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sexta-feira, 18 de outubro de 2019

“Jogo de Espelhos", de David Mourão-Ferreira

por Eduardo Prado Coelho



A SEDUÇÃO GENERALIZADA
1. Aparentemente, um livro "menor", que até nos provoca logo na contracapa, quando pretende que se trata, nada mais nada menos, do que de dois livros num só. "Menor" para o leitor que esperaria um romance ou novos poemas. Mas uma leitura atenta pode levar-nos a alterar um pouco este modo de ver as coisas. Porque este livro contém o núcleo de múltiplos poemas e a trama invisível de várias narrativas, tudo suspenso de uma referência última que é o canto e a história de uma vida. Cada um dos fragmentos que constituem "Jogo de Espelhos" de David Mourão-Ferreira aparece, assim, como uma pequena prova em que o autor se forçou a si próprio a uma "revelação", "confissão", "alusão velada", "recordação imprevisível", que este exercício, esta disciplina, que passa, como não podia deixar de ser, por uma verdadeira disciplina das palavras, faz que este livro manifestamente "menor" se converta num livro secretamente “maior" – uma espécie de Índice temático desenvolvido de toda a obra do autor.
Dois "livros", portanto. Isto é, duas sequências de textos curtíssimos que se organizam em torno de preocupações supostas diferentes. O primeiro aparece voltado para o exterior, e tem como tema explícito a "sedução". O segundo é o resultado de uma série de nótulas de cariz autobiográfico (menos "biografemas", embora sejam algumas referências a situações pregnantes, do que traços constitutivos de um retrato íntimo). De qualquer modo, a complementaridade é evidente, e o titulo lá está para fazer que cada texto se deixe envolver pelo "jogo de espelhos" que regula o conjunto destes dois conjuntos – não apenas jogo de espelhos entre o exterior e o interior, como jogo ainda entre a imagem do autor e o espelho do feminino: "É num contínuo jogo de espelhos,/ entre as mulheres e si próprio,/ que melhor tem aprendido a conhecer-se."


2. Poderíamos pensar que este livro nos propõe uma "teoria" da sedução. De certo modo, assim é. Mas, nesta como noutras matérias, a teoria é tanto mais teoria quanto é resistência à teoria. Pela razão muito simples de que a sedução pode passar pela ideia de "estratégia" (entendida como metáfora retórica e simultaneamente militar), mas terá sempre de ser uma espécie de estratégia implícita que não pode tornar-se demasiado visível nem para quem a pratica nem para aquele que nela se deixa enredar – se é que esta divisão tem, em última instância, sentido. Porque se alguma coisa define a sedução é a permanente indefinição dos estatutos e dos papéis, através de mecanismos de permutabilidade que anulam a própria diferença entre o espelho e o real. Por isso, "as sedutoras que se ignoram/ são quase sempre as mais temíveis." E por isso também pode o autor escrever: "Segundo pensa, o poeta só pensa/ quando não pensa que pensa;/ ou quando pensa que não pensa./ Daí a sua desconfiança/ perante os que pensam/ que estão sempre a pensar."
O aspeto mais interessante da forma fragmentária que David Mourão-Ferreira escolheu para este livro é o facto de um dispositivo deste tipo exigir que cada unidade textual tenha um "não sei quê" que a torne sedutora em si mesma. Se se tratasse de um mero apontamento de tipo "teórico", bastariam as "ideias" para dar corpo e razão de ser ao texto. No caso de um poema, existem outros mecanismos que permitem que ele vá ao encontro do leitor. Mas num livro de tipo aforístico, o espaço é demasiado exíguo para autorizar os desenvolvimentos de uma coerência conceptual ou textual. Resta uma única solução: em poucas e apertadíssimas linhas, o fragmento tem de nos seduzir por qualquer coisa que nele aconteça e que consiga produzir um efeito de diferença. O risco é enorme de se ficar do lado da banalidade. A prova decisiva consiste em aceitar o risco do banal, deixar que este permaneça como pano de fundo, e tentar o desvio mínimo, a quase impercetível transgressão da linguagem.
Dois exemplos. Na página CVII: "Tenta resistir, o mais que pode,/ à asfixiante sensação de que o Tempo/ já não é o que não era". O leitor apressado poderá ler que o Tempo "já não é o que era". Todas as expectativas o encaminhavam nesse sentido. Mas o leitor atento tropeça num "não" suplementar, que produz um radical efeito retroativo sobre todo o fragmento. Veja-se por exemplo a página XXXI: "O que pode haver de carnal/ nos gestos da sedutora/ tem de ser sempre desmentido/ pelo que há de vegetal nos seus braços". Neste caso, o texto roda em torno da oposição entre carnal/vegetal. Mas enquanto a palavra "carnal" é para ser acolhida literalmente, a palavra "vegetal", induzindo uma série metafórica latente entre "braços/ramos" e "mulher/árvore" (que sustenta outros fragmentos do livro: "As mulheres que mais amo/ tinham todas raízes; e asas"), introduz uma assimetria na balança inicial da oposição esperada: de um lado, o peso do real ("carnal"), do outro o peso de uma metáfora (que é o "ser vegetal" de uma mulher?).
Qualquer destes exemplos ilustra de certo modo a dimensão profundamente retórica da sedução – se tivermos em conta que a retórica é uma forma de sedução generalizada pela linguagem, ou um modo discursivo de gerir a distância entre as pessoas. Mas a sedução tem um estatuto próprio no elenco das figuras. Como escreve David Mourão-Ferreira, “se bem que sensível à metáfora,/ a sedutora pratica mais a metonímia". Embora fosse necessário averiguarmos ainda o valor da alternativa "ser sensível a”/"praticar", o que me importa por agora é verificar que toda a sedução se caracteriza por uma espécie de desequilíbrio entre o salto que se anuncia (fauna convocada: galgos, tigres), e o movimento lateral que se produz, como se houvesse sempre uma reserva, uma velatura, um pudor, uma esquiva, um retraimento essencial, que implica um relançamento do gesto ou da atitude, numa deliberada fruição da expectativa e da infinita tensão que ela provoca. Tal como cada fragmento se recusa a dar o salto para o lado do poema, mesmo quando aceita revestir-se de algumas das suas formas, a sedução está sempre um passo atrás, ou metonimicamente ao lado, em relação ao pathos do desejo ou às figuras demasiado vincadas do sexual. Mas é precisamente esse modo como se retrai e se abriga numa espécie de ilimitada rede metonímica que permite que ela nos surja como uma sedução generalizada. Se se pode dizer, como sugeriram alguns tratadistas, que a metáfora é uma dupla metonímia, talvez nos seja lícito sugerir que a sedução é uma espécie de metonímia que se duplica para nos dar o sentimento de uma metáfora sempre adiada. Ou, se quiserem, é uma metáfora em diagonal. Porque "a palavra 'sexo' raramente se regista/ no dicionário da sedutora. Mas atravessa,/ em diagonal, cada uma das suas páginas."

“A sedução generalizada”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 8 de janeiro de 1994.



CARREIRO, José. “Jogo de Espelhos, de David Mourão-Ferreira”. Portugal, Folha de Poesia, 18-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/jogo-de-espelhos-de-david-mourao.html


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