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sábado, 5 de outubro de 2019

Na órbita de Saturno, de Fernando Pinto do Amaral – Crónica de Eduardo Prado Coelho




NINGUÉM FICA DE FORA

1. Dum modo discreto, o ensaísmo português vai-nos dando trabalhos de grande qualidade. Alguns de formato mais universitário, como o magnífico estudo de Mário Vieira de Carvalho sobre o São Carlos e a cultura da ópera em Portugal. Outros apresentam-se como Investigações transfiguradas pelo sentido estético e o prazer da escrita: é o caso de um pequeno volume extremamente interessante de Rosa Alice Branco intitulado "O que falta ao mundo para ser quadro" (Limiar).
Voltando de novo às edições da Hiena, gostaria de chamar a atenção para um livro que surgiu ainda em 92, mas que não teve, tanto quanto sei, as repercussões que se justificavam. Refiro-me a "Na órbita de Saturno", da autoria de Fernando Pinto Amaral. Como se sabe, Pinto do Amaral tem desenvolvido uma tripla atividade de poeta, tradutor (recorde-se o sucesso que obteve a sua tradução de "Les Fleurs du Mal", de Baudelaire) e crítico. Neste último domínio, tem sido, juntamente com Joaquim Manuel Magalhães, Fernando Guimarães, Maria de Fátima Marinha, Fernando J. B. Martinho e António Guerreiro, uma das pessoas que melhor têm acompanhado a mais recente produção poética portuguesa, a que dedicou um importante ensaio intitulado "O Mosaico Fluido". No plano teórico, tem sido a noção de pós-modernidade que mais o tem interessado, com o resultado paradoxal de vermos a teoria desenvolver-se numa relação com o que resiste à teoria (a dramaturgia deste combate está bem presente nas páginas de "Na Órbita de Saturno"). Como seria fácil de prever, a pós-modernidade corresponde de um modo privilegiado ao afeto fundamental que parece envolver toda a sua atividade literária, e que vai da "Acédia", título do seu primeiro livro de poesia, até à melancolia dos seus mais recentes textos publicados (recentes, pelo menos, na data de publicação).
2. Contudo, lembro-me ainda muito bem da convicção e veemência com que, em dado momento, me apareceu um jovem estudante que queria passar para os cursos de Letras, e abandonar a orientação escolar que inicialmente tomara, e que suponho que era a Medicina (o que explica que Pinto do Amaral fale das suas "afinidades biográficas" com Starobinski). Habitualmente, estes quadros entusiásticos de pessoas que não resistem ao apelo das artes provocam-me reações de suspeita e prudência. No caso de Pinto do Amaral, essa atitude durou muito pouco. A solidez da sua informação, a maturidade da sua escrita e a paixão com que se entregou às novas realidades escolares, provaram-me rapidamente que se tratava de um caso à parte. Texto a texto, tenho vindo a confirmar essa intuição.


3. "Na Órbita de Saturno", título talvez demasiado "cultural", é uma curiosa encenação em torno de uma espécie de trauma, de uma ferida aberta, um vazio emocional de infinitas repercussões. Logo de entrada, percebemos que o autor encontrou a sua estratégia, precisamente em Starobinski: o remédio para o mal encontra-se na própria causa que provocou o mal, embora os efeitos desse remédio nunca permitam que as coisas voltem a ser o que tinham sido antes, não há regresso possível, e a perda é irremediável, incurável no processo da própria cura, porque declinando sempre uma diferença que se refrata em todos os patamares da existência, "essa luz cor-de-sangue a pulsar toda a noite, como uma ferida aberta no espaço mais negro, como esta ferida que nunca deixei de sentir e continua ainda aqui, sem cura".
Entramos depois numa das zonas enciclopédicas deste livro, aquela que nos convida para uma travessia do destino da teoria literária (a outra zona aparecerá mais tarde, no ensaio final, a propósito do próprio tema da melancolia). Aqui devemos dizer que as qualidades didáticas de Fernando Pinto do Amaral são notáveis e que existe um enorme equilíbrio no modo como se posiciona perante esta área de estudos. Como ele próprio reconhece, à partida achava a teoria "entediante e desnecessária". Mas procurou não ter a atitude algo histérica dos que rejeitam toda a teoria em nome de uma espécie de intocabilidade do objeto literário, o que os leva a rejeitar esbracejantemente aquilo que desconhecem, levando-nos a supor que rejeitam para poderem ter a posição confortável de continuarem a desconhecer. Por outro lado, Pinto do Amaral, ao "descobrir" a teoria e os seus prazeres específicos, não entrou naquela insensata euforia de pensar que todos os problemas do mundo se tinham resolvido e que os restantes não passavam de absurdas quimeras. E por isso nos diz: "Cada vez estou mais convencido de que são sobretudo as perguntas mais irrespondíveis aquelas que têm de continuar a fazer-se ouvir – ao menos para sentirmos na sua ausência de resposta essa contradição, afinal tão humana, de algo que só se torna presente na medida em que parece mais distante ou inacessível”.
Não teria grande interesse resumir em poucas linhas um percurso de problemas e autores que, no próprio texto do autor, já é forçosamente rapsódico. Digamos apenas que a contribuição mais aliciante se situa, do meu ponto de vista, no modo como Pinto do Amaral nos mostra o inevitável enredamento entre estruturalismo e pós-estruturalismo, e a correlação profunda entre pós-estruturalismo e pós-modernidade, com a sua permanente instabilização de todas as referências e o seu gosto pelos aspetos mais "voláteis e intersticiais”. Gostaria de sublinhar que o grande mérito de Fernando Pinto do Amaral consiste em não pretender precipitar-se para um juízo de valor, mas procurar antes do mais compreender e analisar. Neste plano, estou inteiramente de acordo com o autor quando ele nos diz que "o pós-estruturalismo tenderá, em geral, a manter uma certa consciência estrutural do texto, mas que, no seio dessa topologia, aumentarão de importância as fluidas relações que a perturbam e envolvem, em detrimento da simples descrição dessa topologia. Ou, dito doutro modo, interessará acima de tudo darmo-nos conta do que se move entre as estruturas ligando-as ou desligando-as umas às outras, em prejuízo da simples análise dessas mesmas estruturas. Na verdade, a maioria das novas correntes teóricas tem vindo a definir-se por graduais alterações de centros de gravidade, mais do que propriamente por grandes rupturas em relação ao panorama anterior".
4. Gostaria de voltar a citar a frase: "algo que só se torna presente na medida em que parece mais distante e inacessível". Como acontece em múltiplas formulações aparentemente "científicas" do texto de Fernando Pinto do Amaral, um leitor mais atento poderá sublinhar que elas são suscetíveis de múltiplas leituras em planos muito diversos da nossa vida pessoal. Ao duplicar o seu texto por um "texto de rodapé" de aparência "autobiográfica" (mas as fronteiras são aqui bastante indecidíveis), Pinto do Amaral sabia que corria o risco de lhe dizerem que imitava "o J.D.", isto é, Jacques Derrida, mas ao mesmo tempo aceitou a inevitabilidade desse risco para poder dar o reverso afetivo de cada fórmula ou conceito (da "teoria" enquanto contemplação até à "introdução aos estudos literários", que é uma introdução que não nos introduz em nenhum espaço, não há um "dentro" e um "fora", mas somente um processo de sedução em que tudo se move desde sempre no interior das palavras): "Quem se ri fica sempre de fora, mas não existe fora, ninguém fica de fora.”

Ninguém fica de fora”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sexta-feira, 17 de setembro de 1993.




Na órbita de Saturno, de Fernando Pinto do Amaral – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 05-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/fernando-pinto-do-amaral-por-eduardo.html



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