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sábado, 14 de maio de 2016

O guardador de rebanhos, Alberto Caeiro



Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr-do-sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes,
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr-do-sol
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minha ideias,
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa.
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer coisa natural –
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos (poema I)



Audiopoema: poema dito por Luís Gaspar (Estúdio Raposa, http://www.estudioraposa.com/poetas/alberto_caeiro_guardador_sm.mp3, 2013-10-14)




Alex Howitt


Logo no começo do poema “O Guardador de Rebanhos” se declara pastor por metáfora (aqui desponta o “poeta bucólico de espécie complicada” que Pessoa, segundo a carta a Casais Monteiro, quis inventar para pregar uma partida a Sá-Carneiro). De pastor tem o deambulismo, o andar constantemente e sem destino, absorvido pelo espetáculo da inexaurível variedade das coisas: “Minha alma é como um pastor, / Conhece o vento e o sol / E anda pela mão das Estações / A seguir e a olhar.” Anda a seguir, passivamente, como espírito concentrado numa atividade suprema: olhar. Os seus pensamentos não passam de sensações. Vive feliz como os rios e as plantas, gostosamente integrado nas leis do Universo. Não havendo para ele passado nem futuro, compreende-se que duvide do próprio eu. O retrato de Campos, uma vez mais, coincide com este modelo: limita-se a existir, tendo nos lábios o sorriso “que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos agradam – flores, campos largos, águas com sol -, um sorriso de existir, e não de nos falar”. Às vezes o seu misticismo naturalista leva-o a desejar dispersar-se, a desejar transformar-se num rebanho, “Para andar espalhado por toda a encosta / A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo”. Ou então deita-se na erva (consta da “biografia” que vive no campo, com uma tia velha, numa aurea mediocritas horaciana) e o seu corpo “pertence inteiramente ao exterior”, sente a frescura cheirosa da terra, só ouve ruídos indistintos, ficou-lhe apenas “um resto de vida”.

Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa, Ocidente, 1949 (1.ª ed.).


Um dos documentos mais interessantes do espólio de Fernando Pessoa (1888-1935) é sem dúvida o manuscrito de O Guardador de Rebanhos, autógrafo assinado por Fernando Pessoa e Alberto Caeiro, um dos heterónimos do poeta. Talvez não seja a mais importante peça do espólio, mas, como diz Ivo Castro no prefácio à edição deste texto, "por servir de sede completa a um dos seus grandes ciclos de poemas, por pôr em causa a versão do próprio Pessoa sobre a génese dos heterónimos, por fornecer amplos meios de corrigir o texto-vulgata de O Guardador de Rebanhos, por documentar reveladoramente os métodos de trabalho e de criação textual do poeta e, finalmente, por se ter conservado na obscuridade nos últimos quarenta anos, desconhecido do público e da maioria dos pessoanos, - por esses motivos todos o presente manuscrito [...] merecerá sem dificuldade ser considerado uma das joias da coroa".
Na verdade, este manuscrito parece à primeira vista confirmar esse "dia triunfal" a que se refere Pessoa na famosa carta a Casais Monteiro (13 de Janeiro de 1935) sobre a génese de O Guardador de Rebanhos e do seu heterónimo Alberto Caeiro:
"Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título - 'O Guardador de Rebanhos'. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive."
O Guardador é um ciclo de 49 poemas, que foi publicado na íntegra pela primeira vez em 1946, no volume intitulado Obras Completas de Fernando Pessoa. III. Poemas de Alberto Caeiro (Lisboa, Ática, 1946). O presente manuscrito inclui estes 49 poemas, escritos no mesmo tipo de papel, com o mesmo tipo de instrumento de escrita e a mesma caligrafia. Esta "unidade de escrita, de local e de tempo de conceção" parecem sugerir que este ciclo de poemas foi escrito de um jato e "em êxtase". Mas uma leitura atenta do manuscrito permite mostrar que assim não é.
Em primeiro lugar, a letra caligráfica, muito igual e desenhada, não parece ser compatível com uma escrita inspirada e veloz. Em segundo lugar, em vez de um, temos vários instrumentos de escrita: foram utilizadas quatro canetas diferentes no corpo do próprio texto. E, por último, o grande número de emendas, feitas em diversos momentos, e utilizando sete materiais diferentes, desmentem "a suposição de ter o Guardador nascido com o texto em estado definitivo".
A encenação desse "dia triunfal" é ainda desmentida pelas várias dezenas de rascunhos e cópias intermédias conservadas no Espólio da BN. Estes documentos mostram que no processo de escrita do Guardador houve pelo menos três fases distintas: uma fase de rascunhos (versões existentes no espólio), uma fase de passagem a limpo (o presente manuscrito) e uma fase posterior de emendas (presentes neste manuscrito).
Outro aspeto a salientar diz respeito à datação. No final do manuscrito surge a data "1911-1912", com a mesma caneta utilizada na assinatura "Alberto Caeiro". No entanto, alguns poemas estão datados no final a tinta vermelha, a mesma tinta que é usada na assinatura "Fernando Pessoa", que vem a seguir à do heterónimo. Estas datas (entre Março e Maio de 1914) colocadas posteriormente no final dos poemas, parecendo ser as ficcionadas (a primeira que surge é a do famoso "dia triunfal"), são provavelmente as que mais se aproximam da realidade, se tivermos em conta as datas dos rascunhos existentes no espólio, de Março a Maio de 1914, embora algumas não coincidam. E se não coincidem, surge uma nova dúvida: serão também inventadas as datas dos rascunhos? Provavelmente não, mas em Pessoa nem sempre é fácil distinguir ficção de realidade.
O interesse da divulgação deste documento reside ainda no facto de, tendo sido ele a fonte do texto publicado pela Ática (para os poemas não publicados em vida), permitir ao leitor o confronto entre o texto publicado e o original que lhe serviu de base. A Ática optou pela lição inicial e não pela versão final, que é considerada a lição mais autorizada por ter sido a única que o autor não repudiou, embora, na verdade, nunca se possa vir a saber se a repudiaria mais tarde. Mas um texto poético é sempre um texto aberto, e ao editor cabe apenas a obrigação de respeitar a última vontade do autor.
Manuela Vasconcelos
BIBLIOGRAFIA
Castro, Ivo (1981). "Para o texto de 'O Guardador de Rebanhos'". Sep. das Actas do Colóquio 'Critique Textuelle Portugaise' (Paris, 20-24 Out. 1981). Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, pp. 319-328.
Castro, Ivo (1982). "O corpus de 'O Guardador de Rebanhos' depositado na Biblioteca Nacional". Sep. da Revista da Biblioteca Nacional, 2 (1), 1982, pp. 47-61.
Pessoa, Fernando (1986). O manuscrito de O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro. Edição fac-similada. Apresentação e texto crítico de Ivo Castro. Lisboa: D. Quixote, 1986.
Pessoa, Fernando (1946). Poemas de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática, 1946 (Obras Completas de Fernando Pessoa, III).



Alex Howitt:











 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 

                         

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