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terça-feira, 22 de outubro de 2019

Emigração e cultura – crónica de Eduardo Prado Coelho



EMIGRAÇÃO E CULTURA

1. Tive recentemente a oportunidade de ver uma emissão do Terça à Noite, na SIC, sobre o tema da "Emigração". Pude, em primeiro lugar, confirmar todas as excelentes referências que tinha ouvido fazer ao programa de Miguel Sousa Tavares. Estamos indiscutivelmente perante um magnífico espaço de debate, que constitui um dos lugares mais vivos e interessantes de confronto de ideias e posições da atual vida política portuguesa. E Miguel Sousa Tavares, embora às vezes pareça confundir o seu papel com o de domador de leões, é alguém que sabe colocar os problemas de um modo extremamente incisivo, com grande inteligência e frontalidade.
Seria apenas levado a colocar algumas objeções de pormenor. Em primeiro lugar, tive por vezes a sensação de que o espetáculo do debate se sobrepunha à própria nobreza do debate. Julgo que, em relação ao voto dos emigrantes, as posições de António Barreto e Pacheco Pereira eram substancialmente próximas – e apenas se diferenciavam por uma espécie de necessidade artificial de se mostrarem diferentes. Em segundo lugar, Miguel Sousa Tavares deixa-nos frequentemente a impressão de que procura impor as suas próprias opiniões sobre os assuntos, sendo incapaz de se manter no papel mais reservado de um moderador. Em terceiro lugar, havia a tendência para tratar "o emigrante" como se fosse uma entidade maciça, e não como uma realidade imensamente complexa e diversificada, não somente no plano geográfico como no plano social e geracional. Concebendo-se "o emigrante" como uma entidade maciça, quando se dava a palavra a um emigrante concreto que estivesse na assistência, convertia-se logo ''um'' emigrante, no caso o sr. X, na voz autorizada de "o" Emigrante – passagem indevida do particular ao genérico. Isto é, sempre que falava "um" emigrante singular, ele tendia a ser apresentado como o porta-voz de "o" Emigrante em geral. Este curto-circuito selvagem provocava consideráveis equívocos.

Terça à Noite (SIC, 1993 - 1995)

2. Uma das inevitáveis questões foi, sobretudo em torno do caso francês, a do ensino da língua portuguesa no estrangeiro. Um número é habitualmente citado: a frequência dos cursos de Português integrados no sistema do ensino elementar francês tem vindo abaixar desde 82, em que atingiu o recorde de 55 mil, até 93, em que ronda apenas os 17.500. É natural que dentro de uns dois anos, prosseguindo a tendência dos últimos dez anos, fiquemos pelos 6 mil. Esta evolução pode parecer impressionante, mas devemos reconhecer que era inteiramente previsível. O fenómeno da emigração criou uma situação artificial do ensino do Português em França que nunca poderia ser duradoura. Esta situação artificial sustentava-se no facto de, para uma geração de portugueses, o Português ser de facto a língua materna. Uma vez que, para uma nova geração de portugueses e luso-descendentes, o Português deixou de ser de facto a língua materna, como o comprovam certos inquéritos, embora com números que devem resultar de instrumentos de análise pouco finos, é perfeitamente natural que os pais tracem novas estratégias escolares para os filhos, em que a concorrência com os franceses no mercado de trabalho favorece a escolha do Inglês como primeira língua estrangeira a aprender.
Para além de deficiências gritantes do próprio sistema de ensino, e do facto de ele se ter vindo a deteriorar sem medidas adequadas para a sua reformulação, costuma-se falar, e muito bem, em problemas de promoção e informação. A explicação é pertinente, mas insuficiente. Ela não permite compreender o fenómeno de recuo, uma vez que o simples êxito em determinado período deveria ser naturalmente promocional, informativo e expansivo. A questão essencial está no facto de que aquilo que em determinada fase aparecia como uma evidência – "ser português deveria levar naturalmente a querer estudar Português" – deixou de o ser. É aqui que surge uma nova problemática: desaparecida a motivação que se supunha "natural", é preciso formular um novo elenco de motivações.
3. Dada a importância das motivações, tornou-se absurdo procurar hoje dar uma prioridade ao ensino da língua ou à cultura. Na nova situação, as duas realidades estão indissoluvelmente ligadas. É o conhecimento da língua que permitirá descobrir melhor a cultura, tal como ela é a cultura que levará ao desejo mais forte de aprender a língua. Isto é, é necessário um entendimento muito amplo do que se entende por cultura portuguesa, não apenas nos seus aspetos literários e artísticos, mas também nos seus aspetos científicos, económicos, sociais ou antropológicos, para que se consiga produzir junto dos franceses e dos portugueses luso-descendentes, um leque de motivações suficientemente rico, diversificado e sedutor. Técnicas de mercado e tecnologia pedagógica são necessidades urgentes.
4. Numa perspetiva profundamente reacionária e retrógrada, há quem pense que poderia existir uma cultura portuguesa para os estrangeiros, e depois, num segundo plano, uma cultura mais "fácil" para a emigração. Ao contrário do que disse Pedro Bicudo em Terça à Noite, a escolha entre Dino Meira e os Madredeus não é apenas uma questão de gosto. Porque os gostos educam-se, e existem níveis de cultura. Não se trata de opor uma cultura erudita a uma cultura popular – as duas podem situar-se ao mais alto nível. Trata-se de opor uma cultura de qualidade a uma cultura de massas mais ou menos degradada e industrializada, que se situa, em termos de níveis culturais, num plano inferior. A verdadeira cultura, popular ou erudita, é aquela que ajuda cada um de nós a tornar-se aquilo que é, e não a que procura fazer que cada um continue a ser aquilo que já era. Donde: o único trabalho possível é aquele que leva a sua exigência a exigir o rigor e a qualidade, o risco e a consequência, tanto à cultura erudita como à cultura popular autêntica. Não se trata de excluir demagogicamente Camões e Pessoa porque faria parte da cultura erudita; trata-se de procurar que um número cada vez maior possa fazer a experiência apaixonante de ler Camões e de ler Pessoa.
Creio que uma política cultural junto das comunidades portuguesas no estrangeiro deve privilegiar dois vetores. Por um lado, é preciso que, em relação aos principais acontecimentos suscitados pela apresentação da cultura portuguesa no estrangeiro se desencadeiem mecanismos de intervenção pedagógica e animação cultural que permitam um melhor acesso a esses acontecimentos. Não faz sentido produzir uma cultura deliberadamente menor; faz sentido criar condições de acesso à única verdadeira cultura. Pedagogia viva e animação cultural competente são aqui palavras de ordem.
Em segundo lugar, é urgente a criação junto das comunidades portuguesas de cursos de formação de jornalistas, profissionais de teatro, profissionais de rádio, intérpretes de dança, fotógrafos, tradutores literários, cenógrafos, etc. Isto é, torna-se necessário criar estruturas de apoio aos jovens criadores e atores de cultura, de forma a dar-lhes condições culturais e técnicas para que eles inventem livremente a cultura em que irão falar do seu lugar e da sua memória, do seu destino e da sua utopia. Porque os franceses poderão querer aprender Português por motivos culturais ou económicos. Os portugueses e os luso-descendentes estarão sempre ligados à língua portuguesa por um nó de motivações afetivas que só a arte e a literatura podem dizer.


“Emigração e cultura”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 15 de janeiro de 1994, p. 12.




CARREIRO, José. “Emigração e cultura – crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 22-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/emigracao-e-cultura-por-eduardo-prado.html


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