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domingo, 5 de abril de 2020

Inês de Leiria



Inês de Leiria

Encontrou Fernão Mendes
No interior da China
(E em que apuros ele ia!)
A velha portuguesa,
Chamada Inês de Leiria,
Que de repente reza:
Padre Nosso que estais nos céus...
Era de português o que sabia.

Ouvindo Fernão Mendes
Esta voz que soava
(Fernão cativo e cheio de tristeza!)
O português sorria...
Padre Nosso, que estais nos céus...
A velha mais não sabia,
Mas bastava.

Boa Inês de Leiria,
Cara patrícia minha,
Embora te fizesse
A aventura imortal
De Portugal
Chinesa muito mais que portuguesa,
- Pois por esse sorriso de Fernão
Tocas-me o coração.

Deste-lhe em tal ensejo,
Entre as misérias da viagem,
O mais gostoso e saboroso beijo
- O da Linguagem!

Afonso Lopes Vieira, Onde a Terra se Acaba e o Mar Começa.
Lisboa: Livraria Bertrand, 1940, pp. 39-40.

 

Poema inspirado no capítulo 91 da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, cujo episódio de Inês de Leiria a seguir se transcreve:

Uma mulher que estava ali presente […], ouvindo a nossa conversa respondeu:
– Coisa é essa de que ninguém se deve espantar, porque nunca ali vimos senão ficarem na maior parte sepultados no mar os que muito labutam no mar, e por isso, amigos meus, o melhor e mais certo é fazer conta da terra e trabalhar na terra, já que Deus foi servido de nos fazer de terra.
E dando-nos com isto dois mazes de esmola como a pobres, nos recomendou muito que não curássemos de fazer viagens compridas onde Deus permitia fazer as vidas tão curtas. Mas logo após isto, desabotoou a manga de um gibão de cetim roxo que trazia vestido, e arregaçando o braço nos mostrou uma cruz que nele tinha esculpida como ferrete de mouro, muito bem feita, e nos disse: – Conhece porventura algum de vós outros este sinal que a gente da verdade chama cruz, ou ouviste-o alguma hora nomear?
Ao que nós todos, em o vendo, pondo os joelhos em terra com devido acatamento, e alguns com as lágrimas nos olhos, respondemos que sim, a que ela dando um grito e levantando as mãos para o céu, disse alto: – Padre Nosso que estais nos céus, santificado seja o teu nome –; e isto disse-o na linguagem portuguesa, e tornando logo a falar chim, como quem não sabia mais do português que estas palavras, nos pediu muito que lhe disséssemos se éramos cristãos, a que todos respondemos que sim, e tomando-lhe todos juntos o braço em que tinha a cruz a beijámos e dissemos tudo o que ela deixara por dizer da oração do Padre-Nosso, para que soubesse que lhe falávamos verdade.


Apontamento sobre o episódio de Inês de Leiria, na Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto:

No que se refere ainda à abordagem das imagens do feminino na obra [Peregrinação] surge uma figura, a nosso ver, bastante interessante na medida em que se distingue de todas as outras pelas suas características. Essa figura é Inês de Leiria, que tem como traço distintivo o facto de ser mestiça. Inês de Leiria era filha de Tomé Pires, um português, que havia ido «por embaixador a el-rei da China» o qual se casara com uma gentia que convertera ao cristianismo.
Assim sendo, Inês de Leiria cresceu num ambiente cristão, ao qual se mantinha fiel, pois o seu pai havia convertido «muitos gentios à fé de Cristo, (…) que ali em sua casa se ajuntavam sempre aos domingos a fazer a doutrina». Os portugueses são, mais uma vez, beneficiados da caridade feminina, pois Inês de Leiria providencia-lhes mantimento e dinheiro, o que foi muito apreciado. Há, neste episódio uma identidade religiosa que vai permitir que se estabeleça uma relação de confiança. Este episódio revela-se também significante na medida em que nos mostra uma referência à mestiçagem, bem como ao processo de cristianização que ia sendo levado a efeito no Oriente.
Inês de Leiria pertenceria, certamente, a uma comunidade cristã que ainda manteria a autenticidade dos valores cristãos, tal como nos é dito: «E assim viviam todos muito conformes e amigos, sem haver ódio entre eles ou inimizade alguma.»

Identidade e Alteridade na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, dissertação de mestrado apresentada à Universidade de Aveiro, por Carla Margarida Martins Tavares, 2008.




CARREIRO, José. “Inês de Leiria”. Portugal, Folha de Poesia, 05-04-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/04/ines-de-leiria.html


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