Onde vais a correr, desatinado?
Meus olhos incendidos que o pecado
Queimou... Voltai, horas de paz.
Vergam da neve os olmos dos caminhos.
A cinza arrefeceu sobre o brasido.
Noites da serra, o casebre transido...
— Cismai meus olhos como dois velhinhos.
Extintas primaveras evocai-as:
— Já vai florir o pomar das macieiras,
Hemos de enfeitar os chapéus de maias. —
Sossegai, esfriai, olhos febris.
— E hemos de ir cantar nas derradeiras
Ladainhas... Doces vozes senis...
2. Que parte do eu fracionado representa:
-a sua relação com o exterior?
- o conhecimento adquirido?
3. De que forma se associa o Inverno à decadência?
4. O Simbolismo herdou do Decadentismo o gosto da sinestesia. Selecione exemplos no poema.
5. Surpreenda no poema características recorrentes no Simbolismo.
6. Complete o esquema com versos ou expressões do poema:
Textos de
apoio
CAMILO PESSANHA EM DOIS TEMPOS
Neste soneto [“Ó meu coração,
torna para trás.”] observa-se uma
interpenetração de tempos e espaços em que a 2ª quadra nos coloca num presente
de inverno (na natureza e na senilidade do homem), opondo-se a “primaveras”
agora “extintas”, existentes na memória e/ou na imaginação do sujeito poético.
Criam-se grupos de oposições entre neve, cinza X luz, brasido; coração
desatinado, “olhos incendidos que o pecado/ Queimou”, “olhos febris” X olhos
que cismam: ”como os velhinhos”. Paralelamente, uma voz conselheira — da
Consciência? da Razão? — manifesta-se em imperativos que pregam comedimento.
Verbos no presente, no passado e no futuro criam um caleidoscópio temporal, em
que o pretérito perfeito pode ser lido como presente e o futuro como passado. É
como se as evocações do passado fossem moldadas ou remodeladas de acordo com as
esperanças, os ideais colocados num futuro inatingível.
Noutro soneto [“Passou o outono já,já torna o frio…”] evidencia-se a
própria tentativa de captar em poema a fugacidade do tempo, articulada na
metáfora heraclitiana do rio.
Água e tempo, como na clepsidra, confundem-se,
permitindo o acesso do plano físico ao metafísico: ante a implacabilidade e
irreversibilidade do fluir, associado aos estados de alma do poeta, o quo vadis sem resposta de “Para onde me
levais meu vão cuidado?/ Aonde vais, meu coração vazio/ […] Onde ides a correr,
melancolias?
Camilo Pessanha em dois
tempos, Gilda Santos e
Izabela Leal, Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, pp. 33-34
***
PAISAGENS DE NEGAÇÃO: A AMBIÊNCIA E A MELANCOLIA COMO MARCAS DA
NEGAÇÃO EM PAISAGENS DE INVERNO
Num primeiro momento, podemos constatar o conceito de
dualidade que afirma uma luta ardente entre a razão e a emoção. Nessa luta, o
eu lírico observa o descarrilamento do coração e o interroga de forma lúcida e
racional: “Onde vais a correr, desatinado?”. Não obstante o cunho divergente
expresso no verso, o poeta ainda atenta para certa prudência ignorada pelas
emoções: “Ó meu coração, torna para trás”. Observa-se que na perspectiva do eu
lírico não há esperança nem, por consequência lógica, futuro, mas apenas a
negação da vontade de existir em oposição ao desejo de viver.
Como
reflexo dessa dicotomia mente/coração, o poeta ainda utiliza vocábulos que
associam a trivial existência do ser humano ao sofrimento natural do homem.
Destarte, os olhos incendidos queimados pelo pecado minguam o poeta à
penitência e à vigília, contrastando sempre o sofrimento do presente com a
aprazibilidade do passado.
Posteriormente
à confissão do desespero e do anseio pelas “longas noites de paz”, o poeta
contextua o ímpeto desse pensamento dando vasão, agora, a uma atmosfera que
corresponde tanto melódica quanto imagisticamente. Nessa atmosfera, as imagens
apontadas pelo poeta apresentam um cunho perceptivelmente decadente e a visão
pessimista do eu lírico corrobora o axioma da negação quando observamos não
haver vestígios de esperança na contextualização da cena.
Além da
imagem das árvores carregadas de neve, os olmos ainda pendem num sentido de
insuficiência vital, pondo em evidência certo acúmulo de negativismo. A soma
desses aspectos decadentes, como os galhos que vergam sob o peso da neve, já
anuncia uma ideia de desistência, de não vida, de negação existencial.
O segundo
verso, além de complementar a premissa do primeiro, expõe uma noção dicotômica
que pode ser percebida através do sentido de esfacelamento e do desmembramento
já anotado por Kurrik e Mucci. Nesse viés, o poeta anota que “A cinza arrefeceu
sobre o brasido” e essa esplêndida colocação deve ser observada com devido
mérito.
Em
primeiro lugar, é válido observar que as cinzas sobre o brasido são uma imagem
típica das tantas que aparecem em Clepsidra. Observando o que disse
Oscar Lopes sobre a poesia de Pessanha ser um inventário de um desastre,
percebemos que no braseiro não há brasa, mas apenas restos materiais deixados
pelo fogo. Levando em conta o clamor do poeta pela volta das “longas noites de
paz” e tendo em mente o arrefecer das cinzas sobre o brasido, podemos afirmar
que não houve, em um momento anterior à neve e às tormentas, dias de alegria,
tampouco dias de glória.
Nessa
tendência, o poeta não atenta para a possível brasa no braseiro em tempo
remoto, nem para os verdes olmos floridos em época de primavera, mas sim para
um resultado melancólico. A gradação que ocorre no poema parte de uma premissa
intensamente negativa, posto que a narração não se inicia nas brasas nem nas
verdes folhas, mas nas cinzas e no peso da neve que faz vergar os galhos.
Indo além, o arrefecer das cinzas sobre o brasido invoca, analogicamente,
a própria vida em fiapos. Nessa perspectiva, as cinzas encontram eco no “Poema
final” em que os sintomas de vida e existência estão ligados miseravelmente a
jatos de luzes e abortos nas prateleiras dos museus.
Isso
posto, é válido observar que o arrefecer não apenas descreve a imagem
decadente, como também retrata, metaforicamente, um sentimento de melancolia
que assoberba o poeta. O arrefecer está diretamente ligado ao declínio da vida,
isso já timbrado pela imagem dos olmos pendidos como se desgastados ou
destituídos de vigor físico. Assim, a imagem é reforçada e o que outrora era
tomado apenas por fraqueza física passa a ser, paralelamente à primeira ideia,
languidez e inércia, voltando à fraqueza psíquica introduzida em “Inscrição”.
Dessa passagem
do físico (sensação) ao psicológico (pensamento) se
manifesta uma atmosfera negativa que rompe com qualquer possibilidade ou
pensamento de vitalidade. O negativismo se revela puramente pela
ausência de imagens ou pensamentos positivos que poderiam, ao mínimo, anular o
desejo de aniquilação ou negação da vida presente no poema.
Para
respaldar nosso pensamento, Gumbrecht observa:
Para
passar da sensação ao pensamento, a alma atravessa uma posição de equilíbrio na
qual a sensibilidade e a razão atuam simultaneamente. Sensibilidade e razão
combinam-se para suspender a energia que determina ambas; isto é, o antagonismo
delas gera sua negação (GUMBRECHT, 2014, p. 18).
Desse
antagonismo entre sensibilidade e razão surgem imagens que reiteram o tom de
negação presente no poema. O diálogo da consciência com o coração endossa nosso
raciocínio e ainda corrobora, sem ressalvas, a desarticulação do espaço-tempo,
resultando na estagnação temporal e negando, por consequência desta estagnação,
a vida e a morte.
Sobre
esse conceito do espaço-tempo, Oscar Lopes estatui:
Camilo
Pessanha traz à poesia portuguesa toda a dinâmica até então insuspeitada do
momento subjetivo no domínio da percepção, desarticulando as dimensões do
espaço-tempo como dados mecanicamente exteriores, desarticulando a perspectiva
puramente geométrica [...], mobilizando os modos afetivos de reação à realidade
sensorial (LOPES, 1989, p. 136).
O que
Oscar Lopes afirma ser “momento subjetivo no domínio da percepção” se traduz na
sutileza com que as coisas passam do estado físico (os olmos pendendo sob o
peso da neve) ao estado psíquico (o arrefecer metafórico das cinzas sobre o
brasido). A conclusão da ideia se dá por intermédio de outra imagem que se
evoca à leitura do terceiro verso: “Noites da serra, o casebre transido...”.
Não obstante a anulação da alma oriunda da combinação entre razão e
sensibilidade, a imagem da habitação em meio às noites da serra transmite um
sentimento lúgubre que evoca as premissas pessimistas do meio caminho entre vida
e morte.
É
oportuno observar que o casebre transido resulta de uma figura de linguagem na
qual a mescla de vida e morte é manifesta por meio de um equilíbrio entre o
animado e o inanimado. Por essa perspectiva, a prosopopeia inerente no verso
põe em relevância a percepção de restrição mental ou física, forjada pelas
paredes do casebre, adjunta ao sentimento de terror e medo procedentes do
vocábulo “transido”.
Ainda por
essa linha de raciocínio, a escolha do substantivo “casebre” em
detrimento do primitivo (casa) ou seus derivados (casarão, casona) complementa o propósito lúgubre da imagem, tendo em vista
que o próprio vocábulo invoca, por meio de convenção da língua, aspectos de
abandono e ruínas.
Nesse cenário, parece ser certo afirmar que a imagem é
justamente a afirmação de uma atmosfera de proximidade à morte.
As escolhas feitas pelo poeta no tocante aos vocábulos e construção de imagens
e sentido estão muito mais voltadas para um sentido minguante de fim da
existência do que para uma ideia unilateral de fim do ciclo vital.
Essa é a
metáfora da segunda imagem: a reclusão do ser em um lugar tomado por ruínas,
onde a probabilidade de afirmação da vida é mínima. Assim, os olmos curvados
pelo peso da neve, as cinzas frias sobre o braseiro e o casebre transido fecham
um quadro de total desistência, apontando para a morte e para a negação da
vida.
Isso
posto, é pertinente ressaltar que embora a premissa de morte envolva a
ambiência do poema, não há consumação desse desejo de morte. Isso, ao nosso
ver, é muito significativo, uma vez que nossa finalidade é notabilizar a
negação da existência, ainda que a vontade de existir submeta e compile o poeta
à vida.
Nesse
ponto de vista, o eu lírico reflete sobre o existir numa demonstração de
aflituosa inquietação: “Cismai, meus olhos, como uns velhinhos”. Além dessa
tomada de consciência que resulta no diálogo entre a consciência do poeta e seu
corpo, a ideia de cismar está atrelada à percepção do poeta no tocante à experiência
que desaconselha a vida. Paulo Franchetti corrobora nosso pensamento ao
perceber:
De fato,
parece procedente ver no poema um conflito entre duas inclinações pertencentes
ao mesmo sujeito: por um lado a voz do conhecimento, da experiência, por outro,
as inclinações da sensibilidade, representadas pelo coração, e as do desejo,
representadas pelos olhos (FRANCHETTI, 2009, p. 27).
O tom de
advertência que pode ser sentido em “cismai, meus olhos, como uns velhinhos
[...]” está estritamente amarrado a uma experiência de desconfiança do que se
refere às inclinações do desejo observadas por Franchetti. Ainda nessa linha de
pensamento, o apelo aos olhos se conecta à perspectiva da suplantação da visão
meninil sobre o mundo pela visão adulta, destacando, uma vez mais, a
experiência e a sagacidade do olhar idoso em detrimento da sensibilidade já
exposta pelo coração a correr desatinado.
Se os
dois quartetos do poema exibem paisagens ligadas à atmosfera de negação da
existência, os dois tercetos que fecham o soneto advêm com vocábulos que
apontam para um futuro derradeiro de aniquilação. Ainda que o primeiro terceto
bosqueje uma faísca de desejo vital, o terceto final rompe com qualquer
pressuposto vigorante e retoma o tom de morte e desistência.
Dessa forma,
o conflito entre sensibilidade e razão se dá na medida em que o coração,
marcado no início do poema pelo desvario proposto pelo vocábulo desatinado,
evoca as extintas primaveras. A partir dessa evocação, projetam-se cenários
futuros em que o florido das macieiras, extinto pela neve, torna como se
respondesse a um desejo unicamente emocional. A ideia ainda se repete no
próximo verso em que, por consequência do florido hipotético da primavera, o eu
lírico observa, ainda sob o crivo da sensibilidade, a contingência de poder
enfeitar os chapéus com flores.
Num
movimento de oposição ao penúltimo terceto, o poema se fecha com o
reaparecimento da voz reflexiva da experiência, agora, porém, fazendo oposição
aos olhos que cismam. Assim sendo, a voz aconselhadora se opõe à razão e
recupera, de forma análoga, a mesma premissa dos primeiros versos do poema,
fazendo soar o derradeiro receio do fim e apontando para o iminente sentido
derrotista da vida, repelindo a própria ideia de impulso ou vitalidade dos
olhos cismantes.
Por essa
linha de raciocínio, os olhos que outrora cismavam de forma meditativa e
inquieta são agora acometidos pela total desistência da razão enquanto
mediadora da sensibilidade, e sua meninice, e o conhecimento, e sua madurês.
Essa desistência de cismar resulta na aceitação da morte física ou da própria
consciência, restando ao poeta o ato derradeiro de juntar-se àqueles, cujas
vozes já cederam à morte ou ao abandono da razão.
Nessa
tendência, é mister observar que se “[...] dinamiza, a partir da experiência
deceptiva, as várias imagens da quietação, da ausência do desejo e, portanto,
da morte, que constituem o tecido simbólico de clepsidra” (FRANCHETTI, p. 28).
Levando em conta os apontamentos de Kurrik na obra Literature na negation (1979),
observamos que a negação vem por conta da polaridade entre presença e ausência
de algo. Nessa lógica,
Talvez
não seja exato compreender as inclinações da sensibilidade e do desejo como
irracionais, opondo-as, assim, à voz da
experiência, que equivaleria à razão. Mas [...] uma experiência que redunda
numa sabedoria apenas negativa, que aponta sempre [...] para a inutilidade dos
esforços e para a decepção fatal que está implicada em cada conquista
(FRANCHETTI, 2009, p. 27).
A título
de conclusão deste capítulo, é importante observar que as paisagens
contempladas pelo eu lírico refletem, num movimento pendular, o cenário
interior cunhado por Pessoa. Assim, “[...] tendo nós, ao mesmo tempo, consciência
do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos
ao mesmo tempo consciência de duas paisagens” (PESSOA, 1969, p. 101).
Efetivamente, as paisagens de Clepsidra não apenas ilustram a
perspectiva decadente do Fin de siècle, mas tomam amplas proporções em
que o mero conceito ilustrativo é suplantado pela concepção
significativa/subjetiva de panoramas que refletem e retratam a dor humana de
existir.
Ezequias da Silva Santos. Aspectos
de uma estética da negação na poesia de Camilo Pessanha, Pato Branco, Universidade
Tecnológica Federal do Paraná, 2019
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/09/paisagens.de.inverno1.aspx]
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