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quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

PAISAGENS DE INVERNO I (Camilo Pessanha)


   


PAISAGENS DE INVERNO
       
I
       
Ó meu coração, torna para trás. 
Onde vais a correr, desatinado? 
Meus olhos incendidos que o pecado 
Queimou... Voltai, horas de paz.

Vergam da neve os olmos dos caminhos. 
A cinza arrefeceu sobre o brasido. 
Noites da serra, o casebre transido... 
— Cismai meus olhos como dois velhinhos.

Extintas primaveras evocai-as:
— Já vai florir o pomar das macieiras, 
Hemos de enfeitar os chapéus de maias. —

Sossegai, esfriai, olhos febris.
— E hemos de ir cantar nas derradeiras 
Ladainhas... Doces vozes senis...
       
Camilo Pessanha
   
   
*
   
   
QUESTIONÁRIO
1. Realce a relação metonímica eu/tu-vós (partes do eu).

2. Que parte do eu fracionado representa:
-a sua relação com o exterior?
- o conhecimento adquirido?

3. De que forma se associa o Inverno à decadência?

4. O Simbolismo herdou do Decadentismo o gosto da sinestesia. Selecione exemplos no poema.

5. Surpreenda no poema características recorrentes no Simbolismo.

6. Complete o esquema com versos ou expressões do poema:


   

     Textos de apoio

  

CAMILO PESSANHA EM DOIS TEMPOS

Neste soneto [“Ó meu coração, torna para trás.”] observa-se uma interpenetração de tempos e espaços em que a 2ª quadra nos coloca num presente de inverno (na natureza e na senilidade do homem), opondo-se a “primaveras” agora “extintas”, existentes na memória e/ou na imaginação do sujeito poético. Criam-se grupos de oposições entre neve, cinza X luz, brasido; coração desatinado, “olhos incendidos que o pecado/ Queimou”, “olhos febris” X olhos que cismam: ”como os velhinhos”. Paralelamente, uma voz conselheira — da Consciência? da Razão? — manifesta-se em imperativos que pregam comedimento. Verbos no presente, no passado e no futuro criam um caleidoscópio temporal, em que o pretérito perfeito pode ser lido como presente e o futuro como passado. É como se as evocações do passado fossem moldadas ou remodeladas de acordo com as esperanças, os ideais colocados num futuro inatingível.

Noutro soneto [“Passou o outono já,já torna o frio…”] evidencia-se a própria tentativa de captar em poema a fugacidade do tempo, articulada na metáfora heraclitiana do rio.

Água e tempo, como na clepsidra, confundem-se, permitindo o acesso do plano físico ao metafísico: ante a implacabilidade e irreversibilidade do fluir, associado aos estados de alma do poeta, o quo vadis sem resposta de “Para onde me levais meu vão cuidado?/ Aonde vais, meu coração vazio/ […] Onde ides a correr, melancolias?

 

Camilo Pessanha em dois tempos, Gilda Santos e Izabela Leal, Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, pp. 33-34

 

***

 

PAISAGENS DE NEGAÇÃO: A AMBIÊNCIA E A MELANCOLIA COMO MARCAS DA NEGAÇÃO EM PAISAGENS DE INVERNO

 

Num primeiro momento, podemos constatar o conceito de dualidade que afirma uma luta ardente entre a razão e a emoção. Nessa luta, o eu lírico observa o descarrilamento do coração e o interroga de forma lúcida e racional: “Onde vais a correr, desatinado?”. Não obstante o cunho divergente expresso no verso, o poeta ainda atenta para certa prudência ignorada pelas emoções: “Ó meu coração, torna para trás”. Observa-se que na perspectiva do eu lírico não há esperança nem, por consequência lógica, futuro, mas apenas a negação da vontade de existir em oposição ao desejo de viver.

Como reflexo dessa dicotomia mente/coração, o poeta ainda utiliza vocábulos que associam a trivial existência do ser humano ao sofrimento natural do homem. Destarte, os olhos incendidos queimados pelo pecado minguam o poeta à penitência e à vigília, contrastando sempre o sofrimento do presente com a aprazibilidade do passado.

Posteriormente à confissão do desespero e do anseio pelas “longas noites de paz”, o poeta contextua o ímpeto desse pensamento dando vasão, agora, a uma atmosfera que corresponde tanto melódica quanto imagisticamente. Nessa atmosfera, as imagens apontadas pelo poeta apresentam um cunho perceptivelmente decadente e a visão pessimista do eu lírico corrobora o axioma da negação quando observamos não haver vestígios de esperança na contextualização da cena.

Além da imagem das árvores carregadas de neve, os olmos ainda pendem num sentido de insuficiência vital, pondo em evidência certo acúmulo de negativismo. A soma desses aspectos decadentes, como os galhos que vergam sob o peso da neve, já anuncia uma ideia de desistência, de não vida, de negação existencial.

O segundo verso, além de complementar a premissa do primeiro, expõe uma noção dicotômica que pode ser percebida através do sentido de esfacelamento e do desmembramento já anotado por Kurrik e Mucci. Nesse viés, o poeta anota que “A cinza arrefeceu sobre o brasido” e essa esplêndida colocação deve ser observada com devido mérito.

Em primeiro lugar, é válido observar que as cinzas sobre o brasido são uma imagem típica das tantas que aparecem em Clepsidra. Observando o que disse Oscar Lopes sobre a poesia de Pessanha ser um inventário de um desastre, percebemos que no braseiro não há brasa, mas apenas restos materiais deixados pelo fogo. Levando em conta o clamor do poeta pela volta das “longas noites de paz” e tendo em mente o arrefecer das cinzas sobre o brasido, podemos afirmar que não houve, em um momento anterior à neve e às tormentas, dias de alegria, tampouco dias de glória.

Nessa tendência, o poeta não atenta para a possível brasa no braseiro em tempo remoto, nem para os verdes olmos floridos em época de primavera, mas sim para um resultado melancólico. A gradação que ocorre no poema parte de uma premissa intensamente negativa, posto que a narração não se inicia nas brasas nem nas verdes folhas, mas nas cinzas e no peso da neve que faz vergar os galhos.

Indo além, o arrefecer das cinzas sobre o brasido invoca, analogicamente, a própria vida em fiapos. Nessa perspectiva, as cinzas encontram eco no “Poema final” em que os sintomas de vida e existência estão ligados miseravelmente a jatos de luzes e abortos nas prateleiras dos museus.

Isso posto, é válido observar que o arrefecer não apenas descreve a imagem decadente, como também retrata, metaforicamente, um sentimento de melancolia que assoberba o poeta. O arrefecer está diretamente ligado ao declínio da vida, isso já timbrado pela imagem dos olmos pendidos como se desgastados ou destituídos de vigor físico. Assim, a imagem é reforçada e o que outrora era tomado apenas por fraqueza física passa a ser, paralelamente à primeira ideia, languidez e inércia, voltando à fraqueza psíquica introduzida em “Inscrição”.

Dessa passagem do físico (sensação) ao psicológico (pensamento) se manifesta uma atmosfera negativa que rompe com qualquer possibilidade ou pensamento de vitalidade. O negativismo se revela puramente pela ausência de imagens ou pensamentos positivos que poderiam, ao mínimo, anular o desejo de aniquilação ou negação da vida presente no poema.

Para respaldar nosso pensamento, Gumbrecht observa:

Para passar da sensação ao pensamento, a alma atravessa uma posição de equilíbrio na qual a sensibilidade e a razão atuam simultaneamente. Sensibilidade e razão combinam-se para suspender a energia que determina ambas; isto é, o antagonismo delas gera sua negação (GUMBRECHT, 2014, p. 18).

Desse antagonismo entre sensibilidade e razão surgem imagens que reiteram o tom de negação presente no poema. O diálogo da consciência com o coração endossa nosso raciocínio e ainda corrobora, sem ressalvas, a desarticulação do espaço-tempo, resultando na estagnação temporal e negando, por consequência desta estagnação, a vida e a morte.

Sobre esse conceito do espaço-tempo, Oscar Lopes estatui:

Camilo Pessanha traz à poesia portuguesa toda a dinâmica até então insuspeitada do momento subjetivo no domínio da percepção, desarticulando as dimensões do espaço-tempo como dados mecanicamente exteriores, desarticulando a perspectiva puramente geométrica [...], mobilizando os modos afetivos de reação à realidade sensorial (LOPES, 1989, p. 136).

O que Oscar Lopes afirma ser “momento subjetivo no domínio da percepção” se traduz na sutileza com que as coisas passam do estado físico (os olmos pendendo sob o peso da neve) ao estado psíquico (o arrefecer metafórico das cinzas sobre o brasido). A conclusão da ideia se dá por intermédio de outra imagem que se evoca à leitura do terceiro verso: “Noites da serra, o casebre transido...”. Não obstante a anulação da alma oriunda da combinação entre razão e sensibilidade, a imagem da habitação em meio às noites da serra transmite um sentimento lúgubre que evoca as premissas pessimistas do meio caminho entre vida e morte.

É oportuno observar que o casebre transido resulta de uma figura de linguagem na qual a mescla de vida e morte é manifesta por meio de um equilíbrio entre o animado e o inanimado. Por essa perspectiva, a prosopopeia inerente no verso põe em relevância a percepção de restrição mental ou física, forjada pelas paredes do casebre, adjunta ao sentimento de terror e medo procedentes do vocábulo “transido”.

Ainda por essa linha de raciocínio, a escolha do substantivo “casebreem detrimento do primitivo (casa) ou seus derivados (casarão, casona) complementa o propósito lúgubre da imagem, tendo em vista que o próprio vocábulo invoca, por meio de convenção da língua, aspectos de abandono e ruínas.

Nesse cenário, parece ser certo afirmar que a imagem é justamente a afirmação de uma atmosfera de proximidade à morte. As escolhas feitas pelo poeta no tocante aos vocábulos e construção de imagens e sentido estão muito mais voltadas para um sentido minguante de fim da existência do que para uma ideia unilateral de fim do ciclo vital.

Essa é a metáfora da segunda imagem: a reclusão do ser em um lugar tomado por ruínas, onde a probabilidade de afirmação da vida é mínima. Assim, os olmos curvados pelo peso da neve, as cinzas frias sobre o braseiro e o casebre transido fecham um quadro de total desistência, apontando para a morte e para a negação da vida.

Isso posto, é pertinente ressaltar que embora a premissa de morte envolva a ambiência do poema, não há consumação desse desejo de morte. Isso, ao nosso ver, é muito significativo, uma vez que nossa finalidade é notabilizar a negação da existência, ainda que a vontade de existir submeta e compile o poeta à vida.

Nesse ponto de vista, o eu lírico reflete sobre o existir numa demonstração de aflituosa inquietação: “Cismai, meus olhos, como uns velhinhos”. Além dessa tomada de consciência que resulta no diálogo entre a consciência do poeta e seu corpo, a ideia de cismar está atrelada à percepção do poeta no tocante à experiência que desaconselha a vida. Paulo Franchetti corrobora nosso pensamento ao perceber:

De fato, parece procedente ver no poema um conflito entre duas inclinações pertencentes ao mesmo sujeito: por um lado a voz do conhecimento, da experiência, por outro, as inclinações da sensibilidade, representadas pelo coração, e as do desejo, representadas pelos olhos (FRANCHETTI, 2009, p. 27).

O tom de advertência que pode ser sentido em “cismai, meus olhos, como uns velhinhos [...]” está estritamente amarrado a uma experiência de desconfiança do que se refere às inclinações do desejo observadas por Franchetti. Ainda nessa linha de pensamento, o apelo aos olhos se conecta à perspectiva da suplantação da visão meninil sobre o mundo pela visão adulta, destacando, uma vez mais, a experiência e a sagacidade do olhar idoso em detrimento da sensibilidade já exposta pelo coração a correr desatinado.

Se os dois quartetos do poema exibem paisagens ligadas à atmosfera de negação da existência, os dois tercetos que fecham o soneto advêm com vocábulos que apontam para um futuro derradeiro de aniquilação. Ainda que o primeiro terceto bosqueje uma faísca de desejo vital, o terceto final rompe com qualquer pressuposto vigorante e retoma o tom de morte e desistência.

Dessa forma, o conflito entre sensibilidade e razão se dá na medida em que o coração, marcado no início do poema pelo desvario proposto pelo vocábulo desatinado, evoca as extintas primaveras. A partir dessa evocação, projetam-se cenários futuros em que o florido das macieiras, extinto pela neve, torna como se respondesse a um desejo unicamente emocional. A ideia ainda se repete no próximo verso em que, por consequência do florido hipotético da primavera, o eu lírico observa, ainda sob o crivo da sensibilidade, a contingência de poder enfeitar os chapéus com flores.

Num movimento de oposição ao penúltimo terceto, o poema se fecha com o reaparecimento da voz reflexiva da experiência, agora, porém, fazendo oposição aos olhos que cismam. Assim sendo, a voz aconselhadora se opõe à razão e recupera, de forma análoga, a mesma premissa dos primeiros versos do poema, fazendo soar o derradeiro receio do fim e apontando para o iminente sentido derrotista da vida, repelindo a própria ideia de impulso ou vitalidade dos olhos cismantes.

Por essa linha de raciocínio, os olhos que outrora cismavam de forma meditativa e inquieta são agora acometidos pela total desistência da razão enquanto mediadora da sensibilidade, e sua meninice, e o conhecimento, e sua madurês. Essa desistência de cismar resulta na aceitação da morte física ou da própria consciência, restando ao poeta o ato derradeiro de juntar-se àqueles, cujas vozes já cederam à morte ou ao abandono da razão.

Nessa tendência, é mister observar que se “[...] dinamiza, a partir da experiência deceptiva, as várias imagens da quietação, da ausência do desejo e, portanto, da morte, que constituem o tecido simbólico de clepsidra” (FRANCHETTI, p. 28). Levando em conta os apontamentos de Kurrik na obra Literature na negation (1979), observamos que a negação vem por conta da polaridade entre presença e ausência de algo. Nessa lógica,

Talvez não seja exato compreender as inclinações da sensibilidade e do desejo como irracionais, opondo-as, assim, à voz da experiência, que equivaleria à razão. Mas [...] uma experiência que redunda numa sabedoria apenas negativa, que aponta sempre [...] para a inutilidade dos esforços e para a decepção fatal que está implicada em cada conquista (FRANCHETTI, 2009, p. 27).

 

A título de conclusão deste capítulo, é importante observar que as paisagens contempladas pelo eu lírico refletem, num movimento pendular, o cenário interior cunhado por Pessoa. Assim, “[...] tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens” (PESSOA, 1969, p. 101). Efetivamente, as paisagens de Clepsidra não apenas ilustram a perspectiva decadente do Fin de siècle, mas tomam amplas proporções em que o mero conceito ilustrativo é suplantado pela concepção significativa/subjetiva de panoramas que refletem e retratam a dor humana de existir.

 

Ezequias da Silva Santos. Aspectos de uma estética da negação na poesia de Camilo Pessanha, Pato Branco, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, 2019



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 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/09/paisagens.de.inverno1.aspx]

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