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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Endechas a Bárbara



Endechas a uma cativa com quem andava de amores na Índia,
chamada Bárbara

Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

Ũa graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva.

             Luís de Camões


TÓPICOS DE ANÁLISE

• Retrato feminino singular, diferente do retrato ideal renascentista, imagem mais diretamente ligada ao real.
• Retrato valorativo apreciativo, hiperbolizado e realizado do geral para o particular.
• Figura bela, formosa, graciosa, serena, mais humana que divina.
• Sentimentos despertados no sujeito poético: a paixão (cf. primeira e última estrofes, por exemplo); esta figura feminina que desperta a paixão do poeta permite-lhe, igualmente, descansar a sua dor – nela enfim descansa / toda a minha pena.
• Referências cromáticas: permitem acentuar a beleza feminina, bem como o seu exotismo.
• Poesia lírica tradicional (medida velha – redondilha menor, versos de cinco sílabas métricas).
• Poema composto por cinco oitavas (estrofes de oito versos).
• Esquema rimático: abbacddc (rimas interpoladas e emparelhadas).
• Principais recursos expressivos utilizados: jogos antitéticos e trocadilhos (cativa / cativo– em que se joga com os sentidos literal e metafórico do termo – porque nela vivo / já não quer que viva, pera ser senhora/de quem é cativa, bem parece estranha / mas bárbara não – em que se joga com o sentido duplo de «estranha» (não usual, diferente, estrangeira) e com o nome «Bárbara» e o adjetivo «bárbara» –, e pois nela vivo, / é força que viva.



INTERTEXTUALIDADE


Paul Gauguin, "Arearea" ou "O cão vermelho", 1892
Paul Gauguin, "Arearea", 1892


Bárbora não   
                    
Cantando o poeta em sua escora
levara na fadiga antiga rima.
Ó moço que no leito discorres, cuida,
arde para que sinal torne tua amiga.
Contando que a viu em face distinta,
sua companheira sorriu somente.
Vai com ele na doce peia que mais não
pode viver se sabe. Amor, disse, e apôs
seu nome, sua ventura.
Então a doce morena mordeu o lábio,
mais rica, mais leve na canela.
Porte esguio que a alma aquece.
Com vagar sorriu, deitou olhar e
co’as mãos já humedecidas as escondeu.
"Fico grato, concretamente, de seu fastio
ou de seu intento." E ela calou. Sorriu.
Sorriu somente.
                    
José Maria de Aguiar Carreiro, Folha de Poesia, 2007-06-10

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CARREIRO, José. “Endechas a Bárbara”. Portugal, Folha de Poesia, 14-02-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/02/endechas-barbara.html


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