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segunda-feira, 6 de abril de 2020

Não era noite nem dia, Manuel da Fonseca

Branco Cardoso, Alentejo 5http://brancocardoso.blogspot.com/2011/09/alentejo-pintura-oleo.html



ESTRADAS

Não era noite nem dia.
Eram campos campos campos
abertos num sonho quieto.
Eram cabeços redondos
de estevas adormecidas.
E barrancos entre encostas
cheias de azul e silêncio.
Silêncio que se derrama
pela terra escalavrada
e chega no horizonte
suando nuvens de sangue.
Era hora do poente.
Quase noite e quase dia.

E nos campos campos campos
abertos num sonho quieto
sequer os passos de Nena
na branca estrada se ouviam.
Passavam árvores serenas,
nem as ramagens mexiam,
e Nena, pra lá do morro,
na curva desaparecia.

Já de noite que avançava
os longes escureciam.
Já estranhos rumores de folhas
entre as esteveiras andavam,
quando, saindo um atalho,
veio à estrada um vulto esguio.
Tremeram os seios de Nena
sob o corpete justinho.
E uma oliveira amarela
debruçou-se da encosta
com os cabelos caídos!
Não era ladrão de estradas,
nem caminheiro pedinte,
nem nenhum maltês errante.
Era António Valmorim
que estava na sua frente.

— Ó Nena de Montes Velhos,
se te quisessem matar
quem te havera de acudir?

Sob este corpete justinho
uniram-se os seios de Nena.

— Vai te António Valmorim.
Não tenho medo da morte,
só tenho medo de ti.

Mas já a noite fechava
a saída dos caminhos.
Já do corpete bordado
os seios de Nena saíam
— como duas flores abertas
por escuras mãos amparadas!
Ai que perfume se eleva
do campo de rosmaninho!
Ai como a boca de Nena
se entreabre fria fria!
Caiu-lhe da mão o saco
junto ao atalho das silvas
e sobre a sua cabeça
o céu de estrelas se abriu!

Ao longe subiu a lua
como um sol inda menino
passeando na charneca…
Caminhos iluminados
eram fios correndo cerros.
Era um grito agudo e alto
que uma estrela cintilou.
Eram cabeços redondos
de estevas surpreendidas.
Eram campos campos campos
abertos de espanto e sonho…

Manuel da Fonseca (1911-1993), Planície, Coimbra, 1941




As cores, os sons e os movimentos da planície alentejana estão, por exemplo, magistralmente reunidos no poema “Estradas”, composição de Planície. Cinematograficamente, o movimento da objetiva em abertura, que vai de um plano de proximidade a um plano longínquo, é conseguido graficamente através da repetição sintática do substantivo, como a sugerir horizontalmente a vastidão longilínea da terra:

Não era noite nem dia
Eram campos, campos, campos
abertos num sonho quieto. (“Estradas”, poema de Planície)

Ainda é digno de nota o emprego dos significantes sensoriais no poema, que remetem à audição (o silêncio, os passos de Nena que sequer se ouviam na estrada, a ausência do vento, que mais uma vez implica em silêncio, e contribuem para a atmosfera de isolamento da menina que terá ali a sua primeira experiência de amor, e adiante os rumores de folhas que anunciam a chegada do amante), ao olfato (o perfume do campo de rosmaninho), ao tato (os seios que tremem sob o corpete justinho, e a seguir são amparados por escuras mãos, a boca fria de Nena que se entreabre) e à visão (as diversas cores que brilham no poema: o azul e o vermelho na primeira estrofe; o branco, o negro e o amarelo na segunda; a oposição entre a escuridão da noite – física e metafórica, pois a noite é também metáfora do amante de escuras mãos que fechava a saídas dos caminhos, impedindo a passagem de menina - e a claridade trazida pela Lua, nas estrofes finais, remetendo ao percurso de descoberta da sexualidade vivido pela jovem menina tornada mulher, já anunciado no verso final da primeira estrofe “Quase noite e quase dia”, a noite física e o dia metafórico de início da vida de Nena).

O tom da narração lembra ainda o exercício do contador de histórias, através de vários recursos, como:

1) o predomínio dos verbos no pretérito imperfeito, típico das narrativas tradicionais, como os contos de fadas, o que, associado à técnica cinematográfica da linguagem, de ampliação e redução da objetiva, dá a impressão de que a história vai se desenrolando às vistas do leitor, como em um filme;

2) as anáforas do verbo ser no pretérito imperfeito, no versos da primeira estrofe – “Eram campos, campos, campos” / “Eram cabeços redondos” / “Era a hora do poente”, ou a repetição paralelística do advérbio “Já”, complementado pelo advérbio “quando”, nos versos da segunda estrofe – “ da noite que avançava”/ “ estranhos rumores de folhas”/ “quando, saindo um atalho”, que sugerem uma ação em continuum interrompida por outra, assim como a estrada da vida da personagem de repente se modifica;

3) a atmosfera típica das cantigas de amigo medievais, que encenam o exercício do amor através dos elementos da natureza - como a moça que vai ao alto e encontra o cervo que volve a água, ou a moça que vai lavar camisas e as tem levadas pelo vento, que metaforiza o amado –; aqui a experiência de amor vem conotada nos elementos da natureza, como as estevas, os cabeços redondos, a noite, as flores, a estrela, e nos significantes sensoriais que revelam uma linguagem sensorial bastante correlata à experiência vivida no nível do conteúdo;

4) a repetição paralelística de expressões, como as referências aos seios de Nena – a cada referência modificados num crescente de aproximação erótica -, ou a repetição com variação dos versos que fazem abrir e fechar o poema, mostrando no entanto a diferença da paisagem, e, conseqüentemente, das vidas que nela se personificam:

Não era noite nem dia.
Eram campos, campos, campos
abertos num sonho quieto.
Eram cabeços redondos
de estevas adormecidas. (versos 1 a 5)
Eram cabeços redondos
de estevas surpreendidas.
Eram campos, campos, campos
abertos de espanto e sonho... (versos 68 a 70)



FONTE:
“Memória e tradição do contar na experiência e na permanência neorrealista”, Michele Dull Sampaio Beraldo Matter. Congresso Internacional da Associação Internacional de Professores de Literatura Portuguesa (24.: 2014: Campo Grande, MS). Anais do 24º Congresso Internacional de Professores de Literatura Portuguesa, 20 a 25 de outubro de 2013, Campo Grande/MS/Brasil [recurso eletrônico] / Santos, Rosana Cristina Zanelatto... [et al.], organizadores. – Campo Grande: Ed. UFMS, 2014.



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CARREIRO, José. “Não era noite nem dia, Manuel da Fonseca”. Portugal, Folha de Poesia, 06-04-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/04/nao-era-noite-nem-dia-manuel-da-fonseca.html



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