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terça-feira, 19 de julho de 2016

O clube dos poetas negros






Quase nenhum dos participantes tem livros publicados. Cruzaram-se no Djidiu, iniciativa do áudio blogue Afrolis, espécie de Clube dos Poetas Negros. É lá que dizem a sua poesia ou contam as suas histórias partilhando esta ideia do que é ser afrodescendente ou negro em Lisboa.






Março, último domingo do mês. É um dos raros dias de Sol nesta Primavera tardia em Lisboa. Às mesas do bar Tabernáculo (R. de São Paulo) espalham-se jovens e uma ou outra criança. Começam, pouco a pouco, a tomar a palavra para dizer poesia, dirigem-se ao centro da sala, olham para uma “plateia” cheia.
São homens e mulheres negros que se juntam para um momento de partilha. Trazem sobretudo material seu: poemas, histórias, apontamentos. Uma dupla de irmãos, Carlos Graça e Carla Lima, faz uma performance: ele diz a sua poesia, ela canta gospel. Encenam a intervenção. Os temas para este dia são macro e micro agressões. A maioria não fugirá da questão e relata experiências em nome próprio. Carla Fernandes, Alexandra Santos, Santiago d’Almeida, Michel Té (Te Abi Pequêrs Té), Luz Gomes, Apolo de Carvalho são alguns dos que trouxeram as suas palavras. O ambiente é descontraído, de festa mas também de intimidade.
Junho, último domingo do mês. Estamos na Graça, em Lisboa, na Casa Mocambo, um espaço que serve cozinha africana e tem recebido algumas iniciativas culturais. As mesas são ocupadas por jovens, alguns estiveram na sessão de Março, mas há várias caras novas, e há também pessoas mais velhas. O tema é a família, e vão contar-se histórias de trabalhadoras domésticas ou falar de relações amorosas. Histórias, de novo, em nome próprio ou com personagens inventadas  que podiam muito bem ser reais.
Quase nenhum dos participantes tem livros publicados. A maioria nem sequer tem um blogue ou site onde disponibiliza as suas criações porque geralmente aparecem e dizem poemas escritos de propósito para o evento, poemas que estavam na gaveta, poemas que estavam encravados.
Entre Março e Junho aconteceram mais duas sessões de Djidiu “a herança do ouvido”, uma iniciativa da Afrolis – Associação Cultural onde participam poetas e contadores de histórias, ou quem esteja interessado na produção literária africana e negra. É sempre no último domingo do mês. As pessoas inscrevem-se e intervêm. Objectivo? “Produzir conhecimento sobre a própria realidade”. Porque a “experiência de vida como africanos / negros no mundo tem particularidades”, define-se.
O Djidiu surgiu depois do Ciclo de Cinema Documental África Positiva, organizado na Casa do Brasil, em Fevereiro, também pela Rádio Afrolis. Criado em Abril de 2014, como aúdio blogue, o AfroLis – que agora é também uma associação – tem por missão divulgar a diversidade dos afrolisboetas.   
A passagem para o convívio surgiu porque queriam conhecer quem estava a aderir ao blogue, conta Carla Fernandes, a mentora. “Quisemos dar mais e receber mais”, explica, sentada numa das mesas do Tabernáculo, o local onde aconteceu o primeiro Djidiu público.
A Afrolis reflecte sobre as experiências dos afrodescendentes negros em Lisboa através da rádio porque “é bom ter exemplos positivos, que é o que o audioblogue faz”. Mas “também é bom que as pessoas reflictam sobre a sua própria realidade”, e que o façam através da poesia, de contos ou de reflexões mais próximas da crónica explica. E é isso que se pretende também com o Djidiu.
O tema do primeiro Djidiu, as micro e as macro agressões, surgiu para dar uma visão global da experiência dos afrodescendentes negros em Lisboa e reflectir de forma mais profunda sobre situações de racismo. Seguiu-se o tema da revolução e liberdade em Abril. Em Maio a temática foi África, Junho foi dedicado à família – segue-se o tema da beleza em Julho. O que são micro e macro-agressões? Um exemplo de micro agressão é pedirem para tocar e agarrar nos cabelos afro, diz Carla Fernandes, “porque o que está por detrás disso é a possibilidade de tocar no outro”, fazer dele “mais ou menos um objecto”, explica. “É uma coisa mínima. Mas quando se nega esse acesso, a micro-agressão pode-se tornar uma macro-agressão: ‘porque é que não me deixas tocar? Agora vou tocar mesmo, se não deixares vou-te bater…’”
A apoiar esta actividade está o Grupo de Teatro do Oprimido, por isso todas as quartas-feiras o grupo reúne-se para trabalhar textos e discutir os temas. Levam autores como Noémia de Sousa ou Toni Morrison, autores de língua portuguesa e não só. Todas as sessões para o público são em locais diferentes porque a ideia é “mostrar que [nós, os negros] podemos ocupar os espaços em Lisboa”, diz. “Por isso é bom girar para nos habituarmos a entrar e a frequentar esses espaços”. 




ENRIC VIVES-RUBIO

Carla Fernandes: A mentora da Afrolis

“Basta/ Quero mudar de casta/ Quero sair desta vida que se arrasta/ posso? Posso agora dizer-te algo, patrão?” O poema Basta é da mentora da Afrolis. Falando agora como poeta, Carla Fernandes sente que a “a experiência de opressão”, “um historial manchado por humilhação, por exclusão” une este Clube dos Poetas Negros. “É uma experiência sofrida de formas diferentes, mas quando a trazemos à tona toda a gente tem um sentimento mais ou menos semelhante. Nem sequer são precisas muitas palavras.”
Jornalista e tradutora Carla Fernandes nota que a maioria do que é levado para “o palco” do Djidiu são “experiências transformadas em texto”, “não necessariamente poemas”. Há quem venha da spoken word, do hip-hop, da tradução, do contar histórias – tudo maneiras diferentes do que pode ser poesia.




A pouco e pouco, o Djidiu começa então a formar-se como um Clube de Poetas Negros, que aliás era a ideia inicial do projecto. Apesar de haver pessoas brancas, o público é predominantemente formado por pessoas negras. “Há uma identificação com as temáticas e com os textos. Acho que faz sentido sublinhar o ‘poeta negro’ – se bem que sinto que há dificuldade em algumas pessoas em fazê-lo, sublinham mais a parte do africano. Mas o negro é a experiência comum a todos nós.”
Afrodescendente? Negro? Que palavra usar? Nenhuma é consensual, nota, mas afrodescendente “é um termo que tem potencial para ser uma categoria política, até porque é um termo que sai de um historial de luta”, acredita. O importante é “ir para a frente” com as questões comuns, acredita. A verdade é que é muito difícil separar a imigração da questão racial, pelo menos em Portugal. Há muita gente que nasceu em Portugal e é tratada como imigrante, há muita gente que se identifica mais com o país de origem dos pais, há muita gente que rejeita ser visto de outra forma que não como português. A nível institucional, a associação deparou-se com grandes dificuldades em concorrer a apoios, justamente por não se afirmar como uma entidade dedicada a imigrantes  não cabe, assim, nos apoios à imigração.
Nascida em Angola, veio para Portugal com a família quando tinha dois anos. Criou o formato de áudio blogue com entrevistas semanais para dar voz aos entrevistados, fazê-los falar na primeira pessoa: “porque tantas vezes não falamos por nós”. 
Ela sente que se está a criar uma rede que não tem só a ver com a poesia, “o que é bom porque temos que criar espaços seguros para falar da experiência”. “Isso é muito importante, às vezes as pessoas não valorizam. No primeiro Djidiu uma pessoa verbalizou isso: ‘tenho este poema há anos, já fui a várias sessões de poesia, e nunca consegui ler porque pensava sempre que não era o lugar. Mas aqui sinto-me à vontade’, disse. E eu pensei: ‘é para isto que o Djidiu serve, para criar espaços seguros para nos podermos exprimir à vontade.”
De facto, não há assim tantos espaços como este. Carla Fernandes sentiu que era mesmo necessário criar algo assim. “Vai-se a muitos eventos, até sobre racismo, e quem fala mais são as pessoas brancas. E tu pensas: ‘então as pessoas que mais sofrem não estão a verbalizar porquê?’ Faltam espaços seguros. Não é para separar. É por uma questão de empatia, de olhar de reconhecimento.”
Entre 2008 e 2013, Carla Fernandes esteve ausente de Portugal, na Alemanha, e quando regressou notou uma grande diferença na “afirmação da identidade negra” em Lisboa, por isso acredita que este tipo de espaços e iniciativas estão e vão continuar a aumentar. “Ainda está numa fase inicial mas tem muito potencial”. As redes sociais ajudam muito: “Quanto mais acesso há ao que se passa noutros territórios, como Itália, Espanha, etc, onde há grupos que pensam nestas questões, mais se cria a noção de que não estamos sozinhos”.




ENRIC VIVES-RUBIO

Carlos Graça e Carla Lima: A dupla de irmãos

O Djidiu aproximou ainda mais os irmãos Carlos, 29 anos, e Carla, 27 anos. Nunca tinham trabalhado juntos. Carlos começou a escrever rap ainda novo com um MC da zona onde vivia, em Moscavide, Lisboa. As letras tinham sobretudo a ver com os problemas do bairro, com a realidade à sua volta. Por razões profissionais, parou. Os dois sempre ouviram música de Cabo Verde, de onde são os pais, e foram sendo influenciados pela mãe que escrevia. Carlos não podia ser rapper, mas podia dizer poesia falada. É um dos fundadores do Djidiu. Quando o Djidiu começou, convidou a irmã a juntar a sua voz de gospel.




Carla Lima: “Sempre fomos muito ligados à terra [Cabo Verde], era muito presente em casa. E sempre tivemos aquela coisa ‘de onde a gente vem’. Comecei a despertar para a questão de ser negra, africana, por causa do meu irmão. Via-o a estudar, interessei-me também e percebi que fazia sentido. Participei no primeiro Djidiu com a parte de música que adaptámos aos temas. Nunca tinha trabalhado com o meu irmão. Adorei, foi das melhores coisas que fiz até hoje”.
Depois dessa estreia, Carla começou a escrever a sua poesia. “Escrevo sempre algo relacionado com África e com ser negra. O Carlos tem muito mais conhecimento da história. Eu uso sempre a minha experiência porque assim tenho a certeza do que estou a falar”.
A ideia da Afrolis era dar voz a quem escreve e partilhar “o que é isto de ser negro, o que é ser africano”, lembra Carlos Graça. Vai vendo as pessoas que frequentam o Djidiu a consciencializarem-se de algumas situações de discriminação e a reagirem quando antes não o faziam. Nas sessões das quartas-feiras conversam muito sobre os temas, por vezes fazem os poemas em conjunto. Querem um ambiente familiar.
No tema de Julho, os padrões de beleza, a ideia é questionar se “enquanto negros, realmente temos que seguir um padrão de beleza europeu”, por exemplo. “Sempre achei que era feia”, diz Carla Lima. “Tenho a pele clara, tenho os olhos claros, tenho o meu cabelo claro e mesmo assim nunca me senti integrada nos padrões de beleza”, confessa.
O Djidiu surgiu da necessidade de criar “hábitos de pronunciação”, define. “Fala-se muito de África e dos negros mas não de nós para nós”. Carlos: “Tem muito a ver com criarmos o nosso espaço. Muitas vezes o pessoal pergunta: ‘por que é que os media não nos representam’, ou X e Y não nos representam? Se temos capacidade, então vamos criar instrumentos. Por isso o ciclo de África positiva: se os media nunca dão uma imagem positiva de África, então vamos mostrar nós para contrabalançar um bocado.” Carla Lima completa: “Não é fantasiar, nem romantizar, mas mostrar o que há para as pessoas pensarem pela própria cabeça”.




ENRIC VIVES-RUBIO

Michel Té: O poeta sem idade

Está em pleno período de exames, e recebe-nos entre estudos e exercícios na Faculdade de Arquitectura, da Universidade de Lisboa. O edifício fica no alto da Ajuda, com vista para o rio Tejo. Lá dentro, imensos estiradores e desenhos, jovens conversam e mexem em cartolinas e papel.




Ele anda sempre com a fotografia da mãe ao peito. Michel Té, ou Te Abi Pequers Té (na foto de capa), é um dos que está ligado à fundação do projecto Djidiu – natural da Guiné-Bissau, foi ele quem sugeriu o nome, por causa do enquadramento que estavam a querer dar à plataforma. “Djidiu é crioulo da Guiné-Bissau. O papel do Djidiu é muito vasto. Queríamos intervir e encontrei na palavra a identidade do grupo: Djidiu não é aquele que se limita a contar a história. É poeta, historiador, visionário político, contador de histórias, recita versos. Músico, filósofo. Escolhemos intervir pela oralidade, que é a função do Djidiu, uma biblioteca falante. Também queremos transmitir pela oralidade aquilo que sabemos”.
Este poeta não data as coisas que faz, “porque posso pensar hoje e escrever daqui a um ano”, então nesse caso, de que data é o poema? Já participou em um par de antologias. Também não nos quer dizer a idade: “Quando é que eu nasci? Quando saí da barriga da minha mãe? Quando estava no útero? É necessário para a sociedade mas é uma banalidade.” Para ele, “uma das coisas mais brilhantes no Djidiu é a partilha”.   
Se Nelson Mandela morresse era bem feito é um dos seus poemas. "Porque a morte gosta de ausentar ânimas e de causar sofrimentos Porque Nelson Mandela gosta do sossego e da liberdade Porque Deus é perfeito e conhece todo o nosso gosto Se Nelson Mandela morresse era bem feito Porque um BOM-GRANDE LIDER merece toda eternidade"




ENRIC VIVES-RUBIO

Apolo de Carvalho: E as armas intelectuais do Djidiu

Apolo de Carvalho tem 26 anos e trabalha em restauração. Está a tirar uma pós-graduação em Estudos Estratégicos e de Segurança e tem a ambição de fazer doutoramento em breve. Chegou à Afrolis através de Herberto Smith, o fotógrafo do aúdioblogue.




Escreve em português e em crioulo de Cabo Verde, onde nasceu. “Renascimento africano” é um dos seus poemas: “Acordai, povos e nações/ Despertai e recordai as vossas grandes civilizações/ Mergulhai nús, livres e sem temor (…) Parti em safari de introspecção tal iniciante destemido”.
Viveu em França, e foi lá e em Portugal que descobriu a “África de Cabo Verde”. Escreve sobre a sua história e a necessidade de regressar às origens, e cada vez mais prefere dizer os seus poemas em crioulo cabo-verdiano. “Não existia um espaço como este, que convoca todos os afrodescendentes e africanos a contarem a sua história”, comenta sobre o Djidiu. “É importante porque acaba por ser um momento de vivência”, diz. É “como se fosse aquela grande árvore em África em que os anciões e os novos iam falando”, compara. “Acabamos por levar coisas e discutir temas polémicos – o mais interessante é que conseguimos desconstruir as nossas ideias de forma super harmoniosa.”
Os encontros têm ainda outra função: dar argumentos para a defesa de situações de racismo. “Arma-nos intelectualmente, dá-nos armas para saber como responder e defender-nos de situações dessas”, comenta. Depois há muita gente que não é africana que vai ao Djidiu, ouve e passa a palavra. “O mal de muitas associações africanas é que se fecham entre os membros, temos a mesma luta mas parece que estamos acantonados e esquartejados. A Afrolis procura trazer pessoas.”




ENRIC VIVES-RUBIO

Alexandra Santos: Poeta em partes

“(…) Nesta linguagem de partes, que parte as pessoas em bocados, metades, pedaços, como se as pessoas não fossem por inteiro. Eu também sou negra porque há parte de mim que vem da negritude, sou parte de algo que me querem fazer acreditar não ter lugar em mim”.
Escreveu poemas como este, Partes, que leu no Djidiu. E apesar de regularmente o fazer, é uma descrente na sua obra, nem se se considera poeta. Identifica-se mais com a palavra de intervenção, com a poesia falada, com slam.
Alexandra Santos, Alexa, 29 anos, tem um blogue Queering Style, “espaço queer feminista que tem como missão a visibilidade de discursos e de identidades variadas” – começou como um blogue e é hoje um site e “sonho tornado realidade”. Tem várias colaborações e vertentes, da escrita à imagem.




No Centro Comercial Vasco da Gama, em Lisboa, perto do local onde trabalha, Alexa diz-nos que o Djidiu é um espaço “muito importante” para fazer sentir às pessoas que podem ter voz, que há outras pessoas como elas, para sentirem “que não estão sozinhas no mundo”. Especialmente por ter um lado “genuíno” e despretensioso que faz quem lá vai sentir-se à vontade para levar algo que está menos acabado ou que não considera “bem poesia”, por exemplo.
A afirmação de um Clube dos Poetas Negros importa, defende. Sobretudo porque “dentro da nossa negritude – a minha mais clara do que outras – temos dificuldade em encontrar pessoas com quem nos identificamos, pelo menos no meu espaço a maioria das pessoas não são negras”.
Dá o exemplo do cabelo, e do facto de “ser assediada” muitas vezes por causa ele, uma experiência que é facilmente e rapidamente partilhável e compreendida por quem passa por ela. Falar sobre o tema, escrever, e intervir é dar voz a estas questões e aos próprios negros, diz. “Tudo isto é criação de espaço e movimento. Nesta construção de comunidade – as coisas acontecem-me a mim e não só a mim – o Djidiu é importante. E é importante nas suas especificidades. Nem todos os jovens negros se irão identificar com um espaço como aquele – mas é bom que exista, e há outros que se identificam, e por isso pode-se transformar numa espécie de família.”
Alexa tem mais poemas sobre a questão racial. É um tema que a faz reflectir através de vários pontos de vista. Por ser “mais clara” sente “discriminação dos dois lados”: sendo que “não se pode chamar discriminação quando um grupo minoritário (negros) não se sente à vontade com alguém que tem obviamente mais privilégio (brancos)”, defende. A negociação “que faço neste corpo” é “às vezes de muito esticar” e constantemente de “educar e ver onde me encaixo”, confessa. “Não sou branca efectivamente, mas depois também não sou negra efectivamente. Tenho constantemente que me explicar. Quando as pessoas dizem: ‘ah, olho para ti e não te vejo como mulher negra’. E em espaços de mulheres negras me dizerem: ‘não és branca? Já vi muitas mulheres brancas com o teu cabelo’. E a minha negritude não é o meu cabelo.”
São estas situações, quando a angustiam, que se tornam motor para escrever: “Entendo as tensões que a minha própria palavra traz
A mãe, mais escura, cabo-verdiana, não se posiciona como mulher negra – ou pelo menos Alexa nunca fala desta questão nem com a mãe, nem com as irmãs (é trigémea). “Porque não tenho mais amigos negros? É uma busca. E busca também para quebrar estereótipos que tinha na minha cabeça. Mas é um movimento consciente. Sou de Loulé, e durante muito tempo éramos as únicas miúdas mais escuras da turma, tanto que o nosso nome na escola eram as pretas: a preta 1, a preta 2 e a preta 3. Houve todo um exercício da minha parte para desconstruir isto – coisa que as minhas irmãs nunca fizeram.”
Perguntam-lhe qual é o problema de se identificar como uma mulher branca. Ela responde: “A questão é que o meu corpo não é branco. Isto custa explicar. Há dias que estou com vontade, outros em que só quero que a outra pessoa compreenda!”




ENRIC VIVES-RUBIO

Luz Gomes: A poeta do corpo

Para o Djidiu sobre a revolução e liberdade Luz Gomes criou um poema que se chama lIbErdAdE RevOlUcIOnÁrIA dO CoRPo. Lê-se assim: “Não acredito em nenhuma liberdade revolucionária que não passe pelo meu corpo de menina-mulher da pele preta… Que não venha das minhas entranhas de vida sanguínea… (…) Não acredito em nenhuma liberdade revolucionária que não poetise a reinvenção fragmentada de cotidianos do meu corpo de menina-mulher da pele preta...”
Brasileira do Recôncavo baiano, a viver em Portugal há dois anos, Luz Gomes está a fazer um doutoramento em museologia sobre galerias de arte que trabalham com artistas angolanos em Lisboa. Em quase todos os espaços é confundida com uma africana. É uma questão “perversa”, considera: as pessoas não a associam ao estereótipo da brasileira e “olham para o meu fenótipo e atrelam a África”.  




Leitora de escritores como Manoel de Barros, Anaïs Nin, Odete Semedo, Toni Morrison, Rainer Maria Rilke, Pablo Neruda, é autora de um blogue que se chama Etnografias poéticas de mim. Tem ido aos encontros do Djidiu desde o princípio, com alguns intervalos, e lá sempre leu os seus textos. “Acredito no Djidiu como espaço importante nessa discussão que não é simplesmente o texto, mas esse corpo que fala – eu sempre penso a partir do corpo. Porque todos os processos de opressão que a gente sofre vêm pelo corpo: é o corpo que sente física ou emocionalmente. É interessante pensar nos corpos negros nesses espaços do centro [de Lisboa], falando poesia e de questões que atingem a população negra”.
Não há maneira de não comparar a questão racial em Portugal e no Brasil, nota. Algumas coisas são comuns. “Sempre nos vêem como bons bailarinos, bons músicos, mas a escrita nos é cara. A gente nunca está sendo colocada nesse patamar – e quando escreve, a qualidade do trabalho é sempre questionada.”
Por isso o Djidiu é importante para trazer estas questões, bem como a liberdade de, como negra, falar da questão do racismo mas também de amor ou de outra coisa qualquer – algo que Luz Gomes faz na sua poesia, que anda muito à volta de temas como o amor e a mulher. “Não consigo pensar nessas questões fora do meu corpo, porque quando sou discriminada é por causa do meu corpo.”
Se por um lado não há forma de pensar Lisboa senão como um lugar onde há música feita por africanos e seus descendentes, noutros espaços nota que é a única negra. “Tem uma população negra no centro que circula mas não está presente em alguns espaços. Ou tem essa população na música mas não na poesia.”
Djidiu pode ser espaço onde as pessoas se sintam à vontade e falem  de forma aberta. “A gente tem que se ver em diferentes espaços: eu não tenho que abrir o jornal e ver a população negra atrelada à criminalidade. A gente quer se ver de outras formas e a partir dos nossos olhares”, continua.
Em Portugal e Brasil os negros têm que procurar um espaço, e muitas vezes isso é “mal interpretado”, continua. As pessoas dizem “a arte é para todo mundo”, não se deve separar. “Mas se os indivíduos na sociedade não são tratados de forma igual, se a mulher não é tratada de forma igual, se negro não é tratado de forma igual, como me quer convencer que a produção dessas pessoas será vista de forma igual?”




ENRIC VIVES-RUBIO

Santiago d’Almeida Ferreira: Artivista da negritude e do feminismo

Naquela tarde de Março do primeiro Djidiu de que Carla Fernandes falava, foi Santiago d’Almeida Ferreira quem tomou a palavra no palco e desabafou que já tinha estado noutros encontros literários mas nunca tinha se tinha sentido à vontade para ler o seu Foge do Bandido. Ali leu: “Queres? Queres mesmo? Queres mesmo tirar me a pele? Escaldar-me a cor, e pelar me a voz? Queres mesmo que seja escuro, negro, preto e fusco? Queres que corra, tente fugir? Que me coce com palha-de-aço e beba água das poças de óleo que a terra derrama?”
Até há pouco tempo não se considerava poeta. Mas no blogue Conjecturações Desmielinizantes podemos ler vários dos seus poemas. Nem todos falam das questões da negritude. Santiago d’Almeida Ferreira, 27 anos, nascido em Viseu diz ter sido o primeiro português a admitir que é intersexo – algo a que o senso comum chama “erradamente” de “hermafrodita”. “O intersexo é um espectro muito grande”, e não “é apenas a genitália”.




A viver há dois anos em Lisboa, é artivista – um artista e activista pelo anti-racismo e feminismo. Foi bailarino, coreógrafo, trabalhou em restaurantes e está neste momento a estudar Antropologia. Co-fundou em 2015 a sua associação, Acção pela Identidade, que se dirige à defesa e estudo da diversidade de género e de características sexuais, incluindo a experiência das pessoas trans e intersexo, cruzadas com questões de raça e etnia, por exemplo. “Trabalhamos na primeira pessoa, e isso significa que somos especialistas das nossas próprias causas”, diz. “É muito importante haver alianças entre comunidades, e a própria comunidade LGBT perceber que há pessoas negras – estamos a trazer essa interseccionalidade e fomos pioneiros nisso”. Isto porque também se depara com “bastante racismo no activismo LGBT dominado por pessoas brancas”, queixa-se.  
Desde sempre que sofre discriminação, desabafa. “O racismo sempre foi muito presente. Nasci em Portugal, o meu pai é de Angola e a minha mãe de Viseu e não fui criado com os meus pais biológicos. Na escola chamavam-me preto”.
No Djidiu encontrou muita gente com quem se identificou. Grande parte do seu background veio de África, por isso não tem problemas em se identificar como afrodescendente. “Por ter consciência que a minha pele era negra, diferente, essa questão esteve sempre presente nos meus textos. Não podia dizer noutras plataformas que sofri racismo no trabalho. Mas na escrita podia, de forma quase escondida, transmitir essa dor e sofrimento – hoje escrevo menos na base da dor e mais na base da reflexão”. De qualquer maneira, “está marcado no meu corpo ser inter sexo e ser negro, é uma pele que não dispo”.
No Djidiu identificou-se mais com os poemas que falavam sobre a actualidade. Nota que ainda “existe uma grande necessidade de falar sobre racismo”. “Estamos a querer falar, a querer gritar, a dizer: ‘Hey, temos andado aqui, porque não estamos a ter o mesmo tempo de antena?’ Senti isso. Estávamos todos a querer dizer a mesma coisa, porque foi isso que eu fui fazer. Há um espaço para eu falar. Enquanto afrodescendentes estamos nesse momento do ‘grito’ e de querer falar.”

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