José Maria de Aguiar Carreiro. Revista GROTTA n.º 1. Publiçor/Letras Lavadas Edições, 2016
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Chaminé de “mãos postas” e cimo de uma empena de casa de habitação, ilha da Graciosa, séc. 20
http://www.inventario.iacultura.pt/graciosa/santacruz-fichas/41_43_43.html
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TRINCAR A TERRA
Não me são estranhos estes lugares
as empenas brancas
as chaminés de mãos postas
e uma gaivota bem junto aos olhos.
Não me é estranho este basalto
o arranjo dos minerais
o paladar da terra
um mundo inteiro volvendo às mãos
as minhas mãos assassinas.
Caeiro, remove a miopia do meu olhar
diz em tua voz a vontade das maçãs golpeando os
olhos
diz esse alerta sobre a fruteira
o pão verde
o homem hábil
diz
olha a água e a carne na tua cabeça
o pano cru roendo
o empedrado da rua.
Acorda-me, David Copperfield.
José Maria de Aguiar Carreiro
Revista GROTTA n.º 1. Publiçor/Letras Lavadas Edições, 2016
PIROTECNIA
O mundo é nosso, dizes. E eu acredito
um pouco. Acredito que é possível acreditar.
Nesse mundo pilotaria aeronaves, por certo,
desdenharia reinados em sua barbárie ancestral,
faria muita exaltação nas gáveas e nos balões.
Compra-me um lápis, meu amigo, compra-me
um lápis chilreante que eu cantarei de melro.
O mundo corre assim, dizes, rindo brejeiramente,
abrindo o piloro com uísque e rum com Coca-Cola.
Corre assim, pois é. O mundo é uma bosta.
O que eu vejo. Um enorme prato empoeirado,
um rolamento. Oh meu bem, nossos olhos rebimbam
e fazem rataplã. Retroam em torno da voz.
Alteram-se nos tempos as baladas como gritos
próprios de animal.
Vou sentar-me um dia inteiro a ver televisão,
a comer bolos. Engordar. Angustiar-me.
Que fizeste, senhor, que te não entenda
tenho os alimentos a estragar-se no frigorífico
tenho os espíritos um pouco inquietos
não sei sequer se tenho algum sentimento visceral.
Um ódio.
José Maria de Aguiar Carreiro
Revista GROTTA n.º 1. Publiçor/Letras Lavadas Edições, 2016
NADA
A mulher do ferreiro aguarda um sinal
demorado nas antecâmaras da morte.
Quem visita e quem é visitado?
Ecos, perceções vagas reificam a estação
enquanto o corpo, desgarrado,
mudável carne entregada,
vai cortando os laços com que se demora.
Qualquer compreensão antes descrita ter-se-á
apagado,
não mais diremos: agora é, agora está em
substância.
Que a última luz com o ser no vago cosmos
parece ter-se dispersado. Ou fechado.
O agora é nosso, não dele, que sentimos o corpo
caído em nossas mãos. E questionamos
se sentirá o ferreiro ainda o que o prendia a nós
se estará em contínua atividade, como uma chama
ou se saberá do mais que há para além do espaço
por onde vagueia.
Então concluímos que nada há a que chamar eu.
A mulher do ferreiro mexe-se no seu desconforto.
Que o marido não está, embora ela o pressinta.
Ela mexe-se imaginando os dias idos.
A mulher do ferreiro joga a vida com a morte,
tacteia, louca, partes do marido,
quando ressonâncias se misturam com alucinações,
bocados dele com partes desintegradas de si,
mulher e esposa dedicada. Louca.
Por fim concluirá: nada há a que chamar meu.
José Maria de Aguiar Carreiro
Revista GROTTA n.º 1. Publiçor/Letras Lavadas Edições, 2016
Grota remete para as ribeiras e as entranhas das ilhas açorianas, onde se funda este gesto. “É a fonte, o início, o começo de algo líquido, mas intempestivo – que tudo arrasta vertentes abaixo”. As palavras, certeiras, são do vulcanólogo Victor-Hugo Forjaz. As grotas são como que misteriosas artérias, de beleza e perigos. Nomeá-las é falar dos Açores. Foi por isso que demos este nome à revista.
Grotta n.º 1, Ponta Delgada, Publiçor/Letras Lavadas Edições, novembro de 2016. Direção de Nuno Costa Santos, coordenação editorial de Diogo Ourique, design gráfico de Jaime Serra.
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O
reconhecido vulcanólogo Victor Hugo Forjaz assina o texto de apresentação da
revista de criação literária «grotta», dirigida por Nuno Costa Santos e
propriedade de Publiçor/Letras Lavadas Edições. E tudo bate certo!
Afinal, a
missão de um vulcanólogo também é dar nome às coisas, olhar o geo-mundo e as
suas manifestações e colar-lhes o nome que as singulariza e identifica perante
nós (no campo social, uma actividade aproximada talvez consista em «chamar os
bois pelo nome», embora com nuances que não cabe aqui deslindar). Além disso, a
literatura parte da linguagem e é de palavras que se ocupa Victor Hugo Forjaz,
«vulcanólogo no exílio», como se auto-designa. Mais precisamente, da palavra
grota, nome atribuído a ribeira, quando esta, a partir de determinada altitude,
se transforma num «rego longo, fundo ou muito fundo, abrupto, tenebroso (…)
longo e perigoso de saltar.» – nome dado pelos povoadores que, neste campo,
também foram rotuladores, por necessidade de organizar o mundo para que eram
atirados.
Ostentando
uma grafia arcaizante que reenvia simultaneamente a um tempo originário e à
língua italiana, grotta parece assinalar desde logo a sua vinculação a um
espaço físico, mas sobretudo cultural (veja-se a inscrição subtitular «arquipélago
de escritores»), sem se conter exclusivamente nele, abrindo caminho para outras
geografias, concretizadas, neste caso, pelo dossiê de poesia irlandesa. A
diversidade é, de qualquer modo, uma das marcas deste número 1, tanto a nível
de colaboradores, como de géneros e discursos.
Um breve
exercício de memória, e apenas referente a revistas de criação literária nos
Açores, levar-nos-á a «transeatlântico» (Companhia das Ilhas, direcção também
de Nuno Costa Santos) e, mais atrás ainda, a «Magma» (dirigida por Carlos
Alberto Machado a partir do Pico) e a «Neo» (uma iniciativa de John Starkey,
enquadrada no antigo Departamento de Línguas e Literaturas Modernas da
Universidade dos Açores). Ou seja, há aqui uma persistência em criar espaços de
expressão literária abertos a gerações diversas e a abordagens heterogéneas, e
em que diferentes culturas e proveniências linguísticas encontraram local de
acolhimento no meio do Atlântico norte. E o levantamento não inclui o
suplementarismo literário que desde os anos 90 recuperou a dinâmica de décadas
anteriores, superando-a mesmo nalguns aspectos, muito por esforço e obra de
Vamberto Freitas.
Por mera
coincidência temporal, encontrava-me ainda a ler este número de «grotta»,
quando me chegou o mais recente livro de ensaios de João Barrento, «A Chama e
as Cinzas». O último capítulo ocupa-se precisamente da situação da literatura
«em tempos de indigência» (uma expressão que remonta a Hölderlin), a sua
in-significação, a sua diluição na configuração global do mundo, num quadro
cujas causas hão-de encontrar-se, segundo o autor, numa «existência sem
memória» e ainda na «predominância dos paradigmas economicistas, pragmáticos e
vivenciais.», que afastaram do mundo social e cultural «o simbólico e a letra»;
ora, um caminho para combater este estado de coisas passa «pela insistência e
persistência na manutenção de espaços, nichos institucionais ou não
institucionais». Neste sentido, «grotta» resulta de mais um gesto de teimosia e
constitui, à sua maneira, um nicho de valorização da palavra e da sua natureza
simbólica, um espaço de manutenção da memória e da sua projecção num tempo que
sendo o nosso pode ser também o futuro. Nicho ou ilha, para melhor
contextualizarmos a metáfora. Mas as ilhas movem-se, também elas. E nem sempre
se deixam ir na corrente.
Urbano Bettencourt, suplemento Artes & Letras, Açoriano Oriental, 2016-12-25.
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