terça-feira, 29 de outubro de 2019

São tantas coisas para perder - Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre O jogo de fazer versos, de Luís Filipe de Castro Mendes




SÃO TANTAS COISAS PARA PERDER

A evitar: o constrangimento. Como se a amizade que me liga a um autor (neste caso, Luís Filipe de Castro Mendes) me pudesse, ou devesse, impedir de escrever sobre ele. Nem a amizade nem o ódio. Tenho procurado que a escrita se não mova por afetos que não derivem da própria escrita. Daí a rejeição de frases deste tipo: "odeia-me tanto que até escreve..." Puro engano. Odeio frases, ideias, propósitos de fala, mas não odeio pessoas, não odeio ninguém, quando escrevo sobre alguém. O mesmo em relação à estima, aos afetos antigos, às cumplicidades. A amizade está antes, atenta, suspensa, mas suspende-se a si própria no limiar do texto para se entregar ao puro exercício da leitura. E só depois regressa, grata, reconhecida, comovida, para celebrar o facto de um texto ter sido possível entre dois momentos de amizade.
2. A evitar ainda: o reconhecimento precipitado de um gesto, ou do sentido que somos levados a atribuir-lhe. Neste caso, o de Luís Filipe de Castro Mendes, no seu último livro. O jogo de fazer versos (Quetzal Editores), que parece erguer-se inteiramente apolado na intenção de regressar a uma poética clássica.
Assim, aconselha-nos Castro Mendes a não tomar inteiramente à letra a recomendação de Ezra Pound: "Make it new". Pois sim: "MAKE IT NEW – e que inventaste?/ Os ritmos canónicos guardaste.// A rima pobre e a graça faceira/ de quem a poesia não se abeira// foram só uma pose na paisagem./ Depois de tudo embalar, seguir viagem".
Donde, evitar a pose do novo. Equiparada no poema-carta a Fernando Echevarria a "mastigadas fórmulas sem ama/ sem dono nem senhor há tanto ano." Poderíamos daqui retirar a convicção de que Castro Mendes se teria assumido numa postura dita pós-moderna. Só um pormenor estraga a dedução: Castro Mendes acredita, plenamente, numa crença sem falhas, na poesia como senhor absoluto, soberano, impiedoso, no fausto dos seus cânones e preceitos. É até essa crença que funciona aqui como pedra de escândalo. Onde outros escolhem uma estratégia furtiva, para se não deixarem comprometer com o excesso de lirismo que nos sobrou neste tempo de desertos (cf. Vasco Graça Moura), Castro Mendes prefere um empenhamento integral no jogo de fazer versos, com a plenitude dos seus códigos e convenções. Há portanto um movimento de retorno, e uma dúvida generalizada em relação a tudo o que foi o aparato das vanguardas, e que hoje aparece como “poetar sem cor e sem surpresa". Neste ponto Castro Mendes rompe com um dos pressupostos da modernidade, que era o de um nó de solidariedade ativa entre a vanguarda política e a vanguarda literária. É verdade que alguns já tinham feito algo de semelhante quando procuraram na tradição de uma literatura reconstituir o corpo verbal de um povo (de Aragon a Alegre, passando episodicamente por algum Guillevic ou algum Carlos Oliveira). Só que em Castro Mendes essa dimensão está ausente: corpo, sim, mas apenas o corpo da poesia, sem transferências.
Contudo, devemos abordar esta questão com algumas precauções. O que sinto como leitor atento deste livro é que o regresso surge ao mesmo tempo como inevitável e impossível. Regresse-se, sim, mas ao lugar de uma perda. A poesia, esta poesia, é um trabalho sobre restos. Mais do que nunca a poesia de Luís Filipe de Castro Mendes nos surge como um trabalho de luto ("Se nos morreu às mãos toda utopia/ é que sobra em palavras a Poesia", e assim "poesia é o que faço desses restos / que ficam nas palavras por mudar"). São tantas coisas para perder!


3. A grande tarefa do leitor consiste em tentar apreender até que ponto esta perda inevitável se escreve no registo específico da enunciação deste livro. E também da sua montagem. Não é paródia (daí a recusa das etiquetas pós-modernas). Mas não é também necessariamente ironia. Há alguma distância no virtuosismo prosódico, mas também um enorme comprazimento, que só acontece porque o autor acredita numa ética da forma, mesmo quando essa forma é apenas a forma de uma ausência. Tudo se perde, a começar pelo tempo, que é o lugar expansivo da ilimitada perdição. Mas é precisamente porque tudo se perde que um verso se não pode perder. Donde, um verso diz o que se perde num movimento íntimo que o desdiz. E o tom em que este livro se grava em nós, o seu timbre e o seu humor, têm muito a ver com este jogo, sério como nenhum mais, entre o dizer e o desdizer. Nem ironia nem paródia. Antes o sentido benjaminiano da alegoria e das ruínas. E o registo freudiano de "Unheimlich": não a presença do infamiliar, mas a infamiliarização da presença, o que nela se desprende de nós ao prender-nos. "Nada sabemos e de não saber/ é que acontece ser a voz inteira"
Daí a dificuldade e alguma resistência que sentimos ao ler estes poemas. Porque eles são-nos estranhos na sua recusa dos nossos atuais códigos de reconhecimento, e nós deslizamos sobre a mecânica demasiado certeira da letra e da literalidade do dizer, e somos tentados a deixar descair a atenção para o andamento quase monótono das formas e a esquecer a densa engrenagem conceptual que a letra sustenta. Ou a senti-los como um jogo em que o lúdico se sobrepõe a tudo o mais. E isto apesar de um portentoso trabalho de montagem e composição realizado pelo autor: a organização deste livro como uma espécie de malha de textos, citações, alusões, traduções, retroversões, referências e intertextualidades explícitas ou difusas, é absolutamente exemplar.
4. A lembrar: que poetas portugueses, como Luís Filipe de Castro Mendes, falam de Sarajevo: "Vivemos esta espécie de anos trinta/ com bandeiras e dor por pensamento/·causas que a guerra torce num lamento/ e da desolação da matéria-prima// O fumo além das terras percebido/ deixa-nos vaguear neste deserto/ feito pura incerteza e desconcerto,/ dos sonhos da Razão perfeito olvido.// Demora-se entre sombras a figura/ que vimos prender fogo nas areias / acesas num rumor de noite escura.// Quanto custa esquecer as nossas ideias,/ quando vemos que o brilho dessa cura/ resplandece nas mais dúbias bandeiras!"
Ou como João Miguel Fernandes Jorge, nesse esplêndido livro que é "O Barco Vazio": "Na Europa, se estivermos voltados para o norte,/ situa-se à direita esse tão fundo pátio de/ chão cimentado por cadáveres. Corpos/ alinhados na sombra,/  superfície de parede/ devorada, outono e inverno, pelo estéril/ salitre. Uma voz sobrevoa. Ninguém/ conhece o profeta que/ a faz dizer a verdade e não ser acreditada.// Sobrevive à guerra e vive o disfarce do seu grito/ num domínio da Bósnia. Voz que gravou/ o que tinha sido obrigada a esquecer./ A terra possui o coração do açougueiro. "
Em véspera de eleições europeias, é útil que poetas o recordem.

São tantas coisas para perder”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 4 de junho de 1994, p. 12.



CARREIRO, José. “São tantas coisas para perder  - Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre O jogo de fazer versos, de Luís Filipe de Castro Mendes”. Portugal, Folha de Poesia, 29-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/sao-tantas-coisas-para-perder-por.html


domingo, 27 de outubro de 2019

Bilhete postal para Manuel Alegre - esta e outra crónica de Eduardo Prado Coelho



BILHETE POSTAL PARA MANUEL ALEGRE

1. Esta crónica devia, portanto, começar assim: "Meu caro Manuel Alegre, há muito tempo que não nos encontramos, seria boa altura, penso, para conversarmos."
O pretexto é simples. Na contracapa do seu último livro, os "Sonetos do Obscuro Quê", Manuel Alegre, ou as Publicações Dom Quixote, decidiram incluir o extrato de um verbete que eu redigi já há bastante tempo para o "Grande Dicionário da Literatura Portuguesa e da Teoria Literária", projeto inacabado, que partiu de uma iniciativa de João José Cochofel. Que diz o meu texto? Isto: "O poema não fica no papel: percorre as cidades e as aldeias, os opressores e os oprimidos, circula, gira incessantemente entre as pessoas e as coisas, o real e o possível. O poema, para Manuel Alegre, é um lugar, um espaço vivo. É também um espaço em que se prolonga a história política e poética de um povo."
A gente percebe que este texto tem uma data. Que importa? É uma data bem viva, estamos profundamente ligados a ela, e não tenho nesta matéria uma vírgula a alterar.


2. Mas gostaria, para já, de pegar nas coisas por outra ponta. Tive noutro dia oportunidade de ver a participação de Manuel Alegre no programa televisivo de Maria João Seixas, ao lado de AI Berto e David Mourão-Ferreira. Como lhe vem sendo habitual, Manuel Alegre pegou no tema de "uma nova censura" que se teria instalado em Portugal, que impediria que se falasse dos escritores portugueses, ou que imporia que deles se dissesse mal sistematicamente. Ao mesmo tempo referiu os malefícios de uma influência universitária no domínio da crítica, e a moda de um neoacademismo formalista.
Era sobre isto que para já gostaria de conversar. Primeiro, desagrada-me a expressão "nova censura", e vou explicar porquê. O conceito de "censura" está ligado a formas de silenciamento e opressão por motivos políticos, ideológicos ou morais, isto é, por um elenco eventual de razões que são exteriores à ordem especificamente artística. Se existem motivos de tipo estético que levam a que se fale menos, ou nem mesmo se fale, de certas correntes, isso pode ser lamentável, mas pertence a um outro registo da vida cultural: o do confronto e alternância entre correntes de teoria e sensibilidade estética. Ora esse confronto deve realizar-se no terreno do próprio combate estético. A expressão “nova censura" é um pouco demagógica porque vai buscar a memória magoada de outras situações e vai invocar motivações extraliterárias para intervir num combate que deveria ser estritamente literário. Além disso, a expressão "nova censura" parece supor uma espécie de "complot" organizado de um modo metódico destinado a calar as vozes incomodativas. Ora a ideia de "complot" é um truque um pouco estafado, que por isso mesmo exige uma longa série de provas inequívocas, e tem a "vantagem" fácil de impor no leitor, com custos reduzidos, a ideia não provada de que as vozes silenciadas são por isso mesmo "vozes incomodativas". Serão? Não estou certo.
Em segundo lugar, julgo que Manuel Alegre confunde três coisas. A primeira tem da minha parte um aplauso incondicional. Sim, estou plenamente de acordo com o facto de que se fala muito pouco de poesia nos jornais portugueses. Não apenas de poesia, mas de literatura em geral. O destino de um livro traça-se praticamente entre as páginas do "Expresso", as do PUBLICO, as do “Jornal de Letras", e as da revista "Ler", o resto quase não conta, ou tem muito pouco peso. Devemos reconhecer que é pouco, que as rádios e as televisões não ajudam, e que o panorama é desconsolador. Revistas como "Limiar" ou "Hífen" (de que acaba de sair mais um esplêndido número) são fenómenos raros. Julgo que a poesia em Portugal vai perdendo leitores dia após dia. Neste ponto julgo que o combate a travar merece a plena concordância daqueles que desde sempre se sentem ligados a estas coisas.
Já não seguirei Manuel Alegre com a mesma desenvoltura na ideia de que existiria uma má vontade generalizada contra a literatura portuguesa. Quem ler com atenção as páginas culturais das publicações acima referidas verifica mesmo uma atenção considerável em relação à literatura portuguesa, e o gosto em se valorizar tudo o que de mais interessante se vai produzindo em Portugal. O que importa é evitar as falsas alternativas: entre aqueles que abdicam de qualquer posição crítica em relação a um texto apenas porque ele é português e aqueles estilo Vasco Pulido Valente que acham que o único meio de que dispõem para ultrapassarem a sua própria mediocridade em termos culturais é reduzirem toda a literatura portuguesa à mediocridade que os caracteriza.
3. E chegamos ao terceiro ponto, que é obviamente o mais delicado. Porque passa por questões de gosto, sempre temporalmente condicionadas, mas que se alicerçam em evidências que facilmente se generalizam. E neste plano devo reconhecer que os gostos do tempo não levam à valorização de uma poesia como a de Manuel Alegre. E compreendo que um autor que viveu o início do seu trabalho numa espécie de sintonia mágica com os sentimentos do seu país (o que eu tentei dizer na frase citada) se sinta profundamente atingido quanto verifica que as coisas mudaram, e que nem sempre disponha dos instrumentos adequados para interpretar essa mudança.
Para mim, a poesia inicial de Manuel Alegre tinha a evidência de um tempo histórico. Não sei hoje dizer se a sentia pelas razões políticas que nela existiam ou pelo modo como ela as convertia em razões estéticas. A memória afetiva que tenho do momento em que as li é algo que quero preservar na sua pureza e ambivalência. Faz parte intrínseca do meu património emocional.
O que gostaria de explicar demoradamente a Manuel Alegre é que se hoje tenho mais dificuldade em escrever sobre a sua poesia é porque o mecanismo deixou pura e simplesmente de funcionar. A poesia de Alegre, na minha opinião, vive agora demasiado dos sinais exteriores de um momento mítico que já não existe senão na memória afetiva de alguns de nós. E gostaria de dizer mais. Comparemos estes "Sonetos do Obscuro Quê" com um dos mais espantosos livros de poesia publicados em Portugal nos últimos tempos, "A Poeira Levada pelo Vento" de Joaquim Manuel Magalhães. Neste encontro a vida escrita na sua forma mais violenta e visceral. E é precisamente no livro de Alegre que descubro os indícios de formalismo e neoacademismo. O indizível de Rilke não se diz, mostra-se, e Alegre limita-se a dizê-lo. Uma poesia que diz o "obscuro quê" tem de ser ela própria essa obscuridade que diz, e não a mera exterioridade cantante desse dizer. O que sinto que me falta na atuaI poesia de Manuel Alegre é precisamente a emoção, a raiva, o corpo, a luta renhida e esfarrapada com as palavras, a vida como razão extrema.

Bilhete postal para Manuel Alegre”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 2 de abril de 1994, p. 12.
 
 
Bilhete postal para Manuel Alegre”, crónica de Eduardo Prado Coelho
 para o suplemento Leituras do jornal Público.
 Sábado, 2 de abril de 1994, p. 12.

 
 
Uma saudade de saudade, uma paixão”, crónica de Eduardo Prado Coelho
 para o suplemento Leituras do jornal Público.
 Sábado, 3 de fevereiro de 1996, p. 12.




CARREIRO, José. “Bilhete postal para Manuel Alegre  - esta e outra crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 27-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/bilhete-postal-para-manuel-alegre-por.html


sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Dar tempo ao tempo – crónica de Eduardo Prado Coelho




DAR TEMPO AO TEMPO

1. O número 129/130 da revista "Colóquio-Letras" é, como se tornou habitual nesta publicação, um deslumbramento. Não me refiro apenas ao aspeto gráfico, brilhante como sempre, mesmo se às vezes o leitor fica um pouco embaraçado com uns bilhetinhos que lhe caem no colo durante a leituras e não sabe bem onde os pôr. Refiro-me também à qualidade e diversidade dos textos que nos propõe, a começar neste número pela belíssima e comovedora homenagem a Azeredo Perdigão redigida por Eduardo Lourenço. Um único aspeto me inquieta um pouco: o atraso das recensões críticas, algumas relativas a livros que foram publicados há quatro anos. Mas talvez seja inevitável...
Se me detenho um pouco no caso do "Colóquio-Letras", é porque ela é um excelente exemplo de uma revista que melhora, e se vai tornando cada vez mais atraente para o leitor, sem ter necessidade de sê aligeirar – o que é certamente um caso raríssimo na Imprensa portuguesa.
No copioso e aliciante sumário do número de julho-dezembro de 93 gostaria de pôr em relevo um excelente texto de Maria Alzira Seixo, que se intitula "Que fazem os estudos portugueses com os estudos literários?", e que é uma análise extremamente interessante do "estado das coisas" da cultura portuguesa, pelo menos no campo mais diretamente ligado à literatura. Mas a literatura é aqui a plataforma emblemática de que podemos partir para a compreensão do resto.
Que diz a Maria Alzira? Que "o trabalho sobre o literário apresenta, em Portugal, alguns sintomas que, muito a contragosto, terei de classificar de subdesenvolvimento" por um lado e, por outro lado, de lamentável deterioração". É muito curioso, mas extremamente sagaz, que a Maria Alzira vá buscar como exemplo de subdesenvolvimento o facto de por vezes não vermos o que os autores nos põem diante dos olhos pela simples razão de que os lemos com óculos que foram concebidos para conjunturas já ultrapassadas. Daí que seja "significativa a posição quase global que em Portugal se tem tomado perante a corrente do chamado Pós-Modernismo". E surgem então dois inesperados exemplos: a "Balada da Praia dos Cães", de José Cardoso Pires, toda marcada por um "relativismo sociopolítico" muito distante da ótica ideológica com que foi acolhida, e ainda o "Evangelho segundo Jesus Cristo", de José Saramago, que se caracteriza, segundo Maria Alzira Seixo, por “traçar sequências alternativas para os acontecimentos históricos" (e a Maria Alzira poderia já ir buscar o exemplo anterior da "História do Cerco de Lisboa").


2. No que diz respeito à lamentável deterioração, exemplos não faltam. Mas não deixa de ser divertido encontrarmos no texto já um pouco antigo de Maria Alzira Seixo esta frase que hoje podemos acolher com uma triste ironia: "Quanto à Televisão, aguarda-se a todo o momento que a multiplicação dos seus canais atribua à Literatura o lugar que merece nos sectores da informação e do comentário e que poucas vezes até agora foi atingido." Pois é, bem podemos nós continuar a aguardar...
O problema é de ordem mais geral. Passa também pelo modo exemplarmente desastroso com que se pretendeu acabar com a Rádio Cultura. Devo dizer que a minha ecologia mental fica um pouco abalada quando não posso deixar de aplaudir na mesma semana duas intervenções de Pacheco Pereira. Mas a verdade é que tanto o que ele disse sobre os riscos de um retorno às facilidades de um discurso de nacionalismo moralizante como ao erro cometido na tentativa de "aligeirar", a Rádio Cultura me parece absolutamente modelar. No fundo, são as duas faces de uma mesma moeda. É como se estivéssemos fatigados de manter o combate pelos valores essenciais da Modernidade e começássemos a sucumbir à tradição de um Portugal "profundo" feito de coisas "simples" e "naturais". Ora a Democracia é um combate permanente contra os seus inimigos, e contra nós próprios. A Modernidade também. E poderemos recordar que, para um liberal como Dewey, o liberalismo nunca era um dado natural mas uma luta a travar sem concessões?
3. Não cheguei a ter tempo para ficar com uma ideia de conjunto do projeto da Rádio Cultura Sei apenas que não é fácil conciliar os adeptos de um programa dirigido especialmente para a escuta da música clássica com aqueles que procuram falar em termos simples mas exigentes sobre problemas culturais do nosso tempo. Para os primeiros, os segundos serão sempre pessoas incomodativas que abusam da palavra a todo o momento. Por isso mesmo existe em França uma France Musique e uma France Culture. Na medida em que João Paes precisava de meter as duas numa só, a estratégia a adotar era particularmente delicada. Dificilmente possa avaliar os resultados. Pelo que ouvi. pareceu-me que havia um esforço extremamente meritório. Mas julgo que o projeto poderia melhorar se tivesse em conta três tipos de críticas: em primeiro lugar, era preciso evitar a imagem da cultura como algo que remete para uma espécie de prática bolorenta da rádio, segundo modelos e tecnologias manifestamente ultrapassadas. Por outras palavras, no plano cultural exige-se muito imaginação, muito sentido de inovação, e meios técnicos para isso.
Em segundo lugar, é extremamente importante a ligação à atualidade. A ideia de que a cultura é tanto mais pura quanto se mostra desligada das vicissitudes do tempo é obviamente funesta. E isto conduz-nos a um terceiro ponto: há a tendência para supor que uma emissão cultural apenas se deve ocupar de "objetos culturais", o que suscita a imagem de um circuito fechado. Ora é precisamente o contrário: a cultura é sobretudo um modelo de abordar toda a realidade, mas de a abordar em termos específicos. De que especificidade estamos a falar? A questão é complexa, mas julgo que fundamental.
4. A minha tese poderia formular-se deste modo: a cultura não é tratar as coisas fora do tempo, mas é um outro tempo no modo de tratar as coisas. Para utilizarmos uma belíssima e inesgotável expressão, podemos dizer que o gesto cultural por excelência é aquele que corresponde a um saber dar tempo ao tempo. Toda a barbárie contemporânea resulta essencialmente de se estar a cada passo a roubar tempo ao tempo. É preciso falar um pouco mais demoradamente em televisão? – impossível, não há tempo... Pretende-se num jornal tratar um tema com algum cuidado e profundidade? – não é possível, o leitor não terá tempo para ler... Pretende-se um verdadeiro debate de ideias? – impossível, quem é que tem tempo para ouvir falar de ideias? Procura-se que um projeto cultural (como o de Rádio Cultura) vá lentamente criando o seu público, atraindo-o, modelando-o, formulando-o? – logo o contabilista das audiências vem dizer que não há tempo para isso. Não bastam hoje associações de consumidores. Precisamos urgentemente de associações de defensores daqueles que pretendem dar tempo ao tempo.

“Dar tempo ao tempo”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 26 de março de 1994, p. 12.




CARREIRO, José. “Dar tempo ao tempo – crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 25-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/dar-tempo-ao-tempo-por-eduardo-prado.html


quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Bach ou rap – crónica de Eduardo Prado Coelho




BACH OU RAP?

1. Voltemos à questão do "cultural". Repare-se que não é exatamente o mesmo que a "cultura". Podemos dizer que no nosso tempo existe uma verdadeira inflação do "cultural". Por outras palavras, assistimos hoje a um culto do "cultural". Isso não significa que se viva num espaço público onde a "cultura" tenha uma verdadeira função. Alguns – como vimos há pouco com José Saramago a propósito da cultura europeia e das capitais europeias de cultura – podem mesmo ter uma visão apocalíptica destas coisas, do estilo "quanto mais cultural menos cultura".
Neste plano, assistimos a dois movimentos mais ou menos complementares. Por um lado, começou-se a dizer que tudo é mais ou menos cultura. A moda, pois claro, também é cultura. O rock, evidentemente, é uma forma de cultura. A banda desenhada tem uma imensa importância cultural. E o rap, claro. Assim como a gastronomia. E há, como se sabe, uma tradição cultural que se desenvolve em torno do vinho – a cultura do vinho, se quiserem. Este processo visava acima de tudo contrariar as acusações de "elitismo" e atrair as camadas mais jovens, que apenas pareciam suscetíveis de reagir a formas mais ou menos massificadas de expressões de vida urbana. Os "graffiti", por exemplo.
O movimento contrário colocou a inevitável questão: entre uma canção rock e uma cantata de Bach não haverá diferenças? Ou então: entre um "video-clip" e um filme de Dreyer? Entre uma peça de "design" de Philip Stark e um quadro de Francis Bacon? Ou entre Guimarães Rosa e a letra de um samba? Intuitivamente, diríamos que sim. Será isto estarmos marcados por uma conceção da Cultura demasiado absoluta que pretende colocar a arte no lugar da religião? Será que a arte é um conhecimento superior a todos os outros? Se, no plano teórico, assistimos hoje a releituras mais ou menos severas dos textos da tradição romântica, se muitos põem em causa a legitimidade do "sublime" kantiano para proporem a visão desdramatizada do prazer e do gosto do século XVIII, se alguns se lançam com entusiasmo numa verdadeira desmitificação do "estético" (que vai de leitores analíticos de Nelson Goodman até marxistas recauchutados como Terry Eagleton), isso significa que se procura pôr em causa todas as perspetivas "elitistas" que preferem Bach ao rap.
2. Um texto recente de Yves Michaud, publicado no número de dezembro da revista "Esprit", e intitulado "Des beaux-arts aux bas arts. La fin des absoluts esthétiques – et pourquoi ce n'est pas plus mal", veio colocar a polémica em termos particularmente vigorosos. A intervenção de Yves Michaud é tanto mais significativa quanto parte de alguém que neste momento dirige a Ecole NationaIe Supérieure de Beaux-Arts em Paris. A questão que lhe tinha sido endereçada – pelo próprio diretor da "Esprit", Olivier Mongin – partia mesmo desse espanto: como é possível ter uma visão tão "desestruturada" da arte e estar à frente de uma instituição "estruturante" como é uma Escola de Belas-Artes?
Mesmo quando estamos longe de seguir Yves Michaud nas suas conclusões, temos toda a vantagem em lermos e analisarmos com atenção algumas das suas teses. Para Michaud – e este é o seu ponto de arranque –, não faz sentido falar-se num corte entre o público em geral e a arte contemporânea. Para ele, "se, com efeito, o grande público está hoje divorciado da arte conceptual ou da pintura simulacionista, consome avidamente jogos vídeo, filmes, discos compactos interativos, televisão e espetáculos coreográficos. Onde está o corte? Pode ser que ele esteja sobretudo na nossa representação do que deveria ser a relação do público com as artes de elite de que as artes visuais terão acabado por constituir no século XX um tardio paradigma".
Todos os raciocínios de Michaud partem de uma espécie da analogia entre o plano social e político e o plano artístico. Em todos estes domínios estaríamos a assistir ao fim dos absolutos: ninguém pode agora falar em nome do universal. Assim, "conhecemos hoje no domínio do gosto exatamente a mesma situação que conhecemos em política e no domínio social. Todos os nossos critérios de universalidade foram abalados e postos em causa, e nenhuma situação está garantida". Se uma sociedade democrática é uma sociedade estruturalmente dividida, devemos reconhecer, segundo Michaud, que "para o melhor ou para o pior, o efeito de democracia opera hoje também na cultura”. Isto coloca Yves Michaud numa interessante posição paradoxal: por um lado, recusa visceralmente todas as posições estilo Fumaroli, porque feitas em nome de uma conceção elitista da arte. Mas, por outro lado, embora seguindo Jack Lang no seu alargamento da noção de "cultural", afasta-se dele quando Lang pretende intervir através de uma política da cultura: em nome de quê?, pergunta Michaud.
3. Assim, "a 'grande' estética está sempre à procura das grandes experiências de rutura e de sublimação. É por isso que se mostra tão fechada às outras artes, e, em particular, às artes populares, é por isso que se mostra tão alheia à imensa gama de comportamentos e experiências estéticas que marcam a nossa vida, tão fechada à estética da experiência quotidiana". Donde, conclui o nosso autor, "devemos identificar as componentes variadas e diversas das experiências artísticas tendo em conta a sua diversidade antropológica assim como a sua universalidade, o seu carácter modesto, que tanto se manifesta nos prazeres banais e contudo requintados que nos dão as práticas populares como nas experiências sofisticadas que nos propõe a Grande Arte ou nas experiências aparentemente desesteticizadas que nos apresenta a arte contemporânea".
4. Deixo um pouco aqui as afirmações de Yves Michaud à laia de provocação para os leitores. Embora me pareça que elas têm debilidades óbvias, colocam problemas extremamente sérios no mundo contemporâneo.
Gostaria no entanto de alinhavar duas ou três observações. A sabedoria popular, que Michaud tanto aprecia, costuma dizer que mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo. Ao comentar o facto de alguns professores procurarem anexar a Escola aos seus gostos e preferências, facto manifestamente negativo, porque a escola deve ser prioritariamente feita pelos estudantes", Yves Michaud afirma: "Mesmo se tenho pessoalmente os meus gostos artísticos, de que são testemunho os prefácios que tenho escrito, esforço-me como diretor por mostrar uma imparcialidade a toda a prova – o que me valeu paradoxalmente por várias ocasiões a acusação de autoritarismo." Donde, embora não acredite no ponto de vista da universalidade, Michaud esforça-se por ter aquilo que Thomas Nagel chama "the view from nowhere” – algo que não existe, evidentemente, a não ser pelo pelo nosso desejo de que exista. Porque o ponto de vista de parte alguma não é a mesma coisa que a ausência de ponto de vista.
Uma segunda observação poderá ser formulada em termos de analogia. Embora todos nós reconheçamos a diversidade empírica das experiências de tipo erótico, todas elas legítimas, agradáveis e enriquecedoras, seremos no entanto incapazes de distinguir entre um simples "flirt", uma cena de sedução numa noite de festa, uma longa vida afetiva em comum e um amor louco? Por outras palavras, será que as grandes experiências de rutura afetiva e erótica nos afastam "elitistamente" da diversidade infinita das experiências eróticas? Bach e rap terão de ser a mesma coisa? Terá Bach de nos afastar do rap?

“Bach ou rap”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 5 de fevereiro de 1994, p. 12.



CARREIRO, José. “Bach ou rap – crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 23-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/bach-ou-rap-por-eduardo-prado-coelho.html