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terça-feira, 21 de julho de 2015

AS ILHAS AFORTUNADAS


As Ilhas Afortunadas fazem parte da tradição clássica. Já em autores gregos aparecem referidas como paraísos, local do repouso dos deuses e dos heróis míticos. Ptolomeu, soberano do antigo Egito, fala destas ilhas, tal como Homero que refere as "ilhas que ficavam além dos Pilares de Hércules". O historiador romano Plínio-o-Velho e Plutarco, no século I, identificaram as Ilhas Afortunadas com as Canárias, tal como faz Camões no canto V, estância 8. Gregos, romanos e fenícios, nas suas aventuras pelo Mar Mediterrâneo em direção à costa atlântica africana referem o encantamento que lhes provocavam estas ilhas vulcânicas, de clima temperado e de vegetação luxuriosa e balsâmica.
Em Mensagem, Fernando Pessoa fala das Ilhas Afortunadas como mito e símbolo, surgindo como local fora do tempo e do espaço onde os mitos do Quinto Império, do Encoberto, do Sebastianismo esperam para se concretizar. As Ilhas, cuja presença só se capta no sono através de sinais auditivos e pelo som das ondas, surgem como lugar do não-tempo e do não-espaço, são "terras sem ter lugar", onde se encontra o Desejado que virá fundar o Quinto Império, "onde o Rei mora esperando".
“Ilhas Afortunadas”, in: http://www.infopedia.pt/$ilhas-afortunadas?uri=lingua-portuguesa/ilha



Lagoa das Sete Cidades, ilha de São Miguel, Açores.



 Quarto

        AS ILHAS AFORTUNADAS

Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutamos, cala,
Por ter havido escutar.

E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.

São ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando,
Cala a voz, e há só o mar.

26-3-1934
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).
  - 85




Terceiro

        CALMA

Que costa é que as ondas contam
E se não pode encontrar
Por mais naus que haja no mar?
O que é que as ondas encontram
E nunca se vê surgindo?
Este som de o mar praiar
Onde é que está existindo?

Ilha próxima e remota,
Que nos ouvidos persiste,
Para a vista não existe.
Que nau, que armada, que frota
Pode encontrar o caminho
À praia onde o mar insiste,
Se à vista o mar é sozinho?

Haverá rasgões no espaço
Que dêem para outro lado,
E que, um deles encontrado,
Aqui, onde há só sargaço,
Surja uma ilha velada,
O país afortunado
Que guarda o Rei desterrado
Em sua vida encantada?

15-2-1934
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).
  - 101.



          DO(S) OUTRO(S) MUNDO(S) DA VISÃO AO NOVO MUNDO DA RAZÃO:
          VIAGEM INICIÁTICA, DES(EN)COBRIMENTO(S) E U-TOPIA 

É o sentido iniciático de que a Ilha, ou o que nela se simboliza, é o mais fundo e autêntico Sujeito dos sujeitos que a buscam que, coerentemente, se traduz na tradição continuadora da navegação de São Brandão. Com efeito, da Ilha Perdida, por vezes identificada com a de São Brandão, da Ilha ou Ilhas Encantadas, da camoniana Ilha dos Amores e, apropriada já à mitologia do messianismo sebástico, da Ilha Encoberta, se diz que, tal essa falsa ilha flutuante que na Navigatio é a baleia Iascónio, têm o poder de aparecer e desaparecer, encobrindo-se ou desencobrindo-se consoante a relação do seu movimento próprio à atitude espiritual dos que as demandam. Assim se diz da Ilha Perdida, no manuscrito do Escorial Semeiança del mundo: "e a esta tierra dizen Pardita porque quando la buscan non la fallan, e non la pueden fallar sy es por aventura; e a aquesta tierra vino San Brandán"26. Ilhas a que só acedem "espíritos" mais "viatores ou peregrini que (...) descobridores"27, é delas e do que nelas se encobre e desencobre que Fernando Pessoa indica a fenomenologia negativa em dois poemas decisivos de Mensagem: As Ilhas Afortunadas e Calma.
No primeiro há uma "voz" que "vem no som das ondas" e que não é a do "mar", antes a de "alguém que nos fala, / Mas que, se escutamos, cala, / Por ter havido escutar". É apenas "meio dormindo", como "uma criança", suspensa essa intencionalidade desiderativa, apropriadora e objectivante da consciência em estado comum de vigília, pressupondo poder reduzir um Logos meta-ôntico a um objecto da subjectividade consciente de o ser, que "sem saber de ouvir ouvimos" o que nos abre menos para a "esperança" do eu humano do que para a espera transcendente que já não é nossa mas a do próprio "Rei"-Identidade outra por nós, na a-tópica residência das suas "terras sem ter lugar"28.

No segundo poema é uma "costa" que "as ondas contam / E se não pode encontrar", ou que "as ondas encontram" mas nunca se torna visível, trans-ôntica praia de "Ilha próxima e remota" que agora se escuta sem que a visão a capte. Fica a sugestão de "rasgões no espaço", instâncias de ruptura e descontinuidade "que dêem para outro lado", para a trans-dimensão de alteridade em que se pode desencobrir a "ilha velada", o "país afortunado" do "Rei desterrado / Em sua vida encantada'29. O fundo do messianismo sebástico, ao contrário do que vulgarmente se pensa, não está na esperança de que o Encoberto regresse aonde não pertence, ao exílio que, nesta perspectiva, é a história dos homens, mas no seu esperar, do não--onde em que reside oculto para a e pela nossa indisponibilidade, que sejamos esse pessoano e metanóico "nevoeiro" que, no crepúsculo das formas da auto-consciência e do tempo histórico-objectivo, se faça "a hora"30 do desencobrir-se-nos. Como escreve José Marinho, após distinguir entre a passividade do que se diz como "coberto" e a actividade sugerida no que se indica como "encoberto"31: "(...) o mesmo que procuramos verdadeiramente descobrir, esse mesmo é o pelo que há descobrir e encobrir, e ele é o que descobre a si mesmo descobrindo (...). Procuramo-lo como se o fôssemos e não o somos ou ele não é ou nada o é. Pretendemos descobrir o ao que a nós descobre e tudo em nós e para nós. Forcejamos por alcançá-lo na continuidade do que somos, ele surge-nos, porém, na descontinuidade e na ruptura incompreensível". E "longos anos" "dos muitos erros e do longo errar necessário" se anunciam até à compreensão disso...32.

Paulo A. E. Borges, Philosophica 15, Lisboa, 2000.


Mapa-mundi de 1493 de Hartmann Schedel.
 A Ilha Afortunada é assinalada a oeste da costa africana.


          QUESTIONÁRIO SOBRE O POEMA “AS ILHAS AFORTUNADAS” 
          (FERNANDO PESSOA)

1. Refira a condição necessária à manifestação da voz e transcreva elementos do texto que justifiquem a sua resposta.
Cenário de resposta
Para que a voz se manifeste, é necessário que quem ouve se encontre semiacordado, ou num estado de semiconsciência, sem procurar escutar essa voz – «Mas que, se escutamos, cala, / Por ter havido escutar» (vv. 4-5); «E só se, meio dormindo, / Sem saber de ouvir ouvimos,» (vv. 6-7); «Mas, se vamos despertando, / Cala a voz, e há só o mar.» (vv. 14-15).
Nota – No que diz respeito à transcrição de elementos do texto, a resposta pode incluir apenas uma ou várias das citações apresentadas no cenário de resposta.

2. Explique o sentido dos dois últimos versos do poema.
Cenário de resposta
De acordo com o sentido dos dois últimos versos do poema, quando se desperta do estado de semiconsciência:
– a voz do mar, associada a uma ideia de esperança, desaparece;
– o mar passa a ser apenas uma realidade objetiva

3. Explique de que modo o conteúdo da última estrofe convoca o mito sebastianista.
Cenário de resposta
Na última estrofe, a esperança no regresso do Rei D. Sebastião e, consequentemente, na possibilidade de resgatar a glória de Portugal está associada a aspetos como:
– a existência de um espaço mítico onde o Rei se encontra – «São ilhas afortunadas, / São terras sem ter lugar,» (vv. 11-12);
– o facto de o Rei aguardar o momento de agir – «Onde o Rei mora esperando.» (v. 13).
Nota – Não é obrigatório o recurso a citações, ainda que estas figurem, a título ilustrativo, no cenário de resposta.

Exame Nacional de Português, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). IAVE, 2015, 2ª fase. Prova 639 e critérios de classificação.



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