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quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Bach ou rap – crónica de Eduardo Prado Coelho




BACH OU RAP?

1. Voltemos à questão do "cultural". Repare-se que não é exatamente o mesmo que a "cultura". Podemos dizer que no nosso tempo existe uma verdadeira inflação do "cultural". Por outras palavras, assistimos hoje a um culto do "cultural". Isso não significa que se viva num espaço público onde a "cultura" tenha uma verdadeira função. Alguns – como vimos há pouco com José Saramago a propósito da cultura europeia e das capitais europeias de cultura – podem mesmo ter uma visão apocalíptica destas coisas, do estilo "quanto mais cultural menos cultura".
Neste plano, assistimos a dois movimentos mais ou menos complementares. Por um lado, começou-se a dizer que tudo é mais ou menos cultura. A moda, pois claro, também é cultura. O rock, evidentemente, é uma forma de cultura. A banda desenhada tem uma imensa importância cultural. E o rap, claro. Assim como a gastronomia. E há, como se sabe, uma tradição cultural que se desenvolve em torno do vinho – a cultura do vinho, se quiserem. Este processo visava acima de tudo contrariar as acusações de "elitismo" e atrair as camadas mais jovens, que apenas pareciam suscetíveis de reagir a formas mais ou menos massificadas de expressões de vida urbana. Os "graffiti", por exemplo.
O movimento contrário colocou a inevitável questão: entre uma canção rock e uma cantata de Bach não haverá diferenças? Ou então: entre um "video-clip" e um filme de Dreyer? Entre uma peça de "design" de Philip Stark e um quadro de Francis Bacon? Ou entre Guimarães Rosa e a letra de um samba? Intuitivamente, diríamos que sim. Será isto estarmos marcados por uma conceção da Cultura demasiado absoluta que pretende colocar a arte no lugar da religião? Será que a arte é um conhecimento superior a todos os outros? Se, no plano teórico, assistimos hoje a releituras mais ou menos severas dos textos da tradição romântica, se muitos põem em causa a legitimidade do "sublime" kantiano para proporem a visão desdramatizada do prazer e do gosto do século XVIII, se alguns se lançam com entusiasmo numa verdadeira desmitificação do "estético" (que vai de leitores analíticos de Nelson Goodman até marxistas recauchutados como Terry Eagleton), isso significa que se procura pôr em causa todas as perspetivas "elitistas" que preferem Bach ao rap.
2. Um texto recente de Yves Michaud, publicado no número de dezembro da revista "Esprit", e intitulado "Des beaux-arts aux bas arts. La fin des absoluts esthétiques – et pourquoi ce n'est pas plus mal", veio colocar a polémica em termos particularmente vigorosos. A intervenção de Yves Michaud é tanto mais significativa quanto parte de alguém que neste momento dirige a Ecole NationaIe Supérieure de Beaux-Arts em Paris. A questão que lhe tinha sido endereçada – pelo próprio diretor da "Esprit", Olivier Mongin – partia mesmo desse espanto: como é possível ter uma visão tão "desestruturada" da arte e estar à frente de uma instituição "estruturante" como é uma Escola de Belas-Artes?
Mesmo quando estamos longe de seguir Yves Michaud nas suas conclusões, temos toda a vantagem em lermos e analisarmos com atenção algumas das suas teses. Para Michaud – e este é o seu ponto de arranque –, não faz sentido falar-se num corte entre o público em geral e a arte contemporânea. Para ele, "se, com efeito, o grande público está hoje divorciado da arte conceptual ou da pintura simulacionista, consome avidamente jogos vídeo, filmes, discos compactos interativos, televisão e espetáculos coreográficos. Onde está o corte? Pode ser que ele esteja sobretudo na nossa representação do que deveria ser a relação do público com as artes de elite de que as artes visuais terão acabado por constituir no século XX um tardio paradigma".
Todos os raciocínios de Michaud partem de uma espécie da analogia entre o plano social e político e o plano artístico. Em todos estes domínios estaríamos a assistir ao fim dos absolutos: ninguém pode agora falar em nome do universal. Assim, "conhecemos hoje no domínio do gosto exatamente a mesma situação que conhecemos em política e no domínio social. Todos os nossos critérios de universalidade foram abalados e postos em causa, e nenhuma situação está garantida". Se uma sociedade democrática é uma sociedade estruturalmente dividida, devemos reconhecer, segundo Michaud, que "para o melhor ou para o pior, o efeito de democracia opera hoje também na cultura”. Isto coloca Yves Michaud numa interessante posição paradoxal: por um lado, recusa visceralmente todas as posições estilo Fumaroli, porque feitas em nome de uma conceção elitista da arte. Mas, por outro lado, embora seguindo Jack Lang no seu alargamento da noção de "cultural", afasta-se dele quando Lang pretende intervir através de uma política da cultura: em nome de quê?, pergunta Michaud.
3. Assim, "a 'grande' estética está sempre à procura das grandes experiências de rutura e de sublimação. É por isso que se mostra tão fechada às outras artes, e, em particular, às artes populares, é por isso que se mostra tão alheia à imensa gama de comportamentos e experiências estéticas que marcam a nossa vida, tão fechada à estética da experiência quotidiana". Donde, conclui o nosso autor, "devemos identificar as componentes variadas e diversas das experiências artísticas tendo em conta a sua diversidade antropológica assim como a sua universalidade, o seu carácter modesto, que tanto se manifesta nos prazeres banais e contudo requintados que nos dão as práticas populares como nas experiências sofisticadas que nos propõe a Grande Arte ou nas experiências aparentemente desesteticizadas que nos apresenta a arte contemporânea".
4. Deixo um pouco aqui as afirmações de Yves Michaud à laia de provocação para os leitores. Embora me pareça que elas têm debilidades óbvias, colocam problemas extremamente sérios no mundo contemporâneo.
Gostaria no entanto de alinhavar duas ou três observações. A sabedoria popular, que Michaud tanto aprecia, costuma dizer que mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo. Ao comentar o facto de alguns professores procurarem anexar a Escola aos seus gostos e preferências, facto manifestamente negativo, porque a escola deve ser prioritariamente feita pelos estudantes", Yves Michaud afirma: "Mesmo se tenho pessoalmente os meus gostos artísticos, de que são testemunho os prefácios que tenho escrito, esforço-me como diretor por mostrar uma imparcialidade a toda a prova – o que me valeu paradoxalmente por várias ocasiões a acusação de autoritarismo." Donde, embora não acredite no ponto de vista da universalidade, Michaud esforça-se por ter aquilo que Thomas Nagel chama "the view from nowhere” – algo que não existe, evidentemente, a não ser pelo pelo nosso desejo de que exista. Porque o ponto de vista de parte alguma não é a mesma coisa que a ausência de ponto de vista.
Uma segunda observação poderá ser formulada em termos de analogia. Embora todos nós reconheçamos a diversidade empírica das experiências de tipo erótico, todas elas legítimas, agradáveis e enriquecedoras, seremos no entanto incapazes de distinguir entre um simples "flirt", uma cena de sedução numa noite de festa, uma longa vida afetiva em comum e um amor louco? Por outras palavras, será que as grandes experiências de rutura afetiva e erótica nos afastam "elitistamente" da diversidade infinita das experiências eróticas? Bach e rap terão de ser a mesma coisa? Terá Bach de nos afastar do rap?

“Bach ou rap”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 5 de fevereiro de 1994, p. 12.



CARREIRO, José. “Bach ou rap – crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 23-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/bach-ou-rap-por-eduardo-prado-coelho.html


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