Se um dia destes parar não sei se não morro logo,
disse Emília David, padeira,
não sei se fazer um poema não é fazer um pão
um pão que se tire do forno e se coma quente ainda por entre as linhas,
um dia destes vejo que não vou parar nunca,
as mãos súbito cheias:
o mundo é só fogo e pão cozido,
e o fogo é o que dá ao mundo os fundamentos da forma,
pão comprido nas terras de França,
pão curto agora nestes reinos salgados,
se parar não sei se não caio logo ali redonda no chão frio
como se caísse fundo em mim mesma,
a mão dentro do pão para comê-lo
‑ disse ela.
Herberto Helder, A MORTE SEM MESTRE, 2014.
*
Herberto Helder avisa, em nota
prévia, que tudo o que possa parecer acidental neste livro é, na verdade,
intencional. E depois, logo no começo, uma poesia diz que todos os erros
ortográficos ou de sentido são propositados, "um grão de sal aberto na
boca do bom leitor impuro", versão herbertiana do "leitor hipócrita,
meu semelhante, meu irmão".
Que coisas serão essas que podem
parecer acidentais mas não o são? A mudança de chancela, da clássica Assírio
para a Porto Editora? A capa personalizada, com a caligrafia do autor? O CD que
acompanha o livro e onde Herberto lê alguns poemas com voz cansada, ansiosa e
tranquila? E o que são os "erros ortográficos", além dos habituais
acentos de uso idiossincrático, ou talvez de uma resistência ao acordês?
Finalmente, o que significa um "erro de sentido", para mais num poeta
onde nunca é exactamente o "sentido" (discursivo) que nos fascina?
Tantas advertências servem talvez para nos recordar que, mude o que mudar,
estes são ainda "poemas quando se vai com a mão/ e bufam e arranham
logo", poemas indóceis, não domesticáveis, soberanos.
Tudo parece aqui intencional,
incluindo os supostos "erros", incluindo esta visibilidade invisível
da última fase, que começou há uns bons anos com as fotografias de um Herberto
mais velho do que aquele que conhecíamos de outras imagens; com as sucessivas
antologias e poemas escolhidos, completos ou rasurados; com as edições pequenas
que esgotam logo e se tornam um "fenómeno"; e nestes últimos dois
livros, assumidamente pré-póstumos, com uma referencialidade inédita. Há
telemóveis nestes poemas e discursos vários políticos: "uma reforma de
pilha-galinhas", "não me queixo de nada no mundo senão do preço das
bilhas de gás", e esse divertido "aparecem em toda a parte uns gajos
que, faz favor", "desde o Cristo Cunhal até ao Jotinha". Esses
são os poemas mais curiosos, mas não os mais fortes. Curioso também, ou mais
que isso, é o facto de Herberto dizer que nunca tentou sequer um
"resquício metafísico" e depois escrever um poema em que Jesus é
personagem. Curiosa, ou mais, é a confissão de que os seus poemas são
"seus" de um modo que os filhos nunca podem ser, uma vez que os
poemas não são entidades diferentes mas uma única pessoa (o que é, aliás, um
resquício metafísico).
Porém, no essencial, "A Morte
sem Mestre" é um prolongamento temático de "Servidões".
O poeta canta "o alvoroço mental
deste fim de idade", e várias vezes diz que o "velho" é um
"estupor", um "cabrão", lembra-nos os seus 83 anos, mas
também declara: "é que eu estou vivo e estremeço ainda". Mais do que
um manual de morte, de Tanatos, esta colectânea é uma celebração de Eros:
grande parte dos poemas são odes priápicas, de linguagem entusiasta e
desabrida, exclamativa e vernácula, reiterativa e quase bíblica, quase
"poema sumério", ou quase Bataille, odes vorazes a mulheres, meninas
e putas, "femeazinhas" de todo o género e feitio, longilíneas,
espessas, sedosas, árduas, amaras, bravas, humílimas, subtis, nuas, vestidas,
violentas, descalças, catorzinhas, inspiradas, revoltas. Herberto evoca uma
"primeira noite no começo do mundo" e outros dias e noites, antigos e
modernos, e nesses poemas a "coisa amada" é ainda uma labareda, um nó
de sangue na garganta de um homem velho, uma "verdade última", uma
última ciência.
Crítica literária de Pedro Mexia, Expresso, 2014-06-13
O trabalho da morte
Herberto Helder aproximou-se, como nunca antes, do inumano e do Mal, traduzindo o sensível em demoníaco e encarando a morte sem elevações poético-metafísicas.
Neste novo livro de Herberto Helder, a poesia está do lado da exigência de tudo dizer. De dizer, antes de mais, o que faz estremecer os homens: a morte. Chamemos-lhe uma exigência inumana, também sobre-humana, para afastarmos do horizonte qualquer hipótese de, em qualquer momento do livro, haver uma porta de entrada para o humanismo — muito poético e muito tagarela — da morte amestrada. A morte sem mestre é outra coisa, é uma “porcaria obscena”, como dizia Bataille, autor que, juntamente com Sade, muito facilmente podemos fazer comparecer na leitura destes poemas. “Sade e Bataille, meus próximos”, seria uma epígrafe plausível para este livro, onde Herberto Helder parece ter radicalizado e gritado em voz alta uma prescrição que já tinha sido sussurada em Servidões, e que consiste em baixar a metafísica. Baixar a metafísica significa, neste caso, seguir as vias de um baixo materialismo e permanecer nesse nível de baixeza. Se pensarmos na elevadíssima entoação órfica a que acedeu desde o início a poesia de Herberto Helder, à altura de conceitos cheios de sublimidade como o de “poesia absoluta”, se pensarmos que ela permitia uma equiparação entre a metáfora e a metafísica, então é obrigatório reconhecer que estamos agora num mundo completamente diferente — um mundo que, inaugurando-se com uma invocação obscena, “Oh Anjo Príapo, oh Nossa Senhora Côna!”, tem no seu centro a dimensão burlesca da carne e do corpo. Até ao limite de um poema que fala da soberania de um “rei terrífico com voz política”: “tragam-me as putas todas, religiosas, profanas ou outras,/ o meu pénis tem o tamanho de um ceptro/ (e ergue o ceptro que tem cerca de metro e meio,/ e na verdade o sexo dele é até maior um pouco),/ traspasso-as da côna ao coração/ (e que mulher não tremeria de pânico e oculto gozo?),/ e assim passa ele o tempo e o medo e o mundo”. E, a seguir, este curto poema: “e eu que me esqueci de cultivar: família, inocência, delicadeza,/ vou morrer como um cão deitado à fossa!”.
A morte sem mestre, que se manifesta cruamente sem mediações nem idealizações, suscita o tema obsceno e jocoso, como nalguma poesia trovadoresca. E faz emergir a questão de uma “eloquência vulgar”, própria da comédia — e não da tragédia — da vida e da morte (De Vulgari Eloquentia, recordemos, é um título de Dante, quase um tratado sobre a commedia). E, retomando a alusão à poesia trovadoresca, talvez seja pertinente recordar que o “poema contínuo” herbertiano pode muito bem referir-se à oda continua da poesia occitana, que designava a estrutura métrica e musical de um canto, onde era impossível encontrar um ponto onde quebrar ou dividir a stanza. A Morte sem Mestre, apesar das divisões, pode ser lido como um poema único. Digamos assim: como o corpo das “fêmeas ininterruptas” (também esta assimilação do poema a um corpo se encontra na poesia trovadoresca). Há uma regra biopoética aqui formulada que está não do lado da vida, mas do lado do “trabalho artesanal da morte”: “filhos não te são nada, carne da tua carne são os poemas/ que escreveste contra tudo, pais e filhos,/ lugar e tempo,/ filha é aquela que despes dos pés à cabeça,/ perdendo os dedos nos nós que tem pelo cabelo abaixo,/ e só pelo desejo que te traz de viver ou morrer dela,/ desejo de ser o mesmo punho de cinza/ deitado à espuma nos extremos da terra,/ filha é a palavra carregada que arrancas aos dicionários quando dormem (…)”.
Os poemas são escritos “contra” todas as regras da bienséance e as disposições humanistas. Chegado a este livro, Herberto Helder mostra, com toda a clareza que o abaixamento da metafísica permite, o seu lado de poeta-energúmeno (não, isto não é um insulto), solitário, singular e sem família poética, tendo como únicos ascendentes os poemas escritos numa língua morta. O genial poeta-energúmeno concebe a poesia como uma forma aguda do Mal. E o Mal tem para ele um valor soberano. O Mal é o que dia-boliza o sím-bolo. Devemos, pois, levar muito a sério estes dois versos: “o poema agora por exemplo não tem simbolismo nenhum,/ morro dentro dele sem força para respirar”. E, perante este livro, muito desorientados se deverão sentir os leitores que não passam sem os bons ofícios simbólicos da poesia. O Mal é a força informe que trabalha a língua e lhe dá a sua violência; o Mal é o inumano que habita, como um fundo inapagável, o humano, é a sua miséria “natural”, a sua perversão polimorfa de criança mal-educada que resulta em poeta-energúmeno entregue à tarefa prostitucional da poesia. Este poeta do Mal, demoníaco, entrega-se ao trabalho da morte, com uma ira errante dirigida à sua época, e escreve o seu próprio epitáfio, em tom jocoso, no final de uma elegia: “e aqui jaz, acomodado, oitenta e três, parece que pelo/ menos sem grandes achaques físicos, o todo vosso/ burro com palha pouca e fora de uso, quer dizer:/ uma reforma de pilha-galinhas e poeticamente/ enterrado vivo (….)”.
Nota: Este livro é incomensurável, no modo como se expõe. No mais alto grau, não lhe servem nenhumas estrelas, mesmo que o critério seja o da comparação com livros anteriores do autor.
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-trabalho-da-morte-1659005
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