Gravação da voz realizada nos estúdios da Universidade da Califórnia em Santa Barbara. Este disco "antologia" contém 20 poemas:
1. Felicidade 2. Humanidade 3. Ode para o Futuro 4. Glosa à chegada do Inverno 5. Ó doce Perspicácia 6. As Evidências - Soneto XI 7. Epígrafe para a Arte de Furtar 8. A Paz - I,II,III,IV,V 9. Quem a tem 10. Uma pequenina luz 11. Como queiras Amor... 12. Camões dirige-se... 13. Anósia 14. Requiem de Mozart - I,II,III,IV 15. Missa Solene de Beethoven 16. Sonetos da visão perpétua - I,VII 17. Os ossos do Imperador 18. Madrugada 19. Tu és terra... 20. Conheço o Sal...
No Dia Mundial da Poesia ouvimos dois poetas recém-publicados de duas
gerações: Filipa Leal e Luís Filipe Castro Mendes
Está um pouco esquecida a frase batida de que Portugal é um país de poetas, mesmo que a realidade mostre que continua a ser verdade. Com um benefício, desta vez os poetas não andam a queixar-se de ninguém os ler ou de não serem editados.
Basta um exemplo, o de Matilde Campilho, que em poucos meses teve quatro edições do seu livro. Explicação para o facto? Pergunta-se ao responsável pela coleção onde foi publicado o Jóquei, o também poeta Pedro Mexia, se há novos leitores ou se são os habituais: "Os leitores de um livro de poesia são, em geral, leitores habituais de poesia, ou seja, poucos. Mas o Jóquei chegou a muitíssimo mais gente."
Não é preciso
um grande esforço para se ver que as editoras estão atentas ao fenómeno dos
novos poetas, pois, como diz Pedro Mexia, mesmo que a coleção que organiza
publique apenas quatro títulos por ano, "o catálogo tem poetas portugueses
vivos, quase todos jovens". Um investimento que já deu resultados, afirma:
"Rosa Oliveira publicou na coleção o seu primeiro livro de poemas, ao qual
foi atribuído o Prémio Pen Clube Primeira Obra."
Também a
Assírio & Alvim, a editora com o melhor currículo na edição de poesia, está
atenta à obra dos principais poetas portugueses, estando a publicar obras
completas de Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Ruy Belo e Rui
Cinatti. Mas a preocupação da editora também é para com os poetas vivos, sendo
vários os títulos recentes de Gastão Cruz, Ana Luísa Amaral ou Armando da Silva
Carvalho (ler coluna à direita), bem como uma especial atenção às novas
gerações, como é o caso de Daniel Jonas, ou às mais recentes, como Filipa Leal.
E o
que espera o poeta do leitor?
Sete poetas
explicam a sua relação com os leitores. Esperam alguma ligação ou desprezam
essa possibilidade? Escrevem para quem compra livros ou o lado de lá não tem
importância? As respostas diferem, tal como são diferentes os poemas de cada um.
Ana Luísa Amaral | RUI OLIVEIRA / GLOBAL IMAGENS
Ana
Luísa Amaral
Do poeta o
leitor nada espera, a não ser partilha de paixão. O que não é pouco. Mas essa
expectativa só se dá depois de o poema estar passado a livro. Porque, durante a
escrita do poema, o poeta nada espera. "Todo o poema é sobre aquele que
sobre ele escreve", disse uma vez. Ao escrever, o poeta escreve para si,
porque precisa, e sempre a partir do próprio corpo e do mundo, tal como o vê. O
leitor vem sempre depois e ao chegar ao poema recebe-o como se fosse seu (como
o poeta recebe os poemas dos outros que antes dele escreveram). A unir poeta e
leitor está a paixão - que, por ser paixão, tem sempre uma dimensão de
espantamento e de assombro. Ou de desassossego. Depois do poema partilhado,
desassossegar o leitor - que mais pode, pois, o poeta esperar?
António
Carlos Cortez
O poeta espera
que o leitor entenda que a poesia não é a mera emoção de um eu textual que pode
corresponder ao autor empírico. O poeta, consciente de que o trabalho da
palavra é a projeção de uma emoção vivida e depois transfigurada em linguagem,
persegue um leitor que partilhe esta mesma conceção de trabalho. O poeta não
procura o leitor romântico, aquele que pensa que a poesia é a rima bem feitinha
ou uma espécie de jogo floral. Não procura um leitor cheio de superstições
literárias. Procuro um leitor sensível e inteligente, o que está atento ao
trabalho frásico e às imagens; procuro um leitor atento como uma antena, para
lembrar Sophia.
Cláudia
R. Sampaio
Não espero nada
quando escrevo, não penso no exterior. Escrever é ser solidão. Uma solidão que
não assusta, tão necessária como a visão deste enigma que é esta superfície que
pisamos, sem nome, sem porquê. Escrever um poema pode ser tão perigoso como
estar à beira de um precipício. O leitor deveria ter a noção desse perigo,
dessa urgência de vertigem que faz mover a caneta. Por isso, que leia não com
os olhos mas com a vida toda, com a fome, com o invisível. Só assim poderá ter
o estremecimento necessário ao entendimento do que está para além da palavra, e
ser também ele poema.
João
Luís Barreto Guimarães
Pouca coisa.
Que o leitor revele um interesse único pelo poema que o poeta produziu. Que
aguarde ansiosamente cada novo livro como se de uma singular oferenda se
tratasse. Que lhe dedique em exclusivo tempo de qualidade. Que use de um naipe
de faculdades sensitivas e cognitivas para entrar no texto e se espante com a
inteligência e o brilhantismo do mesmo. Que, após entrar dentro do texto,
permita que o texto entre dentro de si. O que o poeta espera do leitor é que o
leitor o admire e o reclame e o ame, mais ou menos para sempre. É isto que o
poeta espera do leitor. Coisa pouca, realmente.
José
Tolentino Mendonça
O poeta não
espera nada, e só assim está certo. Aquela experiência de solidão e graça,
aquele misto de façanha e medo que se prova na construção de um poema pede esse
absoluto desprendimento. O poeta não espera nada, portanto. Mas o poema espera
tudo. Poder-se-ia dizer que espera ser lido, escutado mesmo que de passagem,
criticado, analisado, reencontrado, refeito, tatuado numa labareda ou até
esquecido. Tudo isso. Creio, porém, que o poema talvez espere simplesmente um
amigo que de longe venha, como diria Ruy Belo.
Maria Teresa Horta | GONÇALO VILLAVERDE/GLOBAL IMAGENS
MariaTeresa
Horta
Do meu leitor,
espero que seja inteligente, exigente e criativo, e queira da minha poesia o
mesmo que eu exijo: sempre mais e melhor, voando além de mim mesma.
Nuno
Júdice
Espero do
leitor que abra um livro de poesia como se abre uma caixa de fósforos: fazendo
a cada poema o que se faz quando se risca um fósforo, para que ele se acenda e
o seu fogo ilumine ou incendeie quem o lê. E é isso que eu, colocando-me na
posição de leitor, espero de um poema: a capacidade de revelar nas palavras e
nas imagens a música, a interrogação, a inquietação, mas também a perceção
daquilo a que chamei "o mistério da beleza". É isso que procuro
quando escrevo, tentando captar na convergência dos ventos os sinais de que a
poesia continua a abrir horizontes surpreendentes num permanente convite à
viagem para dentro e para fora de nós.
José Carreiro, Ponta Delgada, 2005-11-30. Chuva de Época. Edição de autor.
“Invisível” para as
massas durante quase todo o ano, o género poético continua a exibir um
dinamismo insuspeito, numa espécie de milagre que desafia a lógica e a razão. O
circuito da poesia, que inclui recitais, tertúlias ou festivais, atravessa a
totalidade do território nacional e é frequentado por entusiastas de diferentes
gerações, na maior parte candidatos a poetas.
Bem diferente é o
panorama editorial. Não que o número de edições seja escasso, mas porque,
perante a retração das editoras, está cada vez mais dependente do investimento
dos próprios autores na compra de exemplares que suportem os custos de
impressão. Segundo números recolhidos pelo Jornal de
Notícias junto da Associação
Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), foram
publicados em território nacional, só na última década, mais de 15 mil livros
de poesia (15.660), o que equivale a 4.5% da produção editorial. Nesse período,
180 editoras publicaram pelo menos um livro de poesia. As que desenvolvem
atividade regular neste género, todavia, são uma minoria.
Ainda segundo a APEL, nos
últimos anos “o aumento tem sido gradual”, sem, no entanto, especificar esse
incremento. Certo é que “a maioria das obras são edições de autor” assinala a
mesma fonte. A percentagem seria ainda mais elevada se incluíssemos as editoras
de autor com chancela, ou seja, livros publicados por pretensas editoras mas
que, na prática, obrigam o escritor a assumir (mais do que) a totalidade dos
custos de edição, cobrando preços que variam entre os 1500 e os três mil euros.
Mais grave ainda: em muitos casos, os livros não chegam sequer a ser dar
entrada no mercado editorial.
Poetas
“mais pobres”
A situação não causa
estranheza ao poeta A. Pedro Ribeiro,
com mais de uma dezena de obras publicadas, que diz mesmo que a prática é cada
vez mais generalizada. “Quase todas as editoras pedem dinheiro para publicar”,
acusa.
Vasco David, editor da Assírio & Alvim,
reconhece que “existem mais opções” de publicação hoje, mas adverte, por outro
lado, que “muitas delas não chegam a dar qualquer visibilidade aos autores”.
“Acabam é por deixá-los mais pobres”, constata.
As editoras de poesia
que, não pertencendo a nenhum grande grupo, se recusam a entrar no jogo das
edições custeadas enfrentam dificuldades severas. É o caso da mítica Edições Mortas,
que hoje publica apenas a revista Piolho.
Imbuído da “mesma necessidade de repetir, conspirar e corromper como se não
houvesse amanhã”, o editor e poeta A. Dasilva O. observa
que “Portugal não merece os editores, em extinção, que persegue e condena”;
lamentando “a promoção e glorificação dos editores de iliteracia”.
Apesar dos avanços
tecnológicos da última década terem facilitado a edição, o poeta João Luís Barreto
Guimarães acredita que o papel do editor de poesia “ainda é
fundamental”. “As plataformas online
são ótimas facilitadoras da divulgação, mas não devem ser aceleradoras da
publicação, A edição de poesia carece de tempo e de juízo crítico”, defende o
autor do recente Mediterrâneo.
Idêntica opinião
acerca do impacto das tecnologias na edição tem o responsável da Assírio &
Alvim, convicto de que “a Internet não funciona como um veículo de
edição, mas sim como uma plataforma de publicação e muitas vezes de
auto-publicação”.
Menos consensual
parece ser a questão do número de leitores de poesia. Vasco David acredita
que “se tem mantido estável, o que só por si é notável, considerando que
existem cada vez menos livrarias”. Além disso, prossegue, “as livrarias apostam
cada vez menos neste género, optando por uma oferta massificada e cada vez mais
comercial”.
Membro ativo de
tertúlias e sessões de poesia, A. Pedro Ribeiro dirige
palavras críticas “aos versejadores da corte”, mais interessados em “ganharem prémios”
do que no exercício pleno e desinteressado da escrita poética.
A questão volta a não
gerar consenso. João
Luís Barreto Guimarães considera-as úteis, ao funcionarem como “focos
de resistência", e Vasco David diz
que “há iniciativas muito boas e outras nem tanto”. Mais contundente é o editor
da 50 Kg, que
dedica palavras corrosivas ao (epi)fenómeno: “Essas iniciativas sobre a poesia
estão na ordem do espetáculo. É por isso que se assiste a espetáculos poéticos,
com música, cuspidores de fogo, novos jograis, e até strippers... Isso tudo
para plena satisfação de um público consumidor de espetáculos... Mais leitores?
Ui, 'tá' quieto!”.
Rui Azevedo Ribeiro, por seu turno, prefere
apontar o dedo aos “conglomerados editoriais, que agora proliferam”,
responsáveis pela atual desregulação do mercado. No entender do também poeta,
os grandes grupos “também já possuem meios de expressão da crítica”, pelo que
“começaram a introduzir novos autores que não passam por um crivo de
'qualidade' isento e criticamente eficaz”.
Contra "os versejadores da
corte"
O
autor do poema Declaração
de amor ao primeiro-ministro diz ainda “ter muitas dúvidas” de que
hoje existam mais iniciativas poéticas do que há uma década, por exemplo.
[N. Lisboa,
10.9.1974] De uma família açoriana foi criado em S. Miguel. Frequentou a
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde dirigiu a revistaInventio.
É escritor e argumentista. Publicou, entre
outros, os livros Dez Regressos e Os Dias Não Estão para Isso. Trabalhou
em jornais, na rádio e na televisão e é associado das Produções Fictícias. Teve
um programa no canal Q intitulado Melancómico. Escreveu o texto da peça É Preciso Ir Ver – uma Viagem com Jacques
Brel e a biografia Trabalhos e
Paixões de Fernando Assis Pacheco. Colabora regularmente com a revista Ler e com a Sábado e tem um programa na Vodafone FM. Dá, regularmente, aulas de
escrita criativa. Dirige a revista transeatlântico (número zero: setembro
de 2014)
Ao
me saberem açoriano, diversos continentais perguntam: "Nunca te fez confusão
viver numa ilha?". Mesmo muitos dos que se encantam com as paisagens e o
acolhimento, contam-me de um ocasional sentimento de claustrofobia, confessam
que por vezes se sentem agoniados por estarem rodeados de mar, por não poderem
atravessar fronteiras terrestres, fugir para outra banda, dar uma volta de carro
até ao país do lado.
Respondo
que não. Que nunca tive esse sentimento quando vivia a tempo inteiro na ilha de
São Miguel nem o tenho sempre que regresso a casa e por lá fico, em trabalho ou
em férias. Que nunca pensei: "Vivo numa ilha, estou tramado". Revelo
até um escândalo: durante o meu crescimento nunca pensei que vivia numa ilha.
Nunca reflecti sobre o assunto, muito menos acompanhado de bibliografia.
Nunca
passei um minuto a matutar nas questões do "mar por todos os lados", do
"isolamento", da "solidão", da "limitação".
Estava demasiado preenchido. A ilha era a minha terra, onde tinha vivências contraditórias,
umas alegres, outras não, como acontece em qualquer lugar do mundo.
Nem
na fase das inquietudes habituais quis levantar voo para território distante.
Na adolescência nunca senti o desejo urgente de me ir embora. Viajar para o continente
e aí viver era apenas o percurso normal de quem havia terminado o liceu e queria
prosseguir os estudos. Não passei tardes no quarto a fantasiar com a vida lisboeta
e não fui para cima de uma rocha como um poeta romântico a imaginar os mundos "cosmopolitas"
para lá do horizonte. Era feliz onde estava - tanto quanto pode ser feliz um adolescente.
Com a sorte de ter uma família, um grupo de amigos, namoradas, uma vida
cultural feita de muitos discos, livros e filmes que nos chegavam de fora com a
velocidade certa, de beber fininhos bem tirados em cervejarias onde se falava,
se debatia e se asneirava. A ilha nunca teve qualquer dramatismo, esse tipo de dramatismo
de quem a vê de fora, mesmo quando está dentro.
A
ideia de que o ilhéu é um ser prisioneiro entre vagas e de que quer sempre ir
mais além do que o espaço que habita é um cliché que convém mais a uma poesia gasta
da vivência insular do que à realidade quotidiana. Claro que não me refiro ao sonho
emigrante que muitos açorianos tiveram em alturas de dificuldades extremas.
Penso naqueles que têm condições materiais mínimas e alcançaram à sua maneira
uma posição de conforto e de pertença a uma comunidade com virtudes e naturais
defeitos. Muitos deles, claro, associados ao desporto federado de comentar a
vida dos outros.
É
curioso perceber que muitos dos visitantes que partilham este sentimento
repentino de estarem encerrados no meio do Atlântico, quando voltam ao ninho, pouco
saem dos seus circuitos habituais. Pouco saem do seu roteiro, seja pessoal ou profissional.
Não visitam bairros alheios. Não conhecem o nome das avenidas, das ruas, das
freguesias da sua cidade. Vivem em ilhas ainda mais pequenas do que as ilhas
onde por instantes se sentiram prisioneiros. Vai-se a ver e somos todos ilhéus.
Pensem nisso.
Nascido em 1974, Nuno Costa Santos não é propriamente um novato no mundo da escrita, ainda que “Céu Nublado com Boas Abertas” (Quetzal, 2016), o seu primeiro romance, tenha chegado às livrariasapenas este ano. O percurso tem sido feito de livros de poesia ou contos, crónicas avulsas, aventurasbloguianas, programas radiofónicos e televisivos, o que faz deste primeiro livro uma estreia com muito embalo.
A partir de um livro do avô que encontrou numa estante como “um soldado esquecido”, Nuno Costa Santos ficcionou a história de um homem que regressa à sua terra para cumprir uma missão literária, atribuída sem destino específico mas com muita crença pelo seu avô morto: a recolha de histórias recentes da ilha de São Miguel, lá nos indescritíveis Açores. Um livro feito de histórias e tempos cruzados, de personagens que se confundem e fundem, atravessado por muitas referências literárias e uma banda-sonora de eleição. O Deus Me Livro esteve à conversa com Nuno Costa Santos na última edição das Correntes d`Escritas.
Quanto de ti passou para a personagem principal do livro, que regressa aos Açores para cumprir uma herança literária passada pelo avô?
Passou bastante, por um motivo. Ao dialogar com o livro de um avô que se expôs muito, a única forma de ser minimamente leal com esse projecto, de dialogar com esse livro, era eu próprio me jogar bastante como narrador/personagem/protagonista. O livro que encontrei é escrito na primeira pessoa e a viagem é feita na primeira pessoa. E as características da personagem têm muito a ver comigo, ainda que não seja eu. É mais velho, por exemplo, há pormenores, pequenos truques, ilusionismos que fazem parte do jogo da literatura. Mas respondendo à tua pergunta levei muito de mim para dentro do livro: do meu crescimento, da minha adolescência, das minhas opções, dos meus humores, dos meus ressentimentos e dos autores que fui lendo.
O livro tem algumas semelhanças estéticas com as obras de Sebald, desde o tom confessional – quase em forma de diário -, à inclusão de fotografias ou à utilização de muitas citações. Será este seu primeiro romance, também ele, um livro de memórias tocado pela magia da ficção? E que tenta fazer da memória arte, essa “inutilidade suprema” de que se fala ao cair do pano?
O Sebald bastante, mas também o Olivier Rolin do “BaKu”, por exemplo, livro editado pela Sextante e que tem também este lado marcado para a morte, de viagem, um livro que também usa fotografias. Assumo essa herança. Eu escrevo – e isto pode parecer um pouco arrogante – aquilo que gostaria de ler. Podia ter feito um livro mais convencional sob o ponto de vista da arquitectura, pegando na história dos meus avós, um casal que nos anos 40 do século passado é obrigado a separar-se por causa da tuberculose, e que ficam separados durante quatro anos e, ao fim de seis, o elemento masculino do casal tem de tirar um pulmão. Tudo isto dava um romance clássico, uma história de amor. Mas achei que tinha muito mais a ver comigo este diálogo com o livro, comigo próprio, esta espécie de livro do desassossego.
A certa altura lê-se isto: “Admiro nos homens não a valentia mas a capacidade diária de se esquecerem que um dia vão morrer”. Qual é a tua relação com a morte, e de que forma está esta presente na tua vivência?
Há quem diga que os poetas – no sentido genérico do termo – têm, desde muito cedo, uma consciência aguda da própria mortalidade. Eu lembro-me perfeitamente de quando comecei a pensar na morte. Antes disso tinha aquela ideia de que sempre que havia um problema terreno haveria sempre um depois, uma solução – muitas vezes encontrada pelos meus pais -, mas depois de me deparar com a morte comecei a sentir uma certa angústia. Sou uma pessoa muito vulnerável ao mundo, algo que tem tanto de bom como de mau. A parte má é ter essa consciência da sombra, é estar aqui num ambiente porreiro, com esta música, mas poder haver uma imagem que me remeta para a ideia de que vamos todos morrer, que isto vai ser tudo destruído, e que nem este edifício que é tão sólido vai sobreviver. A arte é uma forma de tentar resolver isso.
Pegando nas tuas palavras, “porque é que alguém que tem tudo para acreditar no divino não sente fé?” E não será esta, afinal, algo que todos nós buscamos, como o próprio João Pereira da Costa, que na Cova da Iria acabou por encontrar nada mais que “a pior das clausuras”?
Absolutamente. Aqui nas Correntes nota-se muito isso, há a crença na literatura. Há aqui pessoas que têm uma relação quase religiosa com a literatura, como se fosse um território no qual se pudesse acreditar. Eu tenho essa crença mas também a tendência para questioná-la, sabotá-la, para desconfiar dela. No lado especificamente religioso não fui baptizado, mas a minha mãe ensinou-me a rezar. Havia um pedido final que fazia sempre, que era “Deus faça com que não haja guerras nem tremores de terra”. Estamos todos à procura disso, mesmo os não crentes têm de ter alguma crença. Agora estamos a viver uma era de pequenas crenças, mundanas, como a gastronomia, o gourmet. Se me perguntares qual é a minha, é esta: a possibilidade de viver instantes de felicidade aqui na terra com os meus, com a minha comunidade, e tentar ser o mais solidário com as comunidades que estão distantes da minha. Tenho essa crença na solidariedade.
No livro, o protagonista diz ter trocado o surf pelas páginas irregulares de Artaud, Bréton ou Holderlin. Mais à frente fala-se de Ferreira de Castro, Alves Redol, Pessoa, Sá-Carneiro, Borges Kafka ou Joyce. São estas as influências ou, pelo menos, as tuas preferências no que diz respeito à literatura?
Falaste aí de uma mistura de referências minhas e do meu avô. Esses escritores neo-realistas foram muito absorvidos pelo meu avô, e foram eles que o sintonizaram muito para o sentimento de desigualdade social, que havia na terra onde morava, uma sociedade rural muito estratificada e pobre. No meu caso esses escritores iniciais, sobretudo Holderlin, Artaud, Breton, foram os que li em cima dos rochedos, em Rabo de Peixe, enquanto alguns dos meus amigos surfavam. Diverti-me, também fiz os meus tubos mas nas páginas da literatura. E acabávamos todos a beber uma imperial. Ou um fino como se diz aqui.
No que toca a música, há também uma diversificada banda sonora que vai de composições ao piano e Pink Floyd a sonoridades mais atrevidas como as dos My Bloody Valentine ou dos Jesus & Mary Chain. É esta também parte da banda sonora da tua vida?
Estou sempre a ouvir música. Ainda agora descobri uma banda de Manchester que me está a fascinar chamada Money, meio baladeira. Mas sim, os My Bloody Valentine fizeram parte da minha adolescência. Lembro-me de ter uma gravação em cassete que emprestei a um amigo que me disse que aquilo devia estar mal gravado. Também Jesus & Mary Chain, The Cure – muito – Joy Division, Bauhaus, B-52`s, mas coisas muito diversas como Meredith Monk, Michael Nyman, Wim Mertens, Miles Davis, Prince, muito daquele catálogo da 4AD, claro, que condiz na perfeição com a paisagem açoriana: como Cocteau Twins, Dead Can Dance, The Moon and The Melodies. Toda a minha vida insular foi cruzada pela música, e até já fiz um filme com amigos em que vou aos Açores buscar os discos que lá deixei, e que passam pelos Pixies, Stones Roses, Inspiral Carpets, Charlatans, nunca mais saía aqui. Mas vejo os discos como uma espécie de catálogo de amigos. A música para mim é tão importante como a literatura, só que nunca seria capaz de ser músico.
Será a vida isto mesmo, um “Céu Nublado com Boas Abertas”?
Acho que sim. A felicidade deste título tem a ver com isso. De se aplicar à meteorologia açoriana e muito à vida do meu avô. Céu muito nebulado, doença, sofrimento até ao limite, nervosismo, raiva e, depois, com boas abertas: a possibilidade de voltar a estar com a minha avó, de dançar, ler, de ter os filhos, de ser gerente bancário, de conseguir se reerguer. Acho que no fundo a vida de todos nós é isto.
O dia mundial da poesia veio e passou, os vivos cuidaram de si, os mortos pontuaram as lembranças, para a ressaca pouco ficou mesmo porque a festa está longe de ter sido rija, ainda assim, como escreveu Carlos Drummond de Andrade, fica sempre um pouco de tudo, às vezes um botão, às vezes um rato, no caso da poesia ficam os livros, as grandes colecções, e é uma sorte porque esse pouco talvez seja o melhor que a poesia tem
Há muito por fazer. E muito foi feito no passado mas parece ter-se perdido, sem direito a um futuro, ou sequer à honra da memória. Do que marca os dias hoje, são mais os projectos, impulsos, a razão que sonha um país onde fosse possível contar com a rede necessária de cúmplices para fazer de novo uma grande colecção de poesia em Portugal. Faltam, na verdade, os amantes. Os leitores. E, como é óbvio, “faltas tu faltas tu/ falta que te completem ou destruam/ não da maneira rilkeana vigilante mortal solícita e obrigada/ – não, de nenhuma maneira resultante!”
Faltam-lhe amantes, o que é diferente desses seus distantes admiradores, porque como lembrava Wisława Szymborska, se alguns gostam de poesia, gostar também se gosta de canja de galinha, da lisonja e da cor azul, como se gosta de um velho cachecol, de levar a sua avante, de fazer festas a um cão. Mas a poesia com festas não vai lá. E é preciso aproveitar para lembrar o que já foi da edição de poesia no nosso país, das colecções hoje históricas, coleccionadas, traficadas pelos muito poucos que podem, alguns mais seduzidos pela conquista de outra lombada no afinco com que compõem as suas estantes, os taxidermistas da vida selvagem dos livros.
Lembremos então as excelentes colecções da Portugália, da Guimarães, da Moraes, a extraordinária série dos Cadernos de Poesia, da Dom Quixote. Tiravam-se milhares de exemplares, e existiam leitores para eles. Um público ansioso por "oferecer a boca ao astro", os que faziam por trazer o “nariz amarelo de pólen”.
É ilustrativo o bastante o caso de António Alçada Baptista, um homem que se fez do lado da cultura, vindo da província, contra o contentamento desgraçado das suas origens: "Na minha visão da infância e da adolescência, Salazar era o procurador, em Lisboa, dos meus avós, dos meus pais, dos meus tios e dos padres."
Uns bons anos antes de fundar a revista O Tempo e o Modo, Baptista trocou a advocacia pelo que viria a chamar a sua grande aventura. Soube, em 1958, que a Editora-Livraria Moraes estava à venda e lá foi almirantar-se, contando na tripulação com um grupo de jovens recém-licenciados católicos – Pedro Tamen, João Bénard da Costa e Nuno Bragança, entre outros. Juntos cobriram distâncias que a outros teriam parecido impossíveis.
"Nunca me passou pela cabeça que tínhamos nas mãos uma empresa comercial sujeita a critérios de rentabilidade e julgava que, como nós, alguns milhares de portugueses estavam ansiosos por livros. (…) Mas "esta aventura falhou porque a camada da sociedade portuguesa a quem ela se dirigia recusou frontalmente a sua colaboração e não esteve disposta a correr nenhum risco nem, na prática, se sentiu minimamente solidária com o esforço que estava a ser feito", lembraria Alçada Baptista. Foi o fim daquela aventura mas, mais que isso, marcou também o momento em que os editores deixaram de poder contar com um público exigente, leal e comprometido.
A morte de Vitor Silva Tavares no ano passado ditou o fim da editora do subterrâneo, a &etc, uma empresa poética que resistia há mais de 40 anos, sem lucro nem agravo. VST foi em todos os sentidos no percurso da palavra à acção o exemplo do editor-poeta, aquele que apontou o estreito mas não menos aventuroso caminho que restava para as editoras de vão de escada, as pequenas, humílissimas, mas independentes, as editoras que hoje seguram o sufocado fôlego de um espaço que já nem conta com os 300 leitores que permitiam ainda que se falasse numa linha irredutível que não deixaria aquele nicho cair na pura indigência.
Hoje resistem algumas colecções com tradição embora longe dos tempos mais auspiciosos – a Relógio D’Água, a Cotovia, e a Assírio & Alvim, anexada pela federação Porto Editora. Surgiu entretanto com uma firmeza assinalável a da Tinta-da-China, com Pedro Mexia no leme. Depois há o universo atomizado das tais editoras pequenas ou minúsculas, mas persistentes, incansáveis, que dificilmente conquistam posições mas também não arredam pé: Averno, Mariposa Azual, Artefacto, Companhia das Ilhas, Do Lado Esquerdo, Douda Correria...
David Teles Pereira
Já se disse que muito foi feito no passado e que, infelizmente, grande parte desse muito parece hoje perdida. Mas perdida de que forma? Os livros integrantes das grandes colecções de poesia do século XX estão hoje, na maior parte, indisponíveis ou apenas disponíveis em alfarrabistas e a preços tantas vezes pornográficos. Tirando os casos em que os textos foram mais tarde incluídos em obras reunidas dos autores, o que quase só aconteceu relativamente aos autores portugueses, o contacto com as tais colecções exige hoje um esforço quase académico, quase arqueológico, um lugar que até a um bibliófilo pareceria hostil, quando mais aos meros leitores. Contudo, a parte mais significativa deste problema pode ser explicada através da perecibilidade – principalmente a dos interesses – e do passar do tempo, que distribui pelos livros uma justiça que, a bem ver, nem sempre nos é imputável.
Este processo revela, contudo, um outro problema bem maior e deliberado: a falta de diálogo entre as editoras presentes e as editoras passadas, ou melhor, a ausência de memória editorial. É verdade que o património editorial passado, idealmente, deveria desempenhar a mesmíssima função que o património poético anterior cumpre junto dos novos autores. E, nesse mundo ideal, as novas editoras necessariamente estariam neste momento a revisitar a simplicidade e eficácia gráfica dos Cadernos de Poesia ou, para dar um exemplo mais recente, o sóbrio modelo de paginação tão bem aplicado por Olímpio Ferreira na Cotovia, na &etc, na Fenda e nos tempos iniciais da Averno. Mas, se no mundo real isto só a espaços vai acontecendo, que o que nos legitima hoje a desejar um processo de diálogo diferente com o passado? É a edição de poesia que impõe parte do ritmo e sentido nesta arte e, nesta perspectiva, um olhar mais íntimo, mais ajuizado sobre o acervo editorial português permitiria às novas editoras de poesia impor aquilo que neste momento mais falta faz: um ritmo de leitura. Ao invés, com um olhar quase sempre divorciado do passado, o que a edição de poesia em Portugal mais tem feito é atascar ainda mais um ralo já complemente entupido. Poucas tendências recentes da edição de poesia em Portugal se destacam tanto quanto esta aparente obsessão por lançar novos autores. Alguns verão aqui uma vantagem, um exemplo da democratização dos meios de publicação e uma externalidade positiva das redes sociais, quando, na verdade, parecemos todos russos a mandar os nossos compatriotas perder a vida contra os alemães e, neste caso, não há inverno que nos salve. A profusão contemporânea de nomes, aquilo que a um olhar menos atento serviria como indício de vitalidade do meio, pouco ganha em dignidade àquela odienta máxima de que “o caminho é para a frente”. Não é e só algumas vezes foi. Sem memória e referência as editoras não completam sequer uma identidade e, com isso, os nomes que todos os anos acrescentam as fileiras da poesia terão certamente um lugar entre as futuras glórias do esquecimento, num processo que as pequenas tiragens só vão tornar ainda mais implacável. Só num universo editorial que mal consegue dialogar com o que já fez no século XXI – para nem irmos muito longe – se compreende esta abundância constante de novidades. Ao invés, um breve olhar para o passado dar-nos-ia pelo menos um início de conversa com a maior de todas as qualidades editoriais: a ausência de pressa.
Contas certas: são 21 poemas porque é a 21 de março que se celebra a poesia. Outros tantos poetas escolheram os seus textos favoritos e explicam porquê.
Escolhas livres feitas por poetas das mais diferentes vocações e dos mais variados apetites. Cada instinto perseguiu um registo. Há quem, na sua escolha, pretenda fixar em arquitectura literária superior a fugacidade da vida, há quem, também se fixando nesse desgaste, aproveite para a festejar (Ferreira Gullar, evocado pelo brasileiro Antonio Cicero), há quem se sinta confrontado por um poema-soco ou por um poema que, para falar de amor, traz a sombra da morte. Ou ainda por um poema que despoja o homem de pulsões que o diminuem.
São também convocados poemas (como o de Lawrence Ferlinghetti, escolhido por Tiago Gomes) que celebram o gosto perigoso em viver e outros que também relevam os aspectos técnicos – aqueles que, se bem cozinhados, conseguem criar a emoção poética que só a grande arte consegue atingir. E, aqui e ali, emerge a ironia, estratégia de sobrevivência de uma poesia que, se tremendamente grave, poderia parecer escusada.
Num poema de António Amaral Tavares, autor recém-descoberto por Renata Correia Botelho, diz-se: “Doutor há muito pouco tempo para a poesia”. Podemos vir com a conversa de circunstância, habitual nos salões e nas redes sociais: todos os dias são dias para a poesia. Não são, até porque há dias em que é preciso ir pagar o IRS. E por isso, já que existe um dia só consagrado ao género, que o aproveitemos para lermos e dizermos poemas, para celebrar a poesia como serena partilha, numa comunidade diversa.
Luís Filipe Castro Mendes
“Magnificat” de Álvaro de Campos
Cada poema é um encontro, no processo em que é escrito tanto como no processo em que é lido. Encontrei há muito tempo este poema e sei que de repente ele me veio cortar a respiração e ferir-me com a terrível consciência de que nunca poderemos sair do nosso próprio ser, nem pela vida nem pela morte. Cárcere do ser, li mais tarde no mesmo Álvaro de Campos. Mas o soco que o poema dá em nós (“e a dor dói como um soco”, Alexandre O’Neill) só o sentimos bem nesses momentos em que da ideia se passa ao espanto quase físico do encontro com uma verdade de nós que nós não sabíamos. O poeta é afinal aquele que sabe dar-nos de surpresa um soco no mais fundo do que somos. Para com isso aprendermos a ver melhor o esplendor do mundo.
Quando é que passará esta noite interna, o universo, E eu, a minha alma, terei o meu dia? Quando é que despertarei de estar acordado? Não sei. O sol brilha alto, Impossível de fitar. As estrelas pestanejam frio, Impossíveis de contar. O coração pulsa alheio, Impossível de escutar. Quando é que passará este drama sem teatro, Ou este teatro sem drama, E recolherei a casa? Onde? Como? Quando? Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo? É esse! É esse! Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei; E então será dia. Sorri, dormindo, minha alma! Sorri, minha alma, será dia!
Inês Fonseca Santos
“Passagem”, de Manuel António Pina
Escolho o poema que fecha a obra de Manuel António Pina, se é que tal é possível, um poema que feche seja o que for, em vez de abrir. E escolho-o porque, figurando como poema final, como derradeiro poema, aponta, logo no título, para a noção de “Passagem”, para esse movimento cíclico a que está condenado o poeta, o criador, «[a]gora que os deuses partiram». Esse eterno retorno às palavras que se situam «tão sem peso por cima do pensamento» é a maior celebração da poesia no que ela tem de possibilidade de fuga ao uso comum da linguagem e no modo como ela, a poesia, se continua a escrever (e inscrever) mesmo não tendo mais do que palavras para dizer o mundo. Dá-se ainda o caso de este poema me ser dedicado. Lembrá-lo hoje — e todos os dias — é o meu modo tosco de agradecer e retribuir a Pina.
Com que palavras ou que lábios é possível estar assim tão perto do fogo e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas, tão sem peso por cima do pensamento?
Pode bem acontecer que exista tudo e isto também, e não só uma voz de ninguém. Onde, porém? Em que lugares reais, tão perto que as palavras são de mais?
Agora que os deuses partiram, e estamos, se possível, ainda mais sós, sem forma e vazios, inocentes de nós, como diremos ainda margens e diremos rios?
Manuel António Pina
Manuel Cintra
“Muriel”, de Ruy Belo
É, desde sempre, não só o meu poema de amor favorito em toda a literatura portuguesa (que eu conheça) como é, mais do que isso, o meu poema favorito. Acontece que o tema dominante no que escrevo é o amor, e dentro do amor, por razões muito pessoais e objectivas, o desencontro. Este poema fala de ambos, como a meu ver só o Ruy Belo soube fazer. Para além da música das palavras, como sempre incomparável, o Ruy consegue aqui uma emoção, uma intensa tristeza, uma maneira de ir ao encontro do amor tornando-o impossível que me comove sempre, e que se me entranha de cada vez que o leio, seja para mim, seja para outrem. Como sempre, a ferramenta certeira é, além disso, a morte. O Ruy utiliza a morte, seu tema obsessivo, tanto para falar de amor como para o que quer que seja. Ora fá-lo com uma profundidade e uma melancolia tais, que sempre, há trinta anos que leio este poema, ele renasce em mim, e põe-me a chorar por dentro. São razões muito físicas e emotivas, nada intelectuais.
Às vezes se te lembras procurava-te retinha-te esgotava-te e se te não perdia era só por haver-te já perdido ao encontrar-te Nada no fundo tinha que dizer-te e para ver-te verdadeiramente e na tua visão me comprazer indispensável era evitar ter-te Era tudo tão simples quando te esperava tão disponível como então eu estava Mas hoje há os papéis há as voltas dar há gente à minha volta há a gravata Misturei muitas coisas com a tua imagem Tu és a mesma mas nem imaginas como mudou aquele que te esperava […]
[este é um excerto de “Muriel”. Ouça aqui o poema na íntegra:]
Francisco José Viegas
“Os Justos”, de Jorge Luis Borges
O poema “Os Justos”, de Jorge Luis Borges, resume a ideia de que há poemas que salvam a nossa vida. À medida que o tempo passa, que a morte se atravessa no caminho, que a memória exige esforço e sacrifícios cada vez mais pesados, a poesia parece transportar algum material de salvação. Não para a morte, física e real — mas para a vida, que falha tantas vezes. Não é uma solução nem um bálsamo; é um fragmento de beleza (e de alegria, e de serenidade, e de atenção) que busca a nossa perplexidade.
Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire. O que agradece que na terra haja música. O que descobre com prazer uma etimologia. Dois empregados que num café do Sul jogam um xadrez silencioso. O ceramista que premedita uma cor e uma forma. O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade. Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto. O que acarinha um animal adormecido. O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram. O que agradece que na terra haja Stevenson. O que prefere que os outros tenham razão. Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.
Jorge Luis Borges
Inês Lourenço
“Não só quem nos odeia ou nos inveja”, de Ricardo Reis
Nos tempos que correm, apetece saborear esta ode pessoana, enquanto desafiante e sabotadora dos actuais estilos de vida e de pensamento. Vão pela borda fora os empreendedorismos, o ter cada vez mais e melhores coisas, os hedonismos vários e até os monoteísmos, que tantas guerras sangrentas proporcionam, seguindo o poema um paganismo sadio e ético. Claro, que há a questão das influências, horacianas, epicuristas, estóicas ou heraclitianas. Mas os grandes poetas são intemporais. Dão-nos sempre capacidade acrescida de respiração e de aceder a uma total liberdade, anulando as contingências do mundo.
Não só quem nos odeia ou nos inveja Nos limita e oprime; quem nos ama Não menos nos limita. Que os deuses me concedam que, despido De afectos, tenha a fria liberdade Dos píncaros sem nada. Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada É livre; quem não tem, e não deseja, Homem, é igual aos deuses.
João do Nascimento
“O pai morava no fim de um lugar”, de Manoel de Barros
Descobri a poesia de Manoel de Barros em 2001, e não foi preciso mais do que a leitura breve de alguns dos seus poemas para que me tocasse. A visão profunda que transpira na sua escrita dos elementos vulgares, tão quotidianos quanto imensos e desimportantes, é tão grande que ganha nos seus textos a dimensão harmoniosa daquilo a que alguns chamarão: alma.
Senhor do pormenor, em Manoel de Barros tudo é tão insignificante quanto grandioso, percepcionando-se a essência humana em objectos simples e banais misturados de forma imprópria, irónica, tocando-se a natureza, o lixo, os despojos do quotidiano e os lugares, de maneiras imprevisíveis e luminosas. Os rios caminham sobre latas e os alicates dormem em esteiras. Realidade só revelável pela voz da poesia.
Ainda que português, ou cidadão de outra qualquer nacionalidade, ao ler os textos tão intrinsecamente brasileiros de Manoel de Barros, o leitor percebe o que é isso de linguagem universal. O que é isso de poesia.
O pai morava no fim de um lugar. Aqui é lacuna de gente – ele falou: Só quase que tem bicho andorinha e árvore. Quem aperta o botão do amanhecer é o arãquã. Um dia apareceu por lá um doutor formado: cheio de suspensórios e ademanes. Na beira dos brejos gaviões-caranguejeiros comiam caranguejos. E era mesma a distância entre rãs e a relva. A gente brincava com terra. O doutor apareceu. Disse: Precisam de tomar anquilostomina. Perto de nós sempre havia uma espera de rolinhas. O doutor espantou as rolinhas.
João Luís Barreto Guimarães
“Musée des Beaux Arts”, de W. H. Auden
Porque encontro neste poema – para além de aspectos mais técnicos de oficina que me agradam profundamente, como por exemplo a métrica ou a dicção -, todo aquele sentido trágico da vida e do sofrimento que o acaso dos dias tantas vezes nos apresenta colado à comicidade. Tragédia e comédia, só aparentemente opostas. Alguém escreveu que a tragédia é somente comédia mal desenvolvida. E o facto deste poema interligar a mitologia grega com a pintura de Brueghel, numa ekkfrasis de tom quase coloquial, torna este poema moderno hoje como daqui a cem anos. A persona poética conversa com o leitor através de uma qualidade de verso assinalável, com vários estratos de leitura, o que faz com que o poema, aparentemente, não se esgote. É um texto de um grande grande poeta, dono de uma intelecção pensada e repensada. Imenso.
Acerca do sofrimento, nunca se enganaram Os Velhos Mestres: quão bem entenderam A condição humana; como está presente Enquanto alguém se alimenta ou abre uma janela ou monotonamente segue a caminhar; Como, enquanto os velhos esperam apaixonada e reverentemente Pelo miraculoso nascimento, deve sempre haver Crianças que não queriam especialmente que acontecesse, patinando Num lago na orla da floresta: Nunca esqueceram Que até o mais terrível martírio deve seguir o seu curso, Custe o que custar, a um canto, nalgum lugar descuidado Onde os canídeos acorrem em suas vidas de cão, e o cavalo do torturador Coça seu inocente traseiro por detrás de uma árvore.
No Ícaro de Brueghel, por exemplo: como tudo se afasta Ociosamente do desastre; o lavrador poderá Ter ouvido o splash, o grito desamparado, Mas para ele não era um importante fracasso; o sol brilhou Como soía sobre as pernas brancas que desapareceram na verde Água; e o frágil e grandioso navio que deve ter avistado Algo espantoso, um rapaz caindo do céu, Tinha um destino para ir e afastou-se calmamente.
Tiago Gomes
“Ocupamos a praia do Amor”, de Lawrence Ferlinghetti
Um poema sobre ocupantes, amantes e demais revolucionários. Do sobrevivente da geração beat, um poema que também pode ser uma celebração das maravilhosas praias portuguesas. Ferlinghetti, figura menos conhecida da geração beat, mas de importância fundamental como editor, por exemplo, do livro “Uivo” de Allen Ginsberg e fundador das importantíssimas livrarias City Lights em São Francisco, epicentro do movimento da beat generation. Lawrence Ferlinghetti, para mim, mestre da poesia do quotidiano, social e de uma simplicidade desarmante. A ler, muito actual. O autor cumpre 97 anos no dia 25 de março.
Ocupamos a praia do amor entre bandolins de Picasso repletos de areiae patas de esfinge semi-enterradas e papéis de piqueniquepatas de caranguejos mortose marcas de estrelas do mar
Ocupamos a praia do amor entre sereias encalhadas com seus bebés berrando e maridos calvos e bichinhos de madeira feitos em casa com colheres de gelados a fazer de pés que não podem amar ou andar excepto para comer
Ocupamos a orla do amor seguros como só os ocupantes sabem ser entre poças remanescentes de maré salgada de sexo e os suaves regatos de sémen e balões flácidos enterrados na carne macia da areia
E ainda rimos e ainda corremos e ainda nos deitamos nos botões do amor mas é mais profundo e mais tarde que pensamos e tudo se gasta e todas as nossas boias d’amor falham E bebemos e afogamo-nos
Miguel-Manso
“O Autocarro”, de Leonard Cohen
Não sei explicar bem o porquê de escolher este e não outro. Na verdade podia ser outro. Mas este tem um sentido aventureiro que me agrada. Cumprir uma aventura sem sair da secretária.
Era o último passageiro do dia! Estava sozinho no autocarro feliz por estarem a gastar todo aquele dinheiro só para me levarem pela oitava avenida acima. Condutor! — gritei — somos só tu e eu esta noite Vamos fugir desta grande cidade para uma cidade mais pequena, mais de acordo com o coração Vamos guiar através das piscinas de Miami Beach tu no assento do condutor e eu vários assentos atrás Mas nas cidades raciais trocaremos de lugar para mostrar como te arranjaste no Norte e vamos descobrir alguma pequena vila piscatória americana na desconhecida Florida e parar junto à areia um enorme autocarro chamando sobre si as atenções metálico, pintado, solitário com matrícula de Nova York
Margarida Ferra
“O Canto da Chávena de Chá”, de Fiama Hasse Pais Brandão
Não é a primeira vez que repito este poema quando me pedem um. Gosto do modo como Fiama chama a poesia e a natureza para contracenarem além das deixas decoradas. Também porque sou uma leitora feliz diante do lirismo temperado com ironia. E apesar de duvidar muito, ainda acho que, a servir para alguma coisa, a poesia estará aqui para nos trazer à mesa novos sentidos, chamando os nossos, vivos, e outras explicações. Como esta de que a porcelana e o osso estão ligadas além da mão que segura a chávena e de que as palavras de um poema encontram o lugar certo no universo para uma mesa de verga (imagino-a desfiar-se, a chávena de chá, agora mal equilibrada, sobre o tampo).
Poisamos as mãos junto da chávena sem saber que a porcelana e o osso são formas próximas da mesma substância. A minha mão e a chávena nacarada – se eu temperar o lirismo com a ironia – são, ainda, familiares dos pterossáurios. A tranquila tarde enche as vidraças. A água escorre da bica com ruído, os melros espiam-me na latada seca. É assim que muitas vezes o chá evoca: a minha mão de pedra, tarde serena, olhar dos melros, som leve da bica. A Natureza copia esta pintura do fim da tarde que para mim pintei, retribui-me os poemas que eu lhe fiz de novo dando-me os meus versos ao vivo. Como se eu merecesse esta paisagem a Natureza dá-me o que lhe dei. No entanto algures, num poema, ouvi rodarem as roldanas do cenário, em que as palavras representavam a cena da pintura da paisagem num telão constantemente vário. Só o chá me traz a minha tarde, com a chávena e a minha mão que são o mesmo pedaço de calcário. Hoje a bica refresca a água do tanque, os melros descem da latada para o chão, e as vidraças devagar escurecem. As palavras movem-se e repõem no seu imóvel eixo de rotação o espaço onde esta mesa de verga gira nas grandes nebulosas.
Fiama Hasse Pais Brandão
Carlos Alberto Machado
“Tenho de construir hoje esta planície”, de R. Lino
Em cada livro de poemas aprende-se de novo a respirar (como a um corpo amante): o prazer de dizer o poema como nosso, deixarmos de existir entre a sua respiração e a nossa qualquer diferença.
A poesia de R. Lino concentra poderosamente a força e a violência que advêm da “geografia” e do esgaçar da memória, numa serena e delicada mutação em palavras – implodem e espalham a sua força pelo interior, sem o estrondear do definitivo (mortal).
Tenho de construir hoje esta planície. Separo as ruas, entrego os lados aos quatro pontos cardeais, faço do largo um sítio, abro as portas de um castelo já sem uso. Subo pelas escadas da torre até ao cimo dos telhados uma mancha meio branca por entre os tapetes de pedra. Em cima, fica a rua de cima um gato passa entre as duas em baixo, fica a rua de baixo. Escolho as varandas ao redor há um rio que me leva como um barco nesse cantar aqui cantado. Hoje tenho de construir esta planície as estevas das fronteiras uma mudança de países o outro lado retalhado por vacas e por verdes trabalhados. Do lado do cemitério a vida é talvez mais selvagem os coelhos e as perdizes e o que nasce sem se plantar.
Rui Almeida
“Nem nos defende a ausência”, de José Augusto Seabra
Dos 21 poetas, nascidos entre 1930 e 1941, incluídos por António Ramos Rosa no volume que constitui a quarta série das ‘Líricas Portuguesas’ (1969), José Augusto Seabra (1937-2004) é, tanto quanto sei, aquele que nunca teve a sua obra poética reunida ou com uma ampla antologia. E todo o sentido faria, pois trata-se de alguém que, nos 14 livros de poemas, publicados entre 1961 e 2002, reflecte um percurso pessoal riquíssimo, que vai desde a experiência do exílio, por causa da oposição ao Estado Novo, até à carreira diplomática que o levou a vários países como embaixador, passando pela experiência académica, em Paris, que o revela como um dos mais importantes estudiosos de Fernando Pessoa, ou pela profunda reflexão crítica da relação da cultura com a cidadania. O poema escolhido é do seu primeiro livro e revela já a marca da «lúcida perscrutação de um espaço interior», apontada por Ramos Rosa, que acompanhará toda a sua obra.
Nem nos defende a ausência: é o reverso. Sabemos todos já bem a ciência da traição que se oculta a cada verso.
Nem nos salva a desculpa de anoitecer, poetas: por cada mea culpa, apontam-nos a morte noutras setas.
Ficar nem chega. Ou ir ou sepultar-nos. Foge-nos o tempo já de decidir Sequer suicidar-nos.
A bem ou mal, poetas. Liberdade só esta que sorri por entre as frestas hesitante do peso da verdade.
Leonardo
“IX”, do “Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano”, Mário Cesariny
Por (e para) altura do nosso tempo imediatista, que, por milagre ou paradoxo, consegue estagnar nas coisas mais velhas do mundo, surgir-nos-ia Cesariny. Os seus versos, aqui, não deixam de me lembrar uma cabeça de que se derramasse uma cascata. À superfície temos a imprevisibilidade dos lados para que se derrama, o ritmo estrondoso das águas a bater em si próprias. Depois, são as imagens que se riem ruidosamente de nós, «homens só até aos joelhos», «lindas lindas raparigas só até ao pescoço», «poetas até à plume», riem-se que permitamos que nos fechem o caminho para a «noite Cadillac obsceno». E quem diria que voltaríamos ao tempo (ou nunca saímos?) em que «o joelho está tão barato»? Já no fundo de tanto riso, acredita-se, há-de haver alguma amargura. E, portanto, esperança. Pelo que a maravilha da poesia está aqui: quando as palavras se conseguem alimentar de um tempo e de um espaço posteriores, corroendo-os. Muito mais estará nestes que pisamos, em que se diz muito pouco, ou em que aquilo que se pode dizer tem os seus respectivos estágios de afogamento.
no país no país no país onde os homens são só até ao joelho e o joelho que bom é só até à ilharga conto os meus dias tangerinas brancas e vejo a noite Cadillac obsceno a rondar os meus dias tangerinas brancas para um passeio na estrada Cadillac obsceno
e no país no país e no país país onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço e o pescoço que bom é só até ao artelho ao passo que o artelho, de proporções mais nobres, chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça, recordo os meus amores liames indestrutíveis e vejo uma panóplia cidadã do mundo a dormir nos meus braços liames indestrutíveis para que eu escreva com ela, só até à ilharga, a grande história de amor só até ao pescoço
e no país no país que engraçado no país onde o poeta o poeta é só até à plume e a plume que bom é só até ao fantasma ao passo que o fantasma – ora aí está – não é outro senão a divina criança (prometida) uso os meus olhos grandes bons e abertos e vejo a noite (on ne passe pas)
diz que grandeza de alma. Honestos porque. Calafetagem por motivo de obras. relativamente queda de água e já agora há muito não é doutra maneira no país onde os homens são só até ao joelho e o joelho que bom está tão barato
Cláudia R. Sampaio
“Homens que são como lugares mal situados”, de Daniel Faria
Poema que confirma o génio de Daniel Faria e de uma maturidade assombrosa para um jovem poeta. Revelador da sua visão mística e visceral, é ainda de um perfeito domínio formal aliado a uma poesia que ilumina, numa incessante busca e contemplação e numa serena exaltação dos mistérios do homem, intensificando-os, deixando-os no lugar.
Homens que são como lugares mal situados Homens que são como casas saqueadas Que são como sítios fora dos mapas Como pedras fora do chão Como crianças órfãs Homens sem fuso horário Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas Que são como caminhos barricados Homens que querem passar pelos atalhos sufocados Homens sulfatados por todos os destinos Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias Que são como os esconderijos dos contrabandistas Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis Homens que são sobreviventes vivos Homens que são como sítios desviados Do lugar
Pedro Mexia
“A de Sempre, Toda Ela”, de Paul Éluard
Lembro-me do tempo em que comecei a ler seriamente poesia, e em que «a poesia» se identificava quase por completo com este poema de Paul Éluard (traduzido por António Ramos Rosa): aspiração, celebração, invenção, espanto. Comecei por encontrar uma tradução de Hölderlin, clássico-romântico, poeta de grandes exaltações e grandes odes, mas logo depois descobri Éluard, mais acessível, mais contemporâneo, um dos surrealistas franceses, talvez o maior poeta francês do seu tempo. E até encontrar um estilo que fosse mais ou menos meu, este era o estilo eu imitava: a de um intimismo comovido, reiterativo, agradecido, poemas sobre a grande alegria de ter ou não ter, a candura de esperar, a inocência de conhecer. Mas Eliot refreou-me essa tendência, tal como os disfóricos Hardy e Larkin, e Álvaro de Campos, e a vida também. De modo que hoje vejo Éluard como uma recordação de um momento em que a poesia era uma evidência, uma omnipresença. Já não acredito nisso, mas estou grato por essa ficção de juventude
Se eu vos disser: «tudo abandonei» É porque ela não é a do meu corpo, Eu nunca me gabei, Não é verdade E a bruma de fundo em que me movo Não sabe nunca se eu passei.
O leque da sua boca, o reflexo dos seus olhos Sou eu o único a falar deles, O único a ser cingido Por esse espelho tão nulo em que o ar circula através de mim E o ar tem um rosto, um rosto amado, Um rosto amante, o teu rosto, A ti que não tens nome e que os outros ignoram, O mar diz-te: sobre mim, o céu diz-te: sobre mim, Os astros adivinham-te, as nuvens imaginam-te E o sangue espalhado nos melhores momentos, O sangue da generosidade Transporta-te com delícias.
Canto a grande alegria de te cantar, A grande alegria de te ter ou te não ter, A candura de te esperar, a inocência de te conhecer, Ó tu que suprimes o esquecimento, a esperança e a ignorância, Que suprimes a ausência e que me pões no mundo, Eu canto por cantar, amo-te para cantar O mistério em que o amor me cria e se liberta.
Tu és pura, tu és ainda mais pura do que eu próprio.
Paul Éluard
Antonio Cicero
“Anoitecer em Outubro”, de Ferreira Gullar
Observe-se uma característica curiosa desse poema. Ele evoca a transitoriedade da vida humana, porém não é depressivo. É que o poema celebra esse momento particular da vida, logo, celebra a vida, mesmo reconhecendo sua finitude. O poema é um monumento a esse momento efêmero da vida, momento mais valioso ainda até mesmo em virtude de sua efemeridade. “Efêmero” é o que dura um dia: e o poema colhe esse dia: “carpe diem”, como se diz em latim.
A noite cai, chove manso lá fora meu gato dorme enrodilhado na cadeira
Num dia qualquer não existirá mais nenhum de nós dois para ouvir nesta sala a chuva que eventualmente caia sobre as calçadas da rua Duvivier
Renata Correia Botelho
“Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça”, de António Amaral Tavares
Era-me, até há poucas semanas, desconhecido o seu nome: António Amaral Tavares. Nunca lera nada dele, não me soava sequer familiar. Cheguei à sua poesia depois de o saber vencedor, no final de 2015, do Prémio Nacional de Poesia Diógenes, atribuído pela revista Cão Celeste. Foi dos encontros mais impressionantes que vivi. Um estrondo que nos fica a latejar, impiedoso, entre os dedos e o coração. Despojado de astúcias poéticas, cru e dorido como a noite. E, no fim das palavras, como se à noite não se seguisse mais nada.
Doutor eu tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça um euro e trinta e cinco cêntimos 16 de Agosto de 2011 não dá para o tabaco. Quero lembrá-lo que o verão está a acabar
e eu já ouço passos nos caminhos da lama e do medo e há coisas que só no verão se fazem e eu ainda não fiz como ouvir o rumorejar do mar nos meus pulsos.
Os seus medicamentos doutor deixam-me sem mim o meu pai disse-me que a minha doença só lhe traz problemas doutor há uma pedra intraduzível entre nós dois
quero dizer-lhe que há pessoas muito pobres que querem o meu rim esquerdo doutor o mundo não é perfeito e não me diga para lhe contar tudo como a um padre
eu não quero morrer outra vez essa frase fá-lo muito feio. Acredite que vi gente morrer porque era maior que o corpo tenho a impressão que o corpo não sabe o que tem dentro
acredite que consigo fundir uma lâmpada só com o olhar já fundi muitas lâmpadas só com o olhar e que vi um anjo atravessar os muros de um hospício
rasante e belo como uma garça. Doutor há muito pouco tempo para a poesia. Isto que lhe digo é verdade todos os dias doutor.
António Amaral Tavares
José Anjos
“Como?”, de Vasco Gato
Poema absoluto do Vasco Gato sobre o mistério da sublimação e do seu maior ofício: o gesto. o gesto de colher, de receber na medida certa da intenção (a nossa e a das próprias coisas); o gesto que desaparece para dar lugar ao fruto; o gesto de ter escrito— o “mover de mão” —; o poema — gesto e fruto ao mesmo tempo; o gesto de ter acabado de o ler pela primeira vez; o gesto de repetição; a pergunta — gesto de empreender a percepção do que ainda não existe; a espera — gesto do tempo; o tempo — gesto de Deus.
colher dos ramos altos sem saltar o fruto sereno da tua passagem — como?
Vasco Gato
Carlos Bessa
“Desculpas não faltam”, de José Miguel Silva
Entre os muitos poemas de que gosto escolho “Desculpas não faltam” (do livro Serém, 24 de Março. Averno, 2011), de José Miguel Silva, pelo tom e pelo modo como, em poucos versos, se mostra que a poesia que realmente importa seduz, emociona e deslumbra, podendo mesmo brincar prosaicamente com topos e temas clássicos e transfigurar, com algum humor, pequenos aspectos do quotidiano, que ganham assim outra claridade.
Uma casa junto ao Vouga, rio de água suficiente, onde apenas se mergulha até à cintura, a pequena horta de Virgílio, o amor robustecido por nenhuma esperança e tantos livros para ler – que desculpa vou agora dar para não ser feliz?
José Miguel Silva
João Rios
“Ao lado”, de Joaquim Castro Caldas
Verso a verso o poema entranhou-se como corpo de pássaro sobre a toalha de mesa. Do seu voo restam ainda cores de incêndio e a mais genuína arte de reeducar o silêncio.
havia tantas coisas que eu te queria dizer se não fosse o abismo
de te perder num afago de te ter do outro lado do medo à minha beira
havia tantas coisas que eu te queria dizer se não fosse o amor
que há noites ao teu lado em que me dói não sei onde é que a distância ai
Rui Cóias
“The Hollow Men”, de T.S. Eliot (excerto)
Ler e pensar este poema de Eliot é como escolher o fim de um mundo, o início de um tempo agonizante, acompanhar uma mão que vai esculpindo, com o seu rigor, crueza formal e limpidez absolutamente inebriantes, as lamentações de ideais perdidos do primeiro quartel do século XX, que são, na sua essência, como que uma estrela crepuscular na história que nos dirige através do desmoronamento e da ambiguidade sombria.
A sua imagem permite-nos a rememoração enigmática, como se andássemos ao longo de um vale vazio (hollow valley) atormentados pelas cinzas da esperança, da nossa, e do mundo, enquanto, mesmo por isso, ouvimos para sempre os seus versos na voz entrecortada de Marlon Brando, entre as sombras, da selva, do Apocalypse.
Nós somos os homens vazios
Somos os homens de palha
Apoiados uns nos outros
A parte da cabeça cheia de palha. Ai
As nossas vozes foram secas e quando
Juntos sussurramos
São serenas e sem sentido
Como vento em erva seca
Ou pés de ratos sobre vidro partido
Na secura da nossa cave
Molde sem forma, tonalidade sem cor,
Força paralisada, gesto sem movimento;
Os que cruzaram
Com os olhos certeiros, para o outro reino da morte
Lembram-se de nós – quem sabe – não de
Violentas almas perdidas, mas somente
De homens vazios
Homens de palha.
T.S. Eliot
Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.