sábado, 4 de janeiro de 2020

a antonin artaud, Cesariny



a antonin artaud

I

Haverá gente com nomes que lhes caiam bem. 
Não assim eu.
De cada vez que alguém me chama Mário
de cada vez que alguém me chama Cesariny
de cada vez que alguém me chama de Vasconcelos
sucede em mim uma contracção com os dentes
há contra mim uma imposição violenta
uma cutilada atroz porque atrozmente desleal.

Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?
Porque é que querem fazer passar para o meu corpo
uma caricatura a todos os títulos porca?
Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios
para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe de estruturas
tão inqualificáveis quanto inadequadas
ao acto em mim sozinho como a vida     puro
eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito       eu
não quero
eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos
as partes     mais vulneráveis     da matéria

Eu estou só neste avanço
de corpos
contra corpos
Inexpiáveis

O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar ‘tenebroso e cantante’ suficientemente glaciado e horrível
para que seja impossível encontrá-lo
sem de alguma maneira enveredar pela estrada
Da Coragem
porque a este respeito – e creio que digo bem – nenhuma garantia de leitura grátis
se oferece ao viandante

Por outro lado, se eu tivesse um nome
um nome que me fosse     realmente     o meu nome
isso provocaria
calamidades 
terríveis
como um tremor de terra 
dentro da pele das coisas 
dos astros
das coisas 
das fezes 
das coisas


II

Haverá uma idade para nomes que não estes 
haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem 
constelações
puras
que façam irromper nos nervos e nos ossos 
dos amantes
inexplicáveis construções radiosas
prontas a circular entre a fuligem
de duas bocas puras

Ah não será o esperma torrencial diuturno
nem a loucura dos sábios     nem a razão de ninguém 
Não será mesmo quem sabe     ó único mestre vivo
o fim da pavorosa dança dos corpos
onde pontificaste     de martelo na mão

Mas haverá uma idade em que serão esquecidos por completo 
os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas

Haverá
um acordar

Mário Cesariny de Vasconcelos. Pena capital.
Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p. 49-51. (1.ª edição: 1957)



“a antonin artaud”, o poema como palco:
o sujeito poético em transformação

Dedicado ao fundador do Teatro da Crueldade, a antonin artaud é o último de uma série de três poemas oferecidos a outros autores publicada em Pena capital (1957). Além de Artaud, Cesariny contempla Edgar Allan Poe e António Maria Lisboa em poemas cujos títulos seguem a mesma lógica de dedicatória: “a edgar allan poe” e “a antonio maria lisboa”. Numa espécie de fundação do cânone próprio do surrealista, os três poemas parecem expor e propor um contrato de leitura da poética cesarinyana, indicando poetas dos quais Cesariny se apropriará na composição de sua obra a começar por seus nomes, aqui marcados pela preferência do autor por utilizar letras minúsculas nos títulos dos poemas, como é o caso de todos os títulos em Pena capital, a partir da edição de 1982.
Apesar de ter rompido com André Breton e o grupo francês em 192632, Antonin Artaud participou ativamente do Movimento Surrealista entre 1924 e esse ano, tendo inclusive editado o número 3 da revista La Révolution Surréaliste e dirigido as atividades de seu “Bureau de Recherches”33. Sua saída do Movimento costuma ser relacionada à vinculação do grupo, àquele momento, ao Partido Comunista Francês. Porém, Cláudio Willer, na detalhada “Nota biográfica” de abertura a Os escritos de Antonin Artaud (1986), ressalta que a ruptura foi causada por “certo tipo de niilismo” (WILLER, 1986, p. 11) da parte de Artaud frente a “uma tendência organizadora, voltada para a positividade, presente no Surrealismo” (WILLER, 1986, p. 11). Afirma, ainda, que

não deixa de ser curioso e digno de nota que o Surrealismo seja, de um lado, radical demais para muitos gostos e criticado como irracionalismo e “assalto à razão” pelos intelectuais conservadores e burgueses, pelos católicos (tradicionalistas ou socializantes), pelos comunistas (ortodoxos ou dissidentes) e pelos existencialistas; de outro, sob a ótica artausiana, é demasiado organizado e bem-comportado (WILLER, 1986, p. 11).

Cesariny, por sua vez, considerava Antonin Artaud um dos maiores representantes do Surrealismo. Para ele, “é num homem banido pelos surrealistas, Antonin Artaud, [...] que o surrealismo ponta a sua vanguarda: [...] a provada possibilidade de vida mágica, a redescoberta nela” (CESARINY, 1985, p. 114).
Sua autodenominação como “poeta” aponta a dimensão ilimitada e o caráter plural de sua obra, uma vez que escreveu e publicou pouquíssimos poemas, expressando-se de maneira mais frequente através de cartas, além de ter dedicado sua trajetória artística ao teatro, principalmente. A denominação escolhida de “poeta” funciona, portanto, como uma marca da mistura dos diversos níveis de experiência (artística ou não) dentro de um único campo, ao qual Artaud se refere como o “poético”. Segundo Willer, era impossível para o francês assumir uma postura impassível perante suas produções, algo que acarretava sua total identificação com os personagens que criava ou com os textos que porventura lia publicamente. O crítico relata que, “invariavelmente, Artaud abandonava o texto e passava a encarnar o assunto do qual tratava, em vez de se limitar a discorrer sobre ele” (WILLER, 1986, p. 12) e que, durante o período de escrita de Heliogábalo ou O anarquista coroado (1934), livro, aliás, traduzido para o português por Mário Cesariny,

Artaud se identificava com o personagem a ponto de achar que era o próprio Heliogábalo e o mundo ao seu redor, a Roma decadente. Aliás, esta é uma característica de Artaud: ele conseguia escrever ou produzir apaixonadamente, entregando-se totalmente ao tema, assumindo-o plenamente (WILLER, 1986, p. 32).

A forte aproximação entre as poéticas de Antonin Artaud e a fundamentada pela arte poética que Cesariny dedica ao francês revela um intenso exercício de apropriação promovido pelo português. Os outros dois poemas que integram a tríade de dedicatórias, “a edgar allan poe” e “a antonio maria lisboa”, apresentam estruturas quase fragmentárias, nas quais é possível identificar de maneira mais explícita os deslocamentos operados por Cesariny sobre as obras alheias. As expressões retiradas dos dois escritores são grafadas entre aspas, em itálico ou apresentam ambas as formas sobrepostas, explicitando, assim, os cortes e colagens empreendidos. Dessa maneira, podemos destacar a seguinte passagem de “a edgar allan poe”:

Contei-lhes a minha história não quiseram acreditar-me! (CESARINY, 2004, p. 46).

Trata-se de uma citação direta das linhas finais do conto “A Descent into the Maelstrom”, “I told them my story they did not believe it” (POE, 1982, p. 142). no poema “a antonio maria lisboa”, versos retirados dos poemas “Z” e “H”, de Ossóptico (2008 [1952]), postos em uma mesma estrofe por Cesariny:

E depois de longo tempo eu te perdi de vista
longe, numa fonte cheia de fogos fátuos
(CESARINY, 2004, p. 47).

Em “a antonin artaud”, no entanto, não é possível notar claramente quais versos são e quais não são de Cesariny, à exceção de uma única expressão grafada entre aspas:

O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar “tenebroso e cantante” suficientemente glaciado e horrível
(CESARINY, 2004, p. 50).

No entanto, ao contrário do que se passava nos outros poemas, nos quais as citações provinham da obra dos autores nomeados em seus títulos, esta não é uma citação de Antonin Artaud, mas do poeta português Mário Henrique Leiria, no poema “eu sei”34. Como veremos, a apropriação da poética de Artaud no poema a ele dedicado parece se dar de forma mais radical se comparada ao que se passa nos outros poemas da série, emergindo numa relação
similar àquela que Breton nota a respeito do diálogo surrealista, isto é, como um “trampolim ao espírito” (BRETON, s/d, p. 199) de Cesariny, revelando-nos mais a respeito de sua própria poética.
Portanto, a relação com a obra artausiana, declarada em forma de homenagem, pode ser pensada em termos de um conceito fundamental identificável nesta, cujo traço percebemos em Cesariny: “a identidade entre linguagem e vida, entre o signo e seu significado” (WILLER, 1986, p. 33). Como vimos em you are welcome to elsinore”, o poeta reivindica às palavras a possibilidade fundação de uma nova realidade através da destruição dos significados estanques a elas atribuídos pela linguagem cotidiana, pelo “mundo informativo da fala” (PAZ, 1982, p. 47), para que recobrem toda a sua potência significativa. Ana Kiffer, em Antonin Artaud: Uma poética do pensamento, afirma que “não se trata de uma aniquilação da linguagem, do texto, da palavras, mas como disse ainda o poeta [Artaud], trata-se de ‘quebrar o sentido usual da linguagem, de romper com sua armadura, de explodir a carcaça’” (KIFFER, 2003, p. 34-35). Se, nos poemas do primeiro capítulo, destacamos a “força genésica da linguagem” (CUADRADO, 2002, p. 183) no tocante à fundação do mundo e das coisas, ou na relação de dependência entre a nomeação das coisas e o seu aparecimento, em “a antonin artaud”, tal como em autografia I”, a potência criadora se volta para o próprio sujeito que emerge como efeito do ato poético.
O poema “a antonin Artaud” aproxima-se daqueles trabalhados no capítulo anterior, uma vez que o questionamento a respeito da potência das palavras e da saturação dos significados a elas atribuídos pela tradição persiste como tema da poesia de Cesariny. Da mesma forma, constitui uma arte poética na qual encontramos um sujeito que, em crise com a linguagem cotidiana, busca um tempo futuro de “nomes / puros”. Se, em you are welcome to elsinore”, a fundação de uma nova linguagem permitiria um encontro libertador com o outro, no poema “a antonin artaud”, a esperança de “nomes que não estes” está diretamente ligada ao desejo de libertação do sujeito frente à “imposição violenta” de estruturas estranhas a si. Na recusa do nome próprio, primeira marca da imposição do outro sobre seu corpo, que parece ocupar um lugar análogo ao da tradição imposta, o “eu” que lemos muitas vezes na primeira seção do poema escolhe homenagear uma poética, dedicar-lhe um poema, prova poética de aprendizagem e de identificação com um outro. Em “a antonin artaud”, portanto, a recusa de “uma caricatura a todos os títulos porca” parece equivaler à tentativa de construção da própria identidade, a qual, como vimos em “autografia I”, corresponde a um exercício de liberdade.
Tal recusa ao nome próprio lida na seção inicial do poema, no entanto, parece assentar sobre certa oscilação entre a negação e a afirmação, o apagamento e a inscrição do nome. Assim, ao dizer que “de cada vez que alguém” o chama pelo nome próprio lhe sucede “uma contracção com os dentes”, que contra si “uma imposição violenta”, o poeta não deixa de inscrever no papel seu nome completo, ainda que apareça esquartejado. O movimento se repete ainda no primeiro verso da segunda estrofe, o qual encerra certo caráter humorístico fundamentado no aparente absurdo do questionamento: “Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?”. O título do poema parece sofrer da mesma oscilação, uma vez que nomeia explicitamente Antonin Artaud, mesmo que com as iniciais minúsculas. Nesse movimento, o escritor, sujeito empírico que precede o poema, parece tentar apagar um nome imposto ou de impostor sobre seu corpo, em busca da conquista de sua identidade identificação e correspondência totais entre corpo e nome.
Jacques Derrida, em seu belíssimo ensaio sobre Artaud, Enlouquecer o subjétil (1998), aponta que, nesse poeta,

[a]través da paixão ou da patologia a que seu sofrimento o submete, sua verdade exibe, em seu nome, a verdade da verdade, isto é, que todo “eu” em seu nome próprio é chamado a essa expropriação familiar do recém-nascido, constituído, propriamente instruído por essa expropriação, essa impostura, essa deserção, no momento em que, muito simplesmente, uma família declara um filho e lhe o seu nome, em outras palavras, prende-o a si. Essa apropriação expropriante, essa legitimação pode ser uma violência da ficção, nunca pode ser natural nem verdadeira por estrutura (DERRIDA; BERGSTEIN, 1998, p. 65-66).

Cesariny parece expor o mesmo sentimento em seu poema quando pergunta “que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios / para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe de estruturas / tão inqualificáveis quanto inadequadas [?]”. Para ambos os poetas, portanto, a imposição do nome próprio é um acontecimento sobre seus corpos. Como afirma Derrida a respeito de Artaud, a nomeação de um filho por uma família é “singular, ligada ao corpo do evento e ao evento do corpo” (DERRIDA, 1998, p. 66). no poema de Cesariny, podemos ver como as reações causadas no momento em que o chamam por seu nome são descritas a partir de elementos ligados ao corpo e à violência física sobre o sujeito, o qual afirma que “sucede [...] uma contracção com os dentes”, que contra ele “uma cutilada atroz”. Pergunta, em seguida, “porque é que querem fazer passar para o meu corpo / uma caricatura a todos os títulos porca?”. A vontade dos “pais” em determinar as dimensões dos sujeitos, ao se inscrever sobre os corpos destes, é análoga ao processo emparedamento do homem dentro de uma muralha criada pela linguagem, conforme articulado em you are welcome to elsinore e no estudo de Breton, “Introduction au discours sur le peu de réalité” (1992 [1924]). Isto é, nomear um corpo, aquilo que é “acto [...] sozinho como a vida    puro”, é circunscrevê-lo dentro de uma lógica de significados estanques e limitadores. Segundo Derrida, essa imposição

preside ao nascimento de tudo o que será legitimado na linguagem, isto é, na sociedade, sob os nomes de nome, ser, verdade, eu, deus etc. Quem quer que se submete, vê-se submeter, sem pensá-las em seu corpo, a essas formas e a essas normas, acha-se assim bem formado, isto é, normatizado: normal. Trocou uma força por uma forma (DERRIDA, 1998, p. 66, sublinhados meus).

A “deslealdade” cometida pelo discurso dominante expressa nas duas primeiras estrofes de “a antonin artaud” é contrastada com o “enveredar pela estrada / Da Coragem”, caminho obrigatório para quem pretende encontrar o nome real daquele chamado “[...] Mário [...] Cesariny [...] de Vasconcelos”. A estrada “Da Coragem” que leva ao encontro do lugar “‘tenebroso e cantante’”, grafada com iniciais maiúsculas, assume o estatuto de “Toda A Coragem”, comparável a “todo o sangue do mundo [e] todo o amplexo do ar”. A articulação com a leitura grátis que não se garante ao “viandante” indica que não é possível passar por essa poesia sem deixar ou sem dar algo em troca, sem ser por ela afetado de alguma maneira. Nesse sentido, para enveredar pela estrada e encontrar o verdadeiro nome de “Cesariny”, é preciso ser herói.
Na segunda parte do poema, os “nomes que não estes” deixam de significar apenas os “nomes próprios”, para abarcar todos os substantivos que dão nome “às coisas”. O dêitico “este” que lemos no primeiro verso aponta que os nomes sobre os quais se fala são aqueles com os quais ele é escrito. São, também, as “palavras” de tal como catedrais e you are welcome to elsinore”. Desse último, vemos a retomada da anáfora em “há palavras”, transformada, agora, em “haverá uma idade [para nomes]”. O desejo de fundação de uma nova linguagem expresso pelo poema, junto à esperança de um tempo futuro no qual “serão esquecidos por completo / os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas” manifestam uma forma de encontro com aquilo que Cuadrado chamou de “força genésica da linguagem, a capacidade das palavras para criar realidade” (2002, p. 283)”, a qual emerge como reivindicação de liberdade desses corpos subjugados. Tanto Artaud quanto Cesariny convocam o poder mágico de criação das palavras, de encontro absoluto entre “os nomes” e “as coisas”.
Para Octavio Paz, o movimento da poesia surrealista deve ser o de um retorno ao estado primitivo da língua, àquele em que as palavras ainda não foram destituídas de toda a sua potência significativa pela sociedade. Esse retorno consiste numa operação mágica sobre a linguagem, uma vez que as palavras do poema que são e não são as da língua, como lembra Manuel Gusmão (2010, p. 400) revelam múltiplos significados, fazendo com que o poema se construa como um feitiço verbal. Dessa forma, segundo Paz, “poeta e leitor seservem do poema como de um talismã mágico, literalmente capaz de metamorfoseá-los” (PAZ, 1980, p. 48, grifo meu)35.
Para Artaud, corresponde ao “direito de romper o sentido usual da linguagem, de romper de vez a armadura, arrebentar a golilha, voltar enfim às origens etimológicas da língua que, através dos conceitos abstratos, evocam sempre uma noção concreta” (ARTAUD, s/d, p. 117). Em seu Teatro da Crueldade, trata-se do franqueamento das fronteiras entre o teatro e a realidade, através do qual arte e vida deixam de ser tomadas como termos opostos. Assim, Artaud toma o teatro como uma força que precede qualquer mudança na sociedade, negando ser um “dos que acreditam que a civilização deva mudar para que o teatro mude; mas [crê] que o teatro utilizado num sentido superior e o mais difícil possível tem a força de influir sobre o aspecto e a formação das coisas” (ARTAUD, s/d, p. 89). Willer nota que o projeto central do Teatro da Crueldade formulado por Artaud seria “a substituição do texto pela realidade, pela própria vida, e, ao mesmo tempo, a transformação da vida e da realidade em obra, em algo que é criado e transformado pelo autor” (WILLER, 1986, p. 33-34).
Da mesma forma, a cena escrita por Cesariny do sujeito que ensaia um apagamento de seu nome do poema que escreve parece apontar uma imbricação entre essas esferas. Seu objetivo parece ser, também, a dissolução da oposição entre vida e arte, através do “poder de germinação (plástico ou escrito) do verbo” (CESARINY, 1985, p. 158) surrealista frente à “‘pouca realidade’ do mundo exterior” (CESARINY, 1985, p. 158), mostrando que o movimento que vai da arte à realidade está vinculado a um compromisso ético assumido pela primeira. A recusa do nome próprio e o desejo de fundação do sujeito a partir de uma nova linguagem parecem, também, encontrar a “autoridade” sobre a qual Cesariny discorre em “Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa” (1985).
Sua busca pelos “nomes / puros” parece ser ensaiada formalmente, uma vez que é possível perceber como a construção dos versos do poema conduz ao silêncio, num movimento similar ao observado em “you are welcome to elsinore”, através das

palavras maternais sombra soluço
espasmos amor solidão desfeita
(CESARINY, 2004, p. 35).

O silenciamento também pôde ser percebido em “tal como catedrais”, no desejo de “dar descanso” às palavras, comparadas a senhoras fatigadas. A busca pela pureza das palavras resulta numa tentativa de purificação do próprio poema, o qual, segundo Octavio Paz,

seria aquele em que as palavras abandonassem seus significados particulares e suas referências a isto ou aquilo, para significar apenas o ato de poetizar exigência que acarretaria seu desaparecimento [...]. Um poema puro não poderia ser composto de palavras e seria literalmente indizível (PAZ, 1982, p. 225).

O “desaparecimento” de que fala Paz parece ser o desejo do poema de Cesariny, algo que se verifica desde a segunda estrofe de sua primeira seção. Nela, alguns vocábulos são escritos após um espaçamento na página que pretende forçar um intervalo entre as palavras que são ditas, numa libertação dos nomes. Dessa forma, encontramos

[...]
ao acto em mim sozinho como a vida        puro
eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito     eu não quero
eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos
as partes         mais vulneráveis         da matéria
(CESARINY, 2004, p. 49).

na segunda seção do poema, os versos formados por apenas um vocábulo, bem como os espaços vazios que separam expressões no interior dos versos, enquanto execução formal da pureza perseguida ao longo do poema, mostram, na finda, a expressão máxima da purificação da linguagem:

Haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem
constelações
puras [...]

Ah não será o esperma torrencial diuturno
nem a loucura dos sábios     nem a razão de ninguém Não será mesmo quem sabe           ó único mestre vivo
[...]

Haverá
um acordar
(CESARINY, 2004, p. 50-51).

Dessa purificação, portanto, resta uma linguagem rarefeita, que deseja uma nova possibilidade de linguagem, na qual os “nomes” serão capazes de “magnetizar” “constelações / puras”. Nesse sentido, parece corresponder a uma esperança na subversão da ordem estabelecida e aceita como natural, na qual “um acordar”, lançado a um momento futuro, opõe-se ao adormecimento e opacidade do presente. Porém, se, na segunda parte do poema, a “idade para nomes / puros” é mera esperança de mudança e não encontra qualquer ator capaz de empreender uma subversão sobre os “grandes nomes opacos” (“nem a loucura dos sábios nem a razão de ninguém”), na primeira parte, essa subversão é operada pelo próprio sujeito, na recusa de seu nome. Podemos ver, portanto, que o compromisso ético assumido por Cesariny tem seu ponto de partida, novamente, em seu próprio corpo, transformado pela reivindicação de autoridade e liberdade no ato poético, para que, então, possa se inscrever na realidade, “num novo real poético” (CESARINY, 1997, p. 89). Depende, fundamentalmente, do encontro com o outro. Como afirma Cesariny,

[a] acção surrealista, tende constantemente, como no acto amoroso, a fundir num total delirante, “explosivo-fixo”, “solene-circunstancial”, todas as presenças, ligando estreitamente a coisa a possuir e os meios de possuí-la numa viagem que se termina quando ardeu por completo não apenas o carvão que movia a locomotiva, mas a locomotiva, a estação de chegada, os raills (sic) e os passageiros (CESARINY, 1997, p. 89).


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32 Em “Prolegómenos ao aparecimento de Dadá e do Surrealismo” (1997), Mário Cesariny anota a ruptura de
Artaud no ano de 1927: “Manifestos À luz do dia, de Breton, Aragon, Éluard, Péret, P. Unik, e Em plena noite,
de Artaud, que consagram a ruptura deste último com a orientação do movimento” (CESARINY, 1997, p. 32).
33 C.f. La Révolution Surréaliste, Paris, nº 3, 15 de abril 1925.
34 “eu sei / que um lugar por descobrir / um lugar tenebroso e cantante / como uma ponte de velhos manequins // / o teu corpo / dois seios despedaçados / e o vento o vento / soprado através dos / teus cabelos” (in: CUADRADO, Perfecto (org.). A única real tradição viva: antologia da poesia surrealista portuguesa. Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p. 159).
35 “poeta y lector se sirven del poema como de un talismán mágico, literalmente capaz de metamorfosearlos” (PAZ, 1980, p. 48).

Maria Silva Prado Lessa, O poema como palco: algumas cenas da escrita de Mário Cesariny, Rio de Janeiro, 2017.


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CARREIRO, José. “a antonin artaud, Cesariny”. Portugal, Folha de Poesia, 04-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/a-antonin-artaud-cesariny.html



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