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quinta-feira, 3 de outubro de 2019

A literatura portátil de Adília Lopes – Crónica de Eduardo Prado Coelho



A LITERATURA PORTÁTIL

1. Numa das páginas belíssimas do último número da revista "Ler", aquele que traz a indicação de Inverno-93, encontramos, numa galeria de novos "escritores para a década", uma fotografia e um texto sobre Adília Lopes, pseudónimo muito discreto de uma autora de livros breves, alguns brevíssimos, e com títulos insólitos. O último que ali se assinala chama-se Maria Cristina Martins e é uma estranhíssima e curiosíssima produção poética editada pelos Black Son Editores.
Mas fiquemos, por agora, pela fotografia. Adília Lopes, pseudónimo deliberadamente baço de Maria José Oliveira, senta-se num banquinho que supomos minúsculo, tendo à sua volta cadeirões minúsculos e outros móveis de tamanho condizente. Há nesta pose uma provocação, é claro, mas uma provocação pela negativa, contra os grandes autores, contra aqueles que tomam as poses de grandes autores, mas também contra a grande poesia, ou contra aqueles para quem a poesia aparece como uma palavra redentora e sagrada. Ora tudo aquilo que escreve Adília Lopes se situa no reverso disto, e corresponde a um desconcertante uso estratégico da banalidade até ela começar a ser um pouco menos banal do que parece.


2. A atitude de Adília Lopes levou-me a recordar a leitura recente de uma muito interessante obra de um autor espanhol neste momento em voga no seu país: refiro-me a Enrique Vila-Matas, que publicou em 1985 uma História abreviada de la literatura portátil. Para começar, notemos que a própria história é desde logo "abreviada". E a epígrafe pertence a Monsieur Teste de Paul Valéry, e diz o seguinte (que julgo inscrever-se muito bem no contexto poético de Adília Lopes): "O infinito, meu caro, já não é grande coisa; é uma questão de escrita. O universo só existe no papel".
Que se entende por "literatura portátil"? Digamos que se trata inicialmente de uma questão de escala (tudo em formato reduzido) e de uma questão de número (não se dirá que "o carteiro toca sempre duas vezes", mas que "a arte existe sempre duas vezes", e que a primeira só existe porque a segunda a faz existir: isto é, escreve-se sempre a partir do que já foi escrito, uma glosa que tanto pode fazer entrever a fadiga da banalidade como a exaltação do interminável).
O livro de Vila-Matas é inteligente, divertido e também provocador. Propõe-se como uma verdadeira história literária, e mesmo de todas as artes, e convoca as mais variadas personagens da vida artística do século XX, numa ficção delirante, em que raramente conseguimos distinguir entre o que corresponde à "verdade" dos factos e o que pertence apenas à "verdade" das construções romanescas. Como não podia deixar de ser, o livro tem no final uma extensa bibliografia, onde os livros autênticos e outros duvidosos emparceiram numa serena anarquia. E, como é óbvio, vá-se lá saber quais as citações autênticas e quais aquelas que foram inventadas. Tudo acontece numa espécie de alucinação cultural que acelera e enlouquece o fluxo "normal" da História da nossa modernidade.
Disto poderá ser exemplo a magnífica abertura do livro: “No final do Inverno de 1924, precisamente no rochedo em que Nietzsche tinha tido a intuição do eterno retorno, o escritor russo André Biely foi atacado por uma terrível crise de nervos que o levou a experimentar a irremediável ascensão das lavas do seu sobreconsciente. No mesmo dia e à mesma hora, não longe dali, o músico Edgar Varese caía de repente do seu cavalo quando, parodiando Apollinaire, simulava os preparativos de partida para a guerra".
E tudo vai seguir-se neste ritmo demente: as coincidências multiplicam-se para desgastarem a ideia de um Sentido da História e todos agem como eco de outros que anteriormente julgaram agir (Biely no lugar de Nietzsche, Varese parodiando desastradamente as bravatas guerreiras de Apollinaire).
Mas só pouco mais tarde é que a conceptualização entre em cena. O modelo parte de Paul Morand, que trazia sempre consigo uma versão artesanal dos Macintosh do nosso tempo, isto é, uma maleta-escritório, que transportava pelos grandes e luxuosos comboios europeus. Ora foi Morand quem inspirou Marcel Duchamp, criador de uma boîte-en-valise que constitui a imagem genial e definitiva da arte portátil. Porque essa mala continha uma reprodução em miniatura de todas as obras do próprio Marcel Duchamp. Eis a escala em miniatura promovida a conceito (ou, se preferirem, eis o conceito reduzido à miniatura de um conceito, ou às dimensões das cadeirinhas de Adília Lopes).
3. Daqui em diante, Vila-Matas irá conduzir-nos pela aventura enlouquecida e fascinante da literatura portátil, isto é, da "apoteose dos pesos pluma na história da literatura". O mais curioso é o modo como consegue atravessar os chamados problemas teóricos sem mesmo chegar a enunciá-los. Em larga medida, já assistimos ao fim das grandes narrativas de que nos falou Jean-François Lyotard. Mas temos muito mais. De Duchamp passamos a Walter Benjamin (de quem se assinala o tamanho minúsculo da caligrafia – e aqui seria interessante o confronto com Vergílio Ferreira, por exemplo), e de uma invenção que a este se atribui: a de uma máquina de pesar livros capaz de detetar com precisão absoluta o carácter insuportável de certas obras, o que significa na prática o seu carácter intransportável. E encontramos aqui o problema da obra de arte na era da usa reprodutibilidade técnica e a questão da perda da aura enquanto marca do sagrado artístico. Ficamos a saber que ''Walter Benjamin era uma alma gémea de Marcel Duchamp. Tanto um como o outro eram ao mesmo tempo vagabundos, sempre a caminho, exilados do mundo da arte e colecionadores carregados de objetos, isto é, de paixões. Tanto um como outro sabiam que miniaturizar é tornar portátil".
Eles estão na origem da criação de uma sociedade secreta de que Vila-Matas nos conta a história: a sociedade dos shandys, palavra que no dialeto do condado de Yorkshire, onde Sterne viveu parte da sua vida, significava "alegre", "louco", "volúvel". Eis os traços essenciais dos grandes nomes da arte portátil. A que se juntam alguns outros: "espírito de inovação, sexualidade extrema, ausência total de grande desígnio, nomadismo infatigável, tensa coexistência coma figura do duplo, simpatia em relação à negritude, tendência para cultivar a arte da insolência".
Talvez seja altura de perguntarmos: a par de Cendras ou Valéry Larbaud, de Picabia ou Georgia O'Keefe, de Bergamin ou Walter de la Mare, quem serão os shandys da arte e da literatura portuguesa? Poucas probabilidades do lado de Torga, Régio ou Manuel Alegre. Talvez seja melhor procurarmos para as bandas de Ruben A ou Herberto Hélder, de O'Neill ou Adília Lopes. Mas a lista fica em aberto – como convém.


A Literatura Portátil”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sexta-feira, 16 de abril de 1993.




“A literatura portátil de Adília Lopes – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 03-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/a-literatura-portatil-de-adilia-lopes.html



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