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domingo, 15 de setembro de 2013

CANÇÃO DO MALTÊS (Manuel da Fonseca)


 MANUEL DA FONSECA
            
       
MALTÊS
I
Em Cerromaior nasci.

Depois, quando as forças deram
para andar, desci ao largo.
Depois, tomei os caminhos
que havia e mais outros que
depois desses eu sabia.

E tanto já me afastei
dos caminhos que fizeram,
que de vós todos perdido
vou descobrindo esses outros
caminhos que só eu sei.
         
II
Veio a guarda com a lei
no cano das carabinas.

Cercaram-me num montado;
puseram joelho em terra;
gritaram que me rendesse
à lei dos caminhos feitos.
Mas eu olhei-os de longe,
tão distante e tão de longe,
o rosto apenas virado,
que só vi em meu redor
dez pobres ajoelhados
perante mim, seu senhor.
          
III
Chegou gente às janelas,
saíram homens à rua:
‑ as mães chamaram os filhos,
bateram portas fechadas!

E eu, o desconhecido,
o vagabundo rasgado,
entrei o largo da vila
entre dez guardas armados;
‑ mais temido e mais amado
que o deus a que todos rezam.

‑ Que nunca mulher alguma
se rendeu mais a um homem
que a moça do rosto claro
ao cruzar os olhos pretos
com o meu olhar de rei!
          
IV
... E, vendo que eu lhes fugia
assim de altiva maneira
à sua lei decorada,
lá,
longe do sol e da vida,
no fundo duma cadeia,
cheios de raiva me bateram.
Inanimado,
tombei por fim a um canto.

E enquanto eles redobravam
sobre o meu corpo tombado,
adormecido
eu descansava
de tão longa caminhada!...
          
Manuel da Fonseca, in Planície, 1941
          
           
AUDIÇÃO DO POEMA
     
 

        

Título do cd áudio:

Os malteses

Título da faixa 6


Autor(es):

Vitorino (canto); Manuel da Fonseca (texto e dicção)

Publicação:

Portugal: Movieplay, p. 1999
          
              
O MALTÊS E A ERRÂNCIA
                
maltês é aquele que desafia esse sistema e que por isso se pode deslocar. A personagem recolhe do espaço novos modos de existência, ou seja, manipula o espaço porque se lança na conquista dos seus mistérios e nos mistérios de si próprio: "Depois, tomei os caminhos / que havia e mais outros que / depois desses eu sabia. / E tanto já me afastei / dos caminhos que fizeram, / que de vos todos perdido / vou descobrindo esses outros / caminhos que só eu sei." (Maltês:108). Aqui se encontra essa dupla tensão entre o interior e o exterior: aquele que se abre ao mundo (através da errância, por exemplo) desafia o tempo e a morte porque questiona a sua posição no mundo: o que faço aqui? Através desta questão procura a singularidade do espaço que ocupa (o aqui) e cria uma simpatia entre a geografia e a interioridade porque ao questionar-se sobre o aqui opõe-no a um além (Laumonier, 1997). Será através do caminho que se procura o sentido para o seu lugar no mundo, dai o lugar também se encontrar na errância. Este, constituirá, neste contexto, uma unidade, ou seja, um entendimento entre o sujeito e o mundo que pode não estar num espaço determinado, porque não se encontra nem no aqui nem no além, mas na passagem do aqui para o além, ou seja, no caminho que traça com o seu próprio corpo, numa geografia que cria dentro de si.
É entre o ficar e o partir que o sujeito dá um sentido ao ato de viver (Dubois, 1968: 106) porque ao distanciar-se do aqui, cria a possibilidade de agir contra "os caminhos feitos" e a procurar esses "outros caminhos" que só ele conhece. É através da errância que o maltês ou o vagabundo encontram uma identidade e, consequentemente, a possibilidade de comunicar e de descobrir outros caminhos e outras formas de ver o mundo: "E quando notaram que eu parecia um homem, / pois tinha / ouvidos para ouvir / e olhos para ver, / em todas as estradas do mundo me gritaram: / ‑ Mendigo, vai ver o fim das estradas todas do mundo!"1). Ao contrário das outras personagens, o vagabundo não está na "ignorância de si", consegue ouvir e ver. Assim, para o errante abre-se a possibilidade de ver as estradas todas do mundo porque não está "implicado"2 naquela sociedade. É um ser que tem acesso à liberdade uma vez que tem mobilidade e, consequentemente, ‑ apesar de ser um marginalizado, a um nível diferente das outras personagens ‑, pode comunicar mesmo a nível social: "‑ Eu falava por mim ‑ ia dizendo o Maltês. ‑ Eu falava por mim, esquecido de ti e dos que têm família. Sou o culpado. Vocês não podem ter opiniões... São como um rebanho: pedrada nos cornos, e boca calada."3
A relação do errante com o espaço é diferente porque nasce de um movimento físico e psicológico que consegue criar à sua volta. Através da relação imaginária com o espaço exterior e interior, consegue «tocar-se, tocando» (Merleau-Ponty, 1997). É pelo movimento que toma consciência das suas angústias, mas também é através desse movimento que consegue ultrapassar as suas incertezas, os perigos do real e assegurar o domínio sobre as coisas4 (Matorés, 1976: 174) aprendendo a conhecer-se e a conhecer o seu lugar no mundo: "Ele não era da raça de gente da Fonte Velha, aquilo eram sobreiros a quem todos os anos arrancam a pele. E, no Inverno, alapardavam-se, torcidos, junto do lume, com os filhos em volta, como bolotas apodrecerem pelo chão. Ele era de outra raça."5. O movimento é também uma forma de lutar contra o finito do corpo, contra o apodrecer pelo chão, como se pelo movimento no espaço exterior se desse simultaneamente um movimento de criação no espaço interior. No movimento infinito do espaço interior, a imaginação espacializa-se no espaço exterior porque é esse movimento que projeta o sujeito nesse espaço, tomando-se autor de uma geografia imaginária que o liberta e o faz compreender o mundo. Diríamos, como José Gil (1997: 170) que "É a geografia das forças e dos afetos que se exprime em traços da paisagem que são traços de rosto. Inversamente, o interior do rosto torna-se paisagem porque o olhar capta o exterior em que ele próprio se encontra espelhado, disperso, investido [...] e absorve-o para o interior.". A descrição do Maltês em Cerromaior é reveladora de toda essa geografia "Devia andar pelos cinquenta anos, mas toda a sua figura, alta e seca, apesar do aspeto devastado, era cheia de serenidade. O rosto, de testa ampla, tinha qualquer coisa de áspero e de inteligente. Naquele momento, o brilho frio dos olhos levantados para a vila ainda aumentava mais a dureza das feições." (p.43). O ser errante consegue, assim, humanizar o espaço porque lhe arranca sentidos que o seu corpo transportará. Ao transportar esses sentidos (do mundo), para o mundo, e para os outros (em Cerromaior, Maltês partilha as suas forças, os seus afetos através das quadras que compõe e que correm de boca em boca; no conto Sempre é uma Companhia, o velho Rata partilha o que retém das suas viagens com o Batola), faz do movimento um ato de comunicação. O Maltês ou o Vagabundo são aqueles que transportam sentidos do mundo e os comunicam aos outros, ou seja, ao mundo. Esta forma de estar é uma abertura ao mundo, aos outros e a si próprio.
O Maltês nunca se encontra nem completamente fechado nem completamente aberto porque está em constante movimento: há uma parte de si que se abre mas também há uma parte de si que se fecha porque como ser de aventura «est dedans-dehors, mais quelquefois plus dedans que dehors, quelquefois plus dehors que dedans, et quelquefois l'un autant que l'autre inextricablement.» (Jankélévitch, 1963: 16). Nessa abertura, não se dá a ninguém, partilha a sua intimidade com todos os lugares do mundo e com nenhum simultaneamente: "Aí [na planície], era a sua casa e o céu o seu telhado."6. Assim, toma-se ele próprio um espaço intermédio, um espaço de fronteira onde tenta reconciliar a intimidade com os lugares do mundo (Laumonier, 1997: 25).
O espaço de fronteira será então aquele que se encontra entre o interior e o exterior, entre a luz e sombra, entre o sol e noite, entre a vida e morte. Aquele que se encontra na fronteira liberta-se da escuridão. Pelo contrário, aquele que não consegue partir, que fica preso à monotonia dos "passos de cada dia", à desgraça humana de um espaço finito onde se repetem as mesmas paisagens, fica também preso na noite, na sombra e num tempo finito "Ai, mas a vida nunca espera por ninguém... "7; a personagem Campaniça, tem consciência da finitude do tempo ao aperceber-se de que vai envelhecer e morrer naquele espaço finito que é a aldeia de Valgato. Para Zé Gaio, que Maria Campaniça admira, o caminho da errância será a luta contra a finitude do espaço (a prisão, as paisagens iguais, a repetição dos mesmos gestos) e a finitude (a morte).
O caminhar, o passo é também contra o tempo porque se opõe àquele que fica e que vê passar o tempo. Caminhar é agir sobre o tempo porque se cria, com o corpo (a sua voz), uma história no espaço: ''Lenta, a canção dos ganhões ia-se modulando: / Nasce o sol, torna a nascer, / pra mim é sempre sol-posto... Dessa quadra tinha ele composto quatro décimas, no Inverno passado, enquanto esperava que a chuva acabasse, abrigado numa choupana de pastores. Agora, gente da feira cantava a quadra e a ceifa havia terminado. Tinha que ir-se embora... Estava velho, mas não podia parar. Nunca poderia parar."8
Através das quadras que compõe, o Maltês consegue criar um prolongamento do seu corpo e da sua vida, porque aquilo que viu pelas estradas do mundo e que constitui a sua história, vai ser cantado pelos outros e fazendo, também, parte da história de cada um.
O caminho seria assim uma das metáforas da vida na obra de Manuel da Fonseca se o entendermos como um dos símbolos da vida humana " 'como un camino vital y el hombre como viajero a pie sobre este camino, como Homo Viator' "9. A vida que se procura a cada momento na obra de Manuel da Fonseca realiza-se no movimento da partida e, por essa razão, o maltês, sendo aquele que o consegue concretizar, descobre os seus mistérios porque a partir do que vai conhecendo vai traçando outra geografia (como contador de histórias), outros caminhos que só ele conhece: ''E tanto já me afastei / dos caminhos que fizeram, / que de vos todos perdido / vou descobrindo esses outros / caminhos que só eu sei."10
O lugar é assim uma geografia de afetos que nasce da própria ficção do espaço para o Maltês, e da ficção do espaço para o autor através da sua obra, porque há uma relação entre a figura do maltês e a do autor: "O 'eu' que no discurso se manifesta é, decerto, o de uma figura típica que (como na "canção do Maltês") se sente fascinada pelo estatuto de contador da sua história; mas ele representa também, mediatamente, o 'eu' lírico do poeta. Tipo e sujeito lírico encontram-se assim fundidos, como resultado de uma dialética entre o temático (social, económico, etc.) e o discursivo, dialética a que obviamente não é alheio um testemunho de solidariedade de nítido recorte ideológico." (Reis, 1983: 462).
O contador de histórias procura uma unidade através dos textos para falar de uma história comum: a do Alentejo. Por isso, existe uma estrada que sai de Cerromaior para Valgato,11 e em Valgato Maria Campaniça sonha em ir viver para Cerromaior,12encontramos, ainda, as mesmas personagens nos contos e nos romances em diferentes momentos da sua vida.
O vazio e o silêncio, que caracterizam a vida das personagens, parecem estar ausentes do movimento que liga os textos: as personagens não estão distantes umas das outras, nem geograficamente nem a nível de vivências. Existe como que um caminho a ligar os textos num mesmo propósito: o de falar dessa experiência humana do espaço e do tempo. O espaço do silêncio e da solidão serve, igualmente, para que a personagem encontre o sonho, é através dele que se desdobra; é aí que a personagem vai encontrar o poder das palavras. Primeiro, as palavras do texto surgem para quebrar o vazio, a ausência de diálogo, do silêncio, depois, as palavras da personagem, aquelas que consegue descobrir nesse silêncio para se libertar. As palavras e o que une os textos entre si dizem-nos que as personagens estão perto umas das outras num mundo comum. Como diz Poulet (1963: 96), «Les lieux ne sont done plus irrémédiablement isolés; [...]. Les lieux se tiennent. Leurs côtés se touchent. Le mouvement permet de passer des uns aux autres. Nous ne sommes plus dans un univers ou dominent l'incommunieabilité et la distance.». O movimento (a construção do lugar, onde quer que ela se realize) muda as "leis" daquele universo porque abre um espaço de liberdade, de mudança: os homens não estão irremediavelmente sós nem irremediavelmente distantes.
                
Espaços de sentido: a construção do lugar na ficção de Manuel da FonsecaMaria da Glória Alhinho dos Santos,
Lisboa, Instituto Superior de Psicologia Aplicada, 2002, pp. 122-129.
                
____________________
  1. "O Vagabundo" in Obra Poética, p.64.
  2. Dizemos "implicado" porque as outras personagens, apesar de marginalizadas ‑ no sentido em que não têm um lugar naquela sociedade ‑, tal como o Maltês, estão, de certa forma, implicadas naquela sociedade porque contribuem mais que não seja com o seu trabalho e alienação para que ela perdure.
  3. Cerromaior, p. 213.
  4. "Cercaram-me num montado; / puseram joelho em terra; / gritaram que me rendesse / à lei dos caminhos feitos. / Mas eu olhei-os de longe, / tão distante e tão de longe, / o rosto apenas virado, / que só vi em meu redor / dez pobres ajoelhados / perante mim, seu senhor”. "Maltês" in Obra Poética, p. 109.
  5. Cerromaior, p.229.
  6. Cerromaior, p.131; cfr., ainda, com o poema "O Vagabundo" in Obra Poética, p.64.
  7. ''Partir!...” in Obra Poética, pp. 56-57.
  8. Cerromaior, p.228.
  9. Friedrich Bollnow citado por Ricardo Gullón in op.cit., p.133.
  10. "Maltês" in Obra Poética, p. 108.
  11. Cerromaior, p.65.
  12. "Campaniça" in Aldeia Nova, p.12

OS MALTESES (VITORINO)                
                
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 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html


 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                    

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/15/maltes.aspx]

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