
que parece equivaler
a um trabalho criativo de escrita, António volta à vida e respira:
Olho-te no meu espelho
de atravessar os mares
olho-te com simpatia
com anterior amizade
respiras
tu respiras!
e deste um passo para o lado como quem chega
um pouco mais a si o seu ar pessoal
Caramba caramba António
já estás muito mais parecido
ou então era eu que não me lembrava
(CESARINY, 2004, p. 78).
Publicado originalmente como o poema final do livro Pena capital37, “pena capital” é construído como um texto dramático, contando com indicações cénicas destinadas a “esclarecer ao leitor a compreensão ou o modo de apresentação da peça” (PAVIS,
2011, p. 206), como define Patrice Pavis, em seu Dicionário de teatro. Aos diversos
personagens que encontramos
ao longo do texto, Cesariny atribui, para além de falas, marcas de entrada e de saída, apresentando comentários de atuação
e descrições dos lugares onde se passam
as sucessivas cenas da peça. Ao contrário, porém,
do que se observa comumente em textos dramáticos escritos,
os quais apresentam um “texto principal” (PAVIS, 2011, p. 409) – que corresponde
às falas dos personagens – e um “texto secundário” (PAVIS, 2011, p. 409) – constituído das rubricas do autor e que não é pronunciado pelos atores –, as indicações cênicas espalhadas pelo poema de Cesariny
devem ser lidas como falas de um personagem que encontraremos apenas ao final da peça, o Autor. Uma pista de sua existência, no entanto,
é dada ainda na primeira
cena do poema, na qual podemos observar
como uma rubrica
rima com os versos que compõem as falas dos personagens, como na passagem
a seguir, quando a musicalidade da fala do Poeta ressoa nas rubricas
do Autor:
O Poeta:
Então que é isso rapazes
estamos atrasados
toca a andar para o comboio meu amigo
e tu António cautela
já estás mais que parecido vai ser mau continuar
António chora,
contrariado. E assim vão para o comboio,
que os leva para o mar
(CESARINY, 2004, p. 79).
O encontro entre esses dois “níveis” de construção do drama, aquele do universo
dos enunciados dos personagens e o das anotações a respeito deles, revela uma instância metateatral
(ou mesmo metapoética) desse texto, indicando uma construção similar
a uma mise en abyme, efeito reforçado pela afirmação encontrada, ao fim do poema, de que o Poeta é, na realidade, um personagem escrito pelo Autor que, por sua
vez, está sendo escrito por um outro autor que se encontra fora do texto e que não é nomeado. O franqueamento das fronteiras entre esses diversos
níveis de experiência, a dissolução das barreiras entre o textual e o extratextual, entre arte e vida, entre vida e morte, representa uma das características fundamentais do surrealismo francês
das quais se apropriou a poesia de Mário Cesariny, conforme apontei em relação aos outros poemas analisados
ao longo deste trabalho. A construção em abismo simula uma encenação
de um palco-dentro-do-palco que ecoa, ainda,
os diálogos com os teatros
de Shakespeare e de Artaud
que encontramos em “you are welcome to elsinore” e “a antonin
artaud” e que pode ser percebida como uma marca característica da autorreferencialidade presente
em artes poéticas,
nas quais podemos
perceber uma correspondência entre enunciado e enunciação.
No “estranho poema” acima, três personagens, o Poeta, António e o Azul, lançam-se em uma viagem
quase épica durante
a qual encontram
diversos personagens e
espaços provenientes de certo imaginário cultural
e poético português. Elementos marcantes dessa cultura – mar, terra, astros e azul – são transformados em personagens atuantes
que intervêm no enredo
do drama, e adotam características de seres animados.
Cesariny destitui, assim, qualquer traço “natural” desses
elementos e garante
sua inserção em um universo
estritamente cultural, no qual passam
a ser O Mar, Voz da Terra, Os Astros e Azul, transformados não apenas em mitos, mas em personagens da cultura portuguesa.
Certamente, o tema da viagem e
os personagens eleitos para comporem
as cenas desse poema em drama
levam-nos a crer que o diálogo intertextual fundamental em “pena
capital” é entabulado
com Os Lusíadas, de Camões. Podemos constatar,
no entanto, certo apagamento
desse poeta na obra de Cesariny, algo que é percebido quando buscamos, sem êxito, qualquer referência direta a ele. Sua aparente
ausência nas publicações inaugurais de Mário Cesariny39 – como Corpo visível
(1950), Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano (1952), Louvor e simplificação de Álvaro de Campos (1953), Manual de prestidigitação (1956) e Pena capital (1957) – contrasta
com as diversas referências a outras obras que se espalham por esses livros, uma vez que o surrealista não hesita, como vimos nos capítulos anteriores, em citar explicitamente – por vezes,
nominalmente – os poetas com os quais estabelece algum tipo de vínculo em sua poesia.
O retorno a Camões é feito, portanto,
de forma tortuosa
e parece se dar através
da leitura empreendida por outros poetas
da obra camoniana, como
Cesário Verde em “O sentimento dum ocidental”, ou Fernando Pessoa em Mensagem. Mário Cesariny retoma, assim, não apenas um livro ou uma obra determinada, mas um imaginário consagrado ao longo de séculos de cultura portuguesa.
Espaço percorrido pelos heróis ao longo da viagem épica e condutor
da expansão do saber,
bem como do encontro com o desconhecido, n’Os Lusíadas,
lugar ao qual o herói dá as costas, como em Viagens na minha terra, ou lugar no qual se “escarra”, como nos poemas de Cesário Verde,
o mar é imagem fundamental da literatura portuguesa, não apenas como a “via da glória nacional” (SILVEIRA,
1995, p. 7), mas como elemento cantado desde as cantigas
trovadorescas, como não poderia deixar de ser em uma poesia peninsular. Em “pena capital”, Cesariny mantém a centralidade desse símbolo, uma vez que O Mar é o fio condutor
e personagem-chave do drama, sendo alçado à posição suprema de um deus, mais potente que todos
os outros personagens divinos referidos ao longo da peça, tendo, sozinho, criado “a terra
por
retirada” sua e de ter dado “o nome às pessoas”.
O Mar é, no entanto, visto de forma negativa pelo Poeta, como percebemos na fala abaixo, na qual ressoa o “desdém” de Cesário
Verde40:
O Poeta, para António:
O Mar não dá nada às pessoas
O Mar é mau
O Mar o mais que dá é uma alma
negócio de bruxas – rrrrr
(CESARINY, 2004, p. 80).
Como destaquei também
no primeiro capítulo
deste trabalho, referindo-me à deriva das palavras “pelo mar fora cavando a sua avaria” (CESARINY, 2008, p. 151), parece haver uma
trajetória percorrida também pelo personagem mar na literatura portuguesa. Para Silveira,
tal trajetória resultou
numa saturação do imaginário marítimo
que exige, agora,
a retomada da terra como paisagem
(SILVEIRA, 2002). No poema de Cesariny, a terra, a quem os portugueses haviam dado as costas “para buscar do mundo novas partes” (Lus., IV, 85), é transfigurada numa voz que lamenta
significativamente:
Voz da Terra,
falando de baixo:
Ah se toda a viagem
fosse para mim
e todos os navios me buscassem!
(CESARINY, 2004, p. 90).
O desejo
expresso pela Voz da Terra nos versos
acima ecoa, também,
o livro de Almeida Garrett,
Viagens na minha terra
(1846), cujo diálogo
com Os Lusíadas
se dá a partir da reelaboração da tradição camoniana
(MARTELO, 1996, p. 299). Nesse processo, a recusa da viagem por mar aponta a necessidade de uma viagem na sua terra como uma declaração de “grande amor por tudo o que é português” (FERREIRA, 1999, p. 31). Em Cesariny, contudo, o lamento da Terra
não parece corresponder a uma expressão de amor à pátria, mas a um antagonismo verificável
entre o
mar, como
representante do
imaginário de um passado glorioso do qual se apropriou o Estado Novo, mas também
como espaço a ser dominado segundo a ideologia colonialista, e a terra,
enquanto lugar abandonado e degradado em consequência dessa mesma ideologia41. Como forma de oposição a ambos os símbolos, a viagem empreendida pelos personagens do drama de
Cesariny não é marítima
ou terrena, mas cósmica.
Se os personagens Poeta e Azul atribuem ao Mar características negativas
e obscuras, como verificamos em sua fala em coro – “Deus o guarde do Espírito
do Mar!” –, António atua como se estivesse hipnotizado pelas águas. Em sua atração
pelo Mar, na cena do banho,
podemos perceber uma correspondência com o ensaio “Isso ontem único”, de António Maria Lisboa, sugestão
de leitura dada por Mário
Cesariny no texto “alguns vocábulos para a compreensão”, pequeno dicionário de termos surrealistas publicado em Pena capital, em 2004. Na entrada “MAR”,
Cesariny anota:
MAR – ...agitado, de água branca,
atravessado, cavado, cruzado,
desencontrado, desfeito, espelhado, esperto,
estranhado, verde, em flor, de fora, grande, interior, lançado,
largo, de leite, livre, vivo. Ver “Isso Ontem Único”, de António Maria Lisboa
(CESARINY, 2004, p. 197).
Se fizermos
o que nos pede Cesariny,
veremos que as características atribuídas ao “MAR” por seu amigo surrealista são, também, de uma potência
incontrolável e fascinante, sendo o mar associado a todas as possibilidades de “amor”. No ensaio de Lisboa, lemos
Amor confuso, amor repetido,
amor esotérico, amor mágico – MAR mar perdido das conchas
no meio do mar
mar de marés justapostas de amor num mar de marfim perdido
no teu joelho de marfim
[...]
MAR para que não me chegam
os olhos
mar branco de nuvens sobrepostas para lhe podermos passar
por cima mar de esquecimento, de objectos sensíveis e distintos
mar onde guardei
o aquário azul que trouxe
até hoje na memória
e hoje só te espalho para o mundo MAR
onde é possível
e provável o envenenamento total da espécie
onde descanso a minha mão esquerda sobre uma pantera negra e todos os dias mergulho em fogo
Amor sem nexo, amor contínuo, amor disperso
– MAR
[...]
MAR que flutua
no MAR abusivamente medonho
amor esquecido, amor distante,
amor insolente RAOMOMAR
(LISBOA, 2008, p. 90-91).
A partir do fragmento
acima e da atuação do personagem António quando confrontado com o Mar, podemos perceber como as relações que o Poeta e
António estabelecem com esse grande antagonista parecem
se dar em termos de uma representação das poéticas de Cesariny e de Lisboa, respectivamente, e da forma como estas
se referem ao mar.
No drama de Cesariny, o diálogo com a tradição
parece inescapável. Nele,
a convocação do “mar” é uma operação
de apropriação de uma imagem consagrada pela cultura portuguesa.
Nesse movimento de transformação do imaginário marítimo,
Cesariny entra em diálogo com uma tradição
de releitura da viagem épica,
na qual os “mares nunca dantes
navegados” (Lus., I, 1) camonianos transfigurados no “sinistro
mar” (2010, p. 78) de Cesário, e no “Mar Portuguez” “salgado” de “lágrimas de Portugal” (1985,
p. 82) pessoano, desaguam,
finalmente, no mar crepuscular de Cesariny, que afirma, de maneira quase banal mas definitiva, “O Mar é mau”.
Na referência à Ilha dos Amores, Cesariny
opera outro deslocamento. Ao contrário dos heróis
liderados por Vasco da Gama que recebem
a Ilha como prêmio de Vênus (Lus., IX), os viajantes
cesarinyanos são percebidos
como invasores, como lemos durante o consílio dos deuses no “Caderno de Afrodite
Urânia”:
Caderno de Afrodite
Urânia:
São quatro! QUATRO! Aliás,
cinco mil
pronunciados por crimes de aparição
na duna
junto à terra da Ilha dos Amores
na pálpebra de sol que me deixaram
vêm exaustos de esperança, exaustos
de água
respirando pelas mãos, ouvindo
atónitos
a música da guerra que levantam
(CESARINY, 2004, p. 87).
Nessa fala, a conquista
portuguesa deixa de ser vista como gloriosa,
para ser tomada como um crime de invasão. Os personagens de Cesariny não são, como Gama e seus companheiros, viajantes que partem esperançosos e se tornam heróis orgulhosos de seus feitos.
Agora, a esperança
já os cansa, a água os afoga e seus feitos são uma declaração de guerra.
Outro personagem ligado às viagens marítimas e terrenas, os astros, certeza de precisão e rumo, referências espaciais
imprescindíveis para os viajantes, deixam de indicar, em “pena capital”, um caminho a ser seguido,
uma vez que suas coordenadas passam a ser confusas e ilógicas. A fala matemática, que sugeriria uma progressão lógica
e previsível, é destituída de precisão e surpreende pela ruptura sequencial:
Os Astros:
Um, três, cinco, sete, dez!
Dois, quatro, cinco,
oito, um!
(CESARINY, 2004, p. 86).
A primeira
sequência mostraria a progressão dos números ímpares,
não fosse pelo aparecimento do número “dez” em lugar do esperado
“nove”, já a segunda sequência, mais desordenada do que a primeira, conta com uma interrupção na progressão lógica em dois momentos. Observando que se trataria de uma série de números pares, podemos perceber que Os Astros
substituem o número
“seis” pelo número
“cinco” e o número “dez”
pelo “um” Dessa forma, os viajantes do poema de Cesariny voam como o Olimpo, “que anda a voar
perdido de referências”, uma vez que os deuses, ao consultarem a Máquina de Consultar Os Astros, são também surpreendidos por uma fala ilógica:
Zeus consulta
a Máquina de Consultar Os Astros.
A Máquina
de Consultar Os Astros
diz o seguinte:
Um, dois, dois, três, um
(CESARINY, 2004, p. 86).
O Azul é personagem improvável eleito por Cesariny para acompanhar O Poeta e António ao longo de sua viagem por céu. A cor azul é aquela presente
tanto no espaço aéreo
quando no marítimo, mas, principalmente,
na junção dos azuis que se
encontram no horizonte de quem se põe de costas para a Terra e fita O Mar. É, assim, a cor que vê quem olha para o infinito. Na fala do Azul,
lemos uma citação
de Novalis que propõe mais um protocolo de leitura da obra de Cesariny. Na sequência final
de um jogo de diálogo
automático42, há a seguinte passagem:
O Poeta:
Os Poetas...
António:
...São os mais fortes condutores-isoladores da corrente poética
O Azul:
Novalis
(CESARINY, 2004, p. 83).
A citação é de um fragmento
de Novalis, ao qual Cesariny
retorna mais de uma vez em seus escritos, como nota Emília Pinto de Almeida43. A referência ao poeta alemão parece indicar
certo modo de estar na poesia de Cesariny, uma vez que, ao pronunciar o nome “Novalis”, evoca a obra do romântico. Assim,
ao seguirmos a pista de leitura que aqui encontramos, percebemos que o conceito
de real absoluto
formulado por Novalis
parece próximo à busca de Cesariny pela ruptura dos níveis de experiência do mundo e pela liberdade, algo que é confirmado, ainda, por uma fala posterior
de Cesariny: “A poesia é esse real absoluto que quanto mais poético mais verdadeiro. Era Novalis quem o dizia.
A poesia vale como uma liberdade mágica”
(CESARINY, 2007, p. 19). O fragmento de Novalis retoma
o tema da travessia das palavras, “a atravessar fronteiras há tantos anos”
(CESARINY, 2008, p. 150),
conforme lemos em “tal como catedrais”, e atribui aos poetas uma função que não é a de criadores, mas de condutores de uma corrente
que também os atravessa.
Podemos associar o aparecimento e a nomeação
dos personagens-mito Mar, Azul, Terra e Astros ao poema “a arte de inventar personagens”, publicado em Manual de prestidigitação (1956), no qual a criação,
ou a “invenção”, é um modo de convocação.
arte de inventar personagens
Pomo-nos bem de pé, com os braços muito abertos
e olhos fitos na linha
do horizonte
Depois chamamo-los docemente pelos seus nomes
e os personagens aparecem
(CESARINY, 2008, p. 125).
Parece ser este o procedimento posto em prática em “pena capital”. O ato de nomear
personagens é responsável por sua presentificação, bem como de todos os significados que cada nome traz, potencialmente, em si. É o mesmo movimento que lemos no início do poema,
quando António surge a partir das “páginas do livro jovialmente aberto”, e será o mesmo com os personagens-mito que, ao serem chamados “docemente”, “aparecem” (CESARINY, 2008,
p. 125), falam e interagem com O Poeta.
Há, portanto, uma função atribuída
a esse personagem que revela
outra forma de relacionar “pena capital” ao poema épico de Camões, encontrada no fio condutor (“-
isolador”) das viagens
narradas em ambos: O Poeta, ou O Autor que se assume
nos dois últimos versos de “pena capital”, e o Poeta44 d’Os Lusíadas. Tanto para Cesariny, quanto para Camões, o poeta parece assumir o papel de transmitir um conhecimento por meio do trabalho
poético, no qual uma “pena” ganha o mesmo valor duma “espada”. Assim, se, em Camões, a morte é superada através
da imortalização dos feitos dos homens por obra do canto, em Cesariny, António é ressuscitado pelo Poeta quando este se põe a ler.
No poema do século XVI, o Poeta defende que o louvor e a justa glória dos feitos só
são doces caso sejam cantados, defendendo, com isso, sua fundamental missão, conforme lemos no Canto V, estância
92:
Quão doce é o louvor e a justa glória
Dos próprios feitos,
quando são soados!
Qualquer Nobre trabalha que em memória
Vença ou iguale os grandes
já passados.
As envejas da ilustre e alheia história
Fazem mil vezes feitos sublimados.
Quem valerosas obras exercita,
Louvor alheio muito o esperta
e incita
(Os Lusíadas, V, 92).
Da mesma forma, O Poeta de Cesariny é aquele capaz de trazer novamente à vida o amigo já falecido, ressaltando a correspondência entre chamar os personagens “docemente pelos seus nomes” (CESARINY,
2008, p. 125) e a sua presentificação e concretização no mundo
cotidiano. Em “pena capital”, ao
olhar pelo “espelho de atravessar os mares”,
lendo um “livro jovialmente aberto”, o Poeta participa ativamente do processo de criação do livro que lê,
fazendo com que António respire, “caramba”.
Ao final do poema de 1957, lemos que O Poeta não passa de um personagem escrito pelo Autor, o qual é, também, uma criação de alguém que escreve,
mas não é nomeado. Esse encadeamento de escrita está presente, também,
na estrutura d’Os Lusíadas. Cleonice Berardinelli, afirma
que, no poema,
“há vários narradores: um narrador não é nomeado, extradiegético, que introduz os outros, todos – é óbvio – personagens da estória – intradiegéticos, portanto – que é narrada
pelo primeiro” (BERARDINELLI, 2000, p. 20). Responsável por “iniciar e concluir o poema, fechar
todos os dez cantos, retornar
quatro vezes à reinvocação à(s) Musa(s) e tecer comentários de vária ordem” (BERARDINELLI, 2000, p.
33), o Poeta é aquele que conduz o canto e não o Narrador1, que narra a viagem “do canal de Moçambique a Melinde”
(BERARDINELLI, 2000, p. 18), ou o Narrador2 – a quem aquele passara a palavra –, Vasco da Gama, que descreve
a viagem “da praia do Restelo a Melinde” (BERARDINELLI, 2000, p. 18). Dessa forma, parece haver uma viagem da palavra que só é
possível através do trabalho de leitura e escrita que empreende o Autor, cuja voz ecoa nas
palavras do Poeta e do Narrador1: Camões45.
Outra característica formal que parece ligar os dois poemas em questão – cujo traço já podemos perceber
na identificação dos diferentes condutores do canto – diz respeito
a seus caráteres dramático
e performático. Há, assim, uma encenação da própria evolução
do “acontecimento canto”, o qual passa desde a primeira enunciação
do poeta na Proposição do poema,
pelas Invocações às musas, que só podem ser feitas mediante verbos performativos,
como é o caso de “[d]ai-me agora um som alto e sublimado” (Lus., I, 4), até o cansaço
do poeta que percebe que viera cantar –
expondo, dessa forma, a passagem do
tempo de escrita e de leitura – “a gente surda e endurecida” (Lus., X, 145). O poema de Cesariny parece captar tal característica do texto camoniano
em sua estrutura de peça teatral, na qual “dizer é fazer” (AUSTIN apud PAVIS, 2011, p. 103). Segundo Pavis, “o discurso
teatral se distingue do discurso literário ou ‘cotidiano’ por sua força performática, seu poder de, simbolicamente,
levar a cabo uma ação” (PAVIS, 2011, p. 103).
O caráter performático de ambos os textos,
porém, parece ultrapassar os limites de suas diegeses
para encontrar o leitor que tem os livros em mãos. Na epopeia camoniana, podemos observar como esse artifício se mostra ainda mais potente quando as instruções que o Poeta dá a d. Sebastião
na Dedicatória se estendem a nós, leitores:
Inclinai por um pouco a majestade
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira
idade,
Quando subindo ireis ao eterno Templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios
feitos valorosos,
Em versos devulgado numerosos
(Os Lusíadas., I, 9).
Há, por certo, uma forte relação com o ato que, n’Os Lusíadas, é atribuído
ao Rei a quem o poema é dedicado e, consequentemente, ao leitor que põe seus olhos sobre
ele e o lê e os
leitores do texto do surrealista, quando observamos que, nas versões de “pena capital” publicadas
antes de 2004, há uma coincidência entre o ato de virar a página
do livro pena
capital e o virar de páginas que sucede na cena da “hora da lição”, durante a qual “[d]ão-se humanidades, germânicas e ciências naturais” e o “Azul ponta a lição
servindo-se de um livro especialmente disposto”, conforme podemos ver na Figura 1, retirada
de Poesia (1944- 1955) (1961), e na Figura 2, de Pena capital (1999).
Figura 1 |
Figura 2 |
Nessa coincidência entre
o ato que se passa no interior
da peça de Cesariny e o
movimento que se espera que o leitor
faça, encontramo-nos, novamente, com os teatros
de Shakespeare e Artaud. Recorrendo à peça trabalhada no primeiro capítulo
deste estudo, é necessário retornarmos à cena na qual o príncipe da Dinamarca convida atores ao castelo de Elsinore para encenarem uma tragédia cujo enredo é idêntico àquele
da peça da qual são personagens. Também conhecido como teatro dentro do teatro, o palco-dentro-do-palco é um “[t]ipo de peça ou representação que tem por assunto a representação de uma peça de teatro” (PAVIS, 2011, p. 385). Dessa maneira,
é inserida, na diegese de Hamlet, uma metadiegese,
cuja função é, justamente, intervir
na realidade da diegese principal. Montado o palco-dentro- do-palco, os espectadores da peça de Shakespeare que se encontram
na plateia e assistem a Hamlet passam a ser, também, espectadores sobre o palco que assistem à nova tragédia
da mesma perspectiva que os personagens shakespearianos, ou seja, são postos no mesmo nível de existência de Hamlet, Gertrude,
Laertes e Claudius, uma vez que esses personagens se tornam, eles também, espectadores da metadiegese.
No Teatro da Crueldade artausiano, com o qual Cesariny parece
dialogar no poema dedicado ao francês, trata-se
menos de palco-dentro-do-palco do que de ação direta sobre o público, sem que haja qualquer mediação
representacional. Nele, não há qualquer distanciamento entre o que se passa no palco e na plateia, como percebemos na descrição “A Cena – A Sala”, no primeiro manifesto
de “O Teatro da Crueldade”:
Suprimimos o palco e a sala, substituídos por uma espécie de lugar único,
sem divisões nem barreiras
de qualquer tipo, e que se tornará
o próprio teatro da ação. Será restabelecida uma comunicação direta entre o espectador e o espetáculo, entre ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação, estar envolvido e marcado por ela. Esse envolvimento provém
da própria configuração da sala (ARTAUD,
s/d, p.110).
No Teatro
da Crueldade, portanto, o espectador é constantemente interpelado pelo que se passa na encenação e vice-versa.
“pena capital” é a representação de um Autor que escreve
um “estranho poema”,
no qual um Poeta está “exorcismando ao seu atelier nos astros”. A mise en abyme sobre a qual se estrutura drama, da qual o “palco-dentro-do-palco” shakespeariano é uma das muitas
formas de realização, convida os leitores a participarem em um de seus níveis estruturais.
Podemos perceber essa estrutura também
n’Os Lusíadas, como nota Berardinelli, quando afirma que “[n]uma imagem
de que o cinema tantas
vezes lançou mão (com outros
fins) vemos [o Poeta e o Narrador1] um deslizar de dentro do outro e agir independentemente, em concordância às vezes, às vezes em completa discordância” (BERARDINELLI, 2000, p. 25).
Apesar de distintos, desses tipos de construção resulta um profundo
abalo da quarta parede imaginária que separa a realidade diegética
(do texto, ou do palco),
da realidade extradiegética (cotidiana, habitada por nós, leitores
e espectadores). Em relação a essa divisão imaginária no teatro, Pavis
afirma que, “[n]a
qualidade de voyeur, o público
é instado a observar as personagens, que agem sem levar em conta a plateia, como que protegidas por uma quarta parede”
(PAVIS, 2011, p. 316). O poema de Cesariny analisado
neste capítulo, assim como Hamlet, evocado em “you are welcome to
elsinore”, e as teorias teatrais desenvolvidas por Antonin Artaud,
em O teatro e seu duplo, apesar de apresentarem estruturas
distintas, parecem ensaiar
uma fratura dessa
barreira imaginária.
Em “Magias parciais
do Quixote”, Jorge Luis Borges (1999)
registrou da seguinte maneira a estranheza que a encenação de um palco-dentro-do-palco provoca
em leitores e espectadores:
Por que nos inquieta que Dom Quixote seja leitor do Quixote, e Hamlet, espectador de Hamlet? Creio ter encontrado a causa: tais inversões sugerem que, se os personagens de uma
ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios (BORGES, 1999, p. 50).
Em consonância com Borges, Rosa Maria Martelo aponta, no ensaio “Livros,
filmes, metalepses”, que o que nos inquietaria em construções como aquelas mencionadas acima “não seria tanto o processo de replicação especular
a que chamamos mise en abîme quanto o facto de a replicação nos alertar para a possibilidade conexa de se verificar uma hipótese ‘inaceitável e insistente’” (MARTELO,
2015, p. 2) segundo a qual os leitores e espectadores
pertenceriam a uma narrativa. Baseando-se na obra de Gérard Genette,
notadamente em seu Metalepsis (2004), Martelo
vai além do que dissera
Borges e afirma
que “nada poderá assegurar-nos que a ficção
não pertence a este outro domínio que seria o da não-ficção – questão por certo não menos perturbadora” (MARTELO, 2015, p. 2). O movimento
que se simula no poema de Cesariny
parece gerar um efeito similar.
Se fizermos o caminho inverso ao
do desenvolvimento do poema, veremos
que “pena capital”
é estruturado sobre três – talvez
quatro – planos. Assim, partindo do mais externo ao mais interno,
num primeiro plano, estamos nós que lemos o poema “pena capital” escrito pelo poeta português
Mário Cesariny de Vasconcelos; nesse poema (o segundo plano), um Autor afirma ter escrito “este estranho poema, o último de nome religioso”, isto é, aquele que acabamos de ler; em seu “estranho poema” (o terceiro plano), um personagem, o Poeta, está em seu atelier lendo um livro; desse livro (talvez um quarto plano que transborda no terceiro), o Poeta vê sair outro poeta,
António, com quem será herói “duma tragédia química”
e encontrará, ainda, personagens de outras tragédias,
como Ofélia e Fausto, este último acompanhado de seu autor, Goethe, além dos personagens da cultura portuguesa e ocidental, como O Mar e Os Deuses de um “pequeno Olimpo”. Portanto,
não se trata apenas da possibilidade de transformação dos leitores ou espectadores em ficção, mas da transposição, para fora do poema, dos acontecimentos
passados em “pena capital”, tal como sucedera
com a ressuscitação de António Maria Lisboa e seu aparecimento, no atelier do Poeta, em forma de António, desde as páginas de um livro,
confirmando algo que Lisboa afirmara
em “Alguns personagens”: “o poeta não morre (como poderia ele morrer?!...)” (LISBOA,
2008, p. 105).
Assim, se o poema de Cesariny joga com a transgressão de diversos planos narrativos,
podemos aproximá-lo do conceito de “metalepse” conforme
retomado por Genette.
Enquanto modo, figural ou ficcional, de “transgredir o umbral da representação” (GENETTE,
2004, p. 16, tradução minha)46 – tomando como “representação” tudo aquilo que pertence ao “âmbito literário e a outros:
pintura, teatro, fotografia, cinema” (GENETTE, 2004, p. 15)47, entre
outros –, a metalepse de Genette é interpretada por Martelo como uma figura de linguagem associada à “porosidade entre o mundo do texto e o nosso mundo enquanto leitores,
fazendo- nos tomar consciência do acto de leitura como vertigem e como fruição
da vertigem” (MARTELO,
2015, p. 4).
Dessa maneira, se assumirmos que “pena capital”
é mais uma arte poética
cesarinyana, na qual a apresentação de um modo de escrita
sugere, também, um protocolo de leitura, então, o
franqueamento das fronteiras entre o textual
e o extratextual na diegese
desse poema funciona como uma declaração de um desejo do poeta de inscrever, na vida cotidiana, uma nova possibilidade de existência. A encenação de um ato de leitura
corresponde à apresentação de um modo de ler Cesariny, o qual se aproxima da definição dada por Scholes em seu Protocolos de leitura, quando o autor afirma que “[n]ão nos é possível
penetrar nos textos que lemos, mas estes podem entrar em nós; é isso precisamente o que constitui
a leitura” (SCHOLES, 1991, p. 22). Assim, a cena de escrita
representada pelo Autor que se mostra ao fim do poema corresponde à fundação de uma poética
na qual “ler é escrever,
é viver, é ler, é escrever” (SCHOLES,
1991, p. 23).
O conhecimento adquirido
na cena final do poema parece dizer respeito à condenação
do Poeta, que recebe como sentença
a “pena capital”. O contraste
entre a primeira e a última fala do personagem principal parece apontar
para essa tomada de consciência de um destino que lhe cabe, de uma condenação final paradoxal. Assim, à atmosfera
otimista do início do
poema, opõe-se o lamento do Poeta retornado da viagem:
Olha hoje o teu clima
está magnífico
olha vamos sair desta
cidade
onde o teu clima é sempre para dividir
por cinco
vamos para as praias da alma arrebentar-nos vivos
vamos ser os heróis de uma tragédia química
(CESARINY, 2004, p. 78).
Ao final:
[O Poeta] Chora um pouco
e murmura, olhando o céu escuro:
Sou um rio injusto, com margens de labaredas,
se me navegam,
gelo, se me fogem, queimo
(CESARINY, 2004, p. 90).
Se a atitude surrealista pode ser definida
como a busca por “um certo ponto do espírito
no qual a vida e a morte,
o real e o imaginário, o passado e o futuro,
o comunicável e o
incomunicável, o alto e o baixo deixam
de ser percebidos contraditoriamente” (BRETON, 1929, p. 1, tradução
minha)48, a escrita de Cesariny seria
uma tentativa de inscrever no mundo, a partir daquela
potência criadora da linguagem, um novo real poético. Seguindo
a linha de pensamento de André Breton, o português
reconhece que aquilo que chamamos
de realidade é, de fato, uma pequena
parte do real. Se esse poema é o “último de nome religioso escrito pelo Autor”, isso se dá como efeito da transcendência de Deus, que “não passa seguido de seus Anjos e de seus Animais”, uma vez que o Poeta
se vê capaz de criar homens, animais,
terra, mar, céu, deuses e o Olimpo, desde o interior de seu atelier. A “pena capital” é a condenação
daquele que se atreve a reivindicar para si o poder da criação e da nomeação do mundo.
_________________
36 Os personagens do poema, bem como todas as citações
retiradas de suas rubricas, serão sempre grafados em itálico, para sua melhor
identificação.
Já os artigos definidos que, invariavelmente, antecedem os nomes dos personagens são ora grafados
em maiúsculas ora em minúsculas no próprio texto de Cesariny e tal fato parece se dar aleatoriamente, uma vez que não
observei nenhuma
justificativa para a mudança
de grafia. Dessa forma,
neste texto, as minhas referências aos personagens de Cesariny
também apresentam certa variação no que diz respeito aos artigos definidos.
37 A partir da edição de 1982, no entanto, o poema “autoractor” é o último.
39 No entanto,
em
Alguns mitos maiores
alguns mitos menores propostos
à circulação pelo autor,
livro publicado em 1958, um ano depois da edição de Pena capital, podemos ver uma citação de Os Lusíadas estampada na capa (ANEXO A). O fato é registrado por Mário Cesariny
em A intervenção surrealista (1997): “1958 [...] Publicação de A antologia em 1958, dirigida
por Mário Cesariny: Alguns mitos maiores alguns
mitos menores propostos à circulação pelo autor, de Mário Cesariny. Na capa: Aqueles Que Por Obras Valerosas Se Vão Da Lei Da Vida Libertando” (CESARINY, 1997,
p. 81).
40 Em “Cesário: duas ou
três coisas”, Jorge Fernandes da Silveira comenta o verso de “Heroísmos”, articulando- o ao célebre “O sentimento dum ocidental”:
“Nas suas
viagens em círculos
pelas ruas de Lisboa, Cesário
acaba sempre por chegar
à beira dum rio fechado:
o Tejo. Corajosamente, no limite da cidade, é ele o primeiro poeta português a sujar a via da glória nacional: ‘Escarro, com desdém, no grande
mar’, Heroísmos” (SILVEIRA, 1995, p. 7).
41 António José Saraiva
e Óscar Lopes, em História da literatura portuguesa (2001), afirmam que “[q]uer no plano económico-social, quer no da ideologia dominante,
o Estado corporativo limitou-se a levar ao extremo certas tendências da República democrática liberal: a concentração do capital à custa de assalariados e rendeiros, o mito da regeneração pelas virtudes agrárias
provincianas, e de um nacionalismo passadista que se projetava em novo ciclo
de expansão colonial. No entanto,
[...] este ideário
[...] tende para uma ideologia desenvolvimentista e tecnocrática, face
à [...] intensificação em escala inédita da emigração (c. 1 milhão e
500 mil entre 1956 e 1974), e ao beco sem saída de um colonialismo de tipo oitocentista, insustentável a prazo e universalmente condenado” (SARAIVA; LOPES, 2001, p. 950).
42 Nessa passagem, Cesariny reproduz diversos trechos
de diálogos automáticos e de cadáveres
esquisitos produzidos pelos surrealistas portugueses na década
de quarenta e publicados na Antologia
Surrealista do Cadáver Esquisito, em 1961. Contudo, Maria de Fátima Marinho Saraiva,
em O surrealismo em Portugal e a obra de Mário Cesariny de Vasconcelos (1986), afirma que, nessa passagem
de “pena capital”, Cesariny reconstrói diálogos que tivera com Lisboa. Afirma a autora: “Invocando os processos usados
nos jogos do cadáver esquisito, Cesariny faz
[em ‘pena capital’] como que uma
homenagem ao seu amigo,
reconstruindo um diálogo entre os dois” (1986,
p. 381). É a própria Saraiva
quem afirma, entretanto, que o segmento “Pão a
cozer
– menino a ler” é um fragmento
retirado do texto “Alguns provérbios
e não”, de Mário Cesariny
e Alexandre O’Neill (idem, p. 38), ao qual podemos somar o provérbio “enterocolites – Frederico Nites” (CESARINY,
1961,
p. 20) do mesmo texto produzido por Cesariny e O’Neill, também
retomado no poema “pena capital”. Assim, na cena da lição, Cesariny faz uma recolha de diversos textos – surrealistas ou não, como é o caso da citação de Novalis que se segue.
43 Cf. ALMEIDA, Emília Pinto
de. Para a consideração de um plano de criação poética
na obra de Mário
Cesariny (2011). Afirma a autora:
“‘Os poetas são, simultaneamente, isoladores e condutores da ‘corrente poética’’, afirma Novalis,
num dos aforismos de Fragmentos que
Cesariny traduziu e dos que mais cita e retoma” (ALMEIDA, 2011, p. 26).
Uma das
retomadas a esse aforismo é verificada no Prefácio de Cesariny a Os poetas lusíadas, de Teixeira de Pascoaes (1987).
No texto, Cesariny traduz o aforismo
exatamente da mesma maneira que o fizera, anos antes, em “pena capital”.
44 Minha leitura de Os Lusíadas
é, sem dúvida,
devedora dos estudos
publicados no fundamental Estudos camonianos, da professora Cleonice Berardinelli (2000),
especialmente no que se refere
à divisão dos narradores da epopeia.
45 Berardinelli, em “A estrutura d’Os Lusíadas” afirma
que “o Narrador1 é um ente de papel: teoricamente é verdade; na prática, nem tanto. Como dissociá-lo do Autor, quando é este que pede ao rei o alvará de licença para passar,
com seu canto, à posteridade” (BERARDINELLI, 2000, p. 26). No entanto, a mesma autora afirma, no texto “Os Excursos
do Poeta n’Os Lusíadas”, que o pedido de alvará ao rei é feito pelo Poeta e não pelo Narrador1. Assim, podemos admitir
que ambos os personagens são indissociáveis do Autor.
46 “transgredir el umbral de representación” (GENETTE, 2004,
p. 16). Todas
as traduções de GENETTE
(2004) são minhas.
47 “digo ‘representación’ para abarcar a la vez el ámbito
literario y algunos
otros: pintura, teatro,
fotografía, cine
y, sin duda, alguno que ahora no recuerdo” (GENETTE, 2004, p. 15).
48 “un certain point
de l’esprit d’où la vie
et la mort, le réel et l’imaginaire, le passé et le
futur, le communicable et l’incommunicable, le haut et le bas cessent d’être perçus contradictoirement” (BRETON, 1929, p. 1).
Maria
Silva Prado Lessa, O poema como palco: algumas cenas da escrita de Mário Cesariny,
Rio de Janeiro, 2017.
Poderá gostar de ler algumas
cenas da escrita de Mário Cesariny:
- O depois da escrita de Cesariny: “tal como catedrais”.
- O antes da escrita de Cesariny: “you
are welcome to elsinore”.
- O sujeito poético em transformação: “autografia I” e “a antonin artaud”.
CARREIRO, José. “pena
capital, Cesariny”.
Portugal, Folha de Poesia, 05-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/pena-capital-cesariny.html
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