SÃO
TANTAS COISAS PARA PERDER
A
evitar: o constrangimento. Como se a amizade que me liga a um autor (neste
caso, Luís Filipe de Castro Mendes) me pudesse, ou devesse, impedir de escrever
sobre ele. Nem a amizade nem o ódio. Tenho procurado que a escrita se não mova
por afetos que não derivem da própria escrita. Daí a rejeição de frases deste
tipo: "odeia-me tanto que até escreve..." Puro engano. Odeio frases,
ideias, propósitos de fala, mas não odeio pessoas, não odeio ninguém, quando
escrevo sobre alguém. O mesmo em relação à estima, aos afetos antigos, às cumplicidades.
A amizade está antes, atenta, suspensa, mas suspende-se a si própria no limiar
do texto para se entregar ao puro exercício da leitura. E só depois regressa,
grata, reconhecida, comovida, para celebrar o facto de um texto ter sido
possível entre dois momentos de amizade.
2.
A evitar ainda: o reconhecimento precipitado de um gesto, ou do sentido que somos
levados a atribuir-lhe. Neste caso, o de Luís Filipe de Castro Mendes, no seu
último livro. O jogo de fazer versos (Quetzal Editores), que parece erguer-se
inteiramente apolado na intenção de regressar a uma poética clássica.
Assim,
aconselha-nos Castro Mendes a não tomar inteiramente à letra a recomendação de
Ezra Pound: "Make it new". Pois sim: "MAKE IT NEW – e que
inventaste?/ Os ritmos canónicos guardaste.// A rima pobre e a graça faceira/
de quem a poesia não se abeira// foram só uma pose na paisagem./ Depois de tudo
embalar, seguir viagem".
Donde,
evitar a pose do novo. Equiparada no poema-carta a Fernando Echevarria a
"mastigadas fórmulas sem ama/ sem dono nem senhor há tanto ano."
Poderíamos daqui retirar a convicção de que Castro Mendes se teria assumido
numa postura dita pós-moderna. Só um pormenor estraga a dedução: Castro Mendes
acredita, plenamente, numa crença sem falhas, na poesia como senhor absoluto,
soberano, impiedoso, no fausto dos seus cânones e preceitos. É até essa crença
que funciona aqui como pedra de escândalo. Onde outros escolhem uma estratégia
furtiva, para se não deixarem comprometer com o excesso de lirismo que nos
sobrou neste tempo de desertos (cf. Vasco Graça Moura), Castro Mendes prefere
um empenhamento integral no jogo de fazer versos, com a plenitude dos seus
códigos e convenções. Há portanto um movimento de retorno, e uma dúvida generalizada
em relação a tudo o que foi o aparato das vanguardas, e que hoje aparece como “poetar
sem cor e sem surpresa". Neste ponto Castro Mendes rompe com um dos
pressupostos da modernidade, que era o de um nó de solidariedade ativa entre a
vanguarda política e a vanguarda literária. É verdade que alguns já tinham
feito algo de semelhante quando procuraram na tradição de uma literatura reconstituir
o corpo verbal de um povo (de Aragon a Alegre, passando episodicamente por
algum Guillevic ou algum Carlos Oliveira). Só que em Castro Mendes essa
dimensão está ausente: corpo, sim, mas apenas o corpo da poesia, sem
transferências.
Contudo,
devemos abordar esta questão com algumas precauções. O que sinto como leitor
atento deste livro é que o regresso surge ao mesmo tempo como inevitável e
impossível. Regresse-se, sim, mas ao lugar de uma perda. A poesia, esta poesia,
é um trabalho sobre restos. Mais do que nunca a poesia de Luís Filipe de Castro
Mendes nos surge como um trabalho de luto ("Se nos morreu às mãos toda
utopia/ é que sobra em palavras a Poesia", e assim "poesia é o que
faço desses restos / que ficam nas palavras por mudar"). São tantas coisas
para perder!
3.
A grande tarefa do leitor consiste em tentar apreender até que ponto esta perda
inevitável se escreve no registo específico da enunciação deste livro. E também
da sua montagem. Não é paródia (daí a recusa das etiquetas pós-modernas). Mas não
é também necessariamente ironia. Há alguma distância no virtuosismo prosódico,
mas também um enorme comprazimento, que só acontece porque o autor acredita
numa ética da forma, mesmo quando essa forma é apenas a forma de uma ausência. Tudo
se perde, a começar pelo tempo, que é o lugar expansivo da ilimitada perdição.
Mas é precisamente porque tudo se perde que um verso se não pode perder. Donde,
um verso diz o que se perde num movimento íntimo que o desdiz. E o tom em que
este livro se grava em nós, o seu timbre e o seu humor, têm muito a ver com
este jogo, sério como nenhum mais, entre o dizer e o desdizer. Nem ironia nem
paródia. Antes o sentido benjaminiano da alegoria e das ruínas. E o registo
freudiano de "Unheimlich": não a presença do infamiliar, mas a
infamiliarização da presença, o que nela se desprende de nós ao prender-nos. "Nada
sabemos e de não saber/ é que acontece ser a voz inteira"
Daí
a dificuldade e alguma resistência que sentimos ao ler estes poemas. Porque
eles são-nos estranhos na sua recusa dos nossos atuais códigos de
reconhecimento, e nós deslizamos sobre a mecânica demasiado certeira da letra e
da literalidade do dizer, e somos tentados a deixar descair a atenção para o
andamento quase monótono das formas e a esquecer a densa engrenagem conceptual
que a letra sustenta. Ou a senti-los como um jogo em que o lúdico se sobrepõe a
tudo o mais. E isto apesar de um portentoso trabalho de montagem e composição
realizado pelo autor: a organização deste livro como uma espécie de malha de
textos, citações, alusões, traduções, retroversões, referências e
intertextualidades explícitas ou difusas, é absolutamente exemplar.
4.
A lembrar: que poetas portugueses, como Luís Filipe de Castro Mendes, falam de
Sarajevo: "Vivemos esta espécie de anos trinta/ com bandeiras e dor por
pensamento/·causas que a guerra torce num lamento/ e da desolação da matéria-prima//
O fumo além das terras percebido/ deixa-nos vaguear neste deserto/ feito pura
incerteza e desconcerto,/ dos sonhos da Razão perfeito olvido.// Demora-se
entre sombras a figura/ que vimos prender fogo nas areias / acesas num rumor de
noite escura.// Quanto custa esquecer as nossas ideias,/ quando vemos que o brilho
dessa cura/ resplandece nas mais dúbias bandeiras!"
Ou
como João Miguel Fernandes Jorge, nesse esplêndido livro que é "O Barco
Vazio": "Na Europa, se estivermos voltados para o norte,/ situa-se à
direita esse tão fundo pátio de/ chão cimentado por cadáveres. Corpos/
alinhados na sombra,/ superfície de
parede/ devorada, outono e inverno, pelo estéril/ salitre. Uma voz sobrevoa.
Ninguém/ conhece o profeta que/ a faz dizer a verdade e não ser acreditada.//
Sobrevive à guerra e vive o disfarce do seu grito/ num domínio da Bósnia. Voz
que gravou/ o que tinha sido obrigada a esquecer./ A terra possui o coração do açougueiro.
"
Em
véspera de eleições europeias, é útil que poetas o recordem.
“São tantas
coisas para perder”, crónica de Eduardo
Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público.
Sábado, 4 de junho de 1994, p. 12.
CARREIRO, José. “São tantas coisas para perder - Crónica de Eduardo
Prado Coelho sobre O jogo de fazer versos,
de Luís Filipe de Castro Mendes”. Portugal, Folha de Poesia, 29-10-2019.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/sao-tantas-coisas-para-perder-por.html