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quarta-feira, 8 de abril de 2020

Receção de Florbela Espanca e Judith Teixeira, em Portugal, nos anos 20 do séc. XX



SOB A MIRA DA IMPRENSA: MULHER, LITERATURA E JORNAL EM PORTUGAL NOS ANOS 20.
Autor: Suilei Monteiro Giavara
Coautor: Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento

1. Contextualização
Atualmente, os trabalhos cujo escopo é o trinómio mulher/literatura/jornal têm trazido para o debate importantes questões relacionadas a este espaço de produção cultural do qual as mulheres estiveram por muito tempo alheias.
Em Portugal, a partir da segunda metade do século XIX, a imprensa exerceu um importante papel no desenvolvimento cultural, político e intelectual do país, tornando-se o suporte predileto dos escritores para a divulgação das suas ideias. Em muitos casos, a credibilidade de um escritor era fruto da divulgação de um texto seu pela imprensa, ou, no caminho inverso, a confiança do público-leitor em um determinado periódico derivava da presença de um ou outro escritor no seu rol de colaboradores.
Naquele período de transformações sociais e políticas, os jornais eram os responsáveis por ajustar “a perceção social das realidades” e os escritores, imbuídos de ideologias que os faziam adotar a missão de profetas, buscavam encaminhar o povo para um “novo mundo”. (RAMOS, 2001, p. 48) Uma rápida consulta aos periódicos no início do século XX (1919 a 1926) pode confirmar que essa “missão profética” da imprensa perdurou por mais tempo e as campanhas em favor da república, contra ou a favor da liberação do aborto, pela moralização política e outras questões que dividiam a opinião pública eram temáticas não só noticiadas, mas também debatidas, abundantemente nas colunas dos jornais de caráter generalista.
A presença das mulheres neste universo intelectual de predominância masculina, portanto, só pode ser vista como uma vitória conseguida a duras penas – no sentido figurado e próprio do termo -, pois requereu muita coragem e desprendimento, às vezes até monetário – para verem suas criações levadas a público. Mais do que isso, o destemor delas foi o agente da expansão do seu espaço de voz para além do limiar doméstico, fazendo, consequentemente, emergirem ações tentaculares e conjuntas que buscavam assegurar o direito à igualdade de género nas várias instâncias do conhecimento. Antecipadamente, vale lembrar que, nos idos da década de 20, a presença da mulher no universo letrado - inclusa aí a imprensa - era reconhecidamente ampla, esboçando as primeiras letras da história da mulher portuguesa na imprensa.
Esse sistema de influências, já no final do século XIX, fora apontado por Ramalho Ortigão quando, juntamente com a precariedade do sistema educacional que não preparava a mulher para as suas funções de mãe e de esposa, ele condenou as influências da literatura francesa nos hábitos da mulher portuguesa, atribuindo a esta literatura o ônus pela crescente onda de adultério que se instalava na sociedade.
Contudo, também nas primeiras décadas do século seguinte, essa “ligação perigosa” da mulher com a palavra – tanto como leitora quanto como enunciadora – era um receio que ocupava espaço nas discussões empreendidas pela intelectualidade em diversos jornais do período. Um bom expoente deste panorama histórico-social é um artigo presente no jornal A Época, órgão dirigido por José Fernando de Sousa – vulgo Nemo – que declaradamente optava por uma vertente doutrinária ligada ao catolicismo. Sob a assinatura de Júlia Lopes de Almeida, o texto, embora apresente um tom precavido quanto à literatura, não só ressalta os “benefícios” que ela pode trazer para a mulher, principalmente quanto à função desta como educadora, mas também deixa perceber uma inquietação muito similar à de Ortigão. Vejamos o texto:
Ler para ensinar
O livro é um amigo: n’elle temos exemplos e conselhos, n’elle um espelho onde tanto as nossas virtudes como os nossos erros se reflectem. Repudial-o seria loucura, escolhel-o é sensato.
A estante de uma mulher de espírito e de coração, isto é, de uma mulher habilitada a aprehender e conservar o que ler; que souber que isso a instrue, a torna apta para dirigir a educação dos filhos, dando-lhes superioridade e largueza de vistas; a estante de uma mulher inteligente e cuidadosa que ama os seus livros não como mero adorno de gabinete, mas como a uns mestres sempre consoladores e sempre justos, – essa estante é um altar onde o seu pensamento vai, cheio de fé, pedir amparo numa hora de desalento, e conselho num momento de dúvida. [...]
Aprender para ensinar! Eis a missão sagrada da mulher.
É preciso para isso que a sua leitura seja sã e bem feita.
O gosto bem educado transmitir-se há sem mácula e sem esforço aos filhos. [...]
Vamos, minhas amigas; comecemos a ler, mas com cuidado.
*
A mulher, que é um ente infinitamente melindroso, sensível, vibrátil, delicado, tem o dever de adorar a poesia. (ALMEIDA, 1922, p. 3)

As colocações da autora, que são condizentes com o seu status de escritora e, portanto, defensora da leitura, deixam vislumbrar um sintoma da falência do projeto educacional burguês para a mulher que investiu na formação, mas burlou o acesso a ocupações em que essa formação poderia ser necessária, instituindo uma situação complicada, uma vez que as mulheres, agora não mais alheias à cultura letrada, ainda não podiam usufruir dos mesmos privilégios dos homens. Isso pode ser comprovado se observarmos, por exemplo, as academias literárias do período nas quais a presença de mulheres era quase inexistente.
Para a autora, o problema da leitura em específico, exigia certa parcimónia – “Repudial-o seria loucura, escolhel-o é sensato” – pois, de facto, em uma nação que desejava prosperar e em que muitas mulheres já haviam adquirido um grau mesmo que elementar de alfabetização - algumas delas, inclusive, já estavam a lutar para ingressar nos liceus e universidades - não seria mais possível fazer com que permanecessem alheias à leitura. Por outro lado, embora a figura de Júlia Lopes de Almeida seja associada por alguns estudiosos a uma causa de certo modo feminista, a função pedagógica que ela atribui à literatura na formação da mulher como “dona de casa”, acaba por coadunar-se com a conceção burguesa de educação feminina cujo principal objetivo era prepará-la não somente para desempenhar condignamente a sua “santa missão”, mas também para ser a alegoria do sucesso da conjuntura burguesa.
No Diário de Notícias, órgão da imprensa que tinha o propósito de ser o mais neutro possível, a coluna “De mulher para mulher”, rubricada por Gabriela Castelo Branco, era uma seção onde o público-leitor feminino podia encontrar conselhos práticos para o dia-a-dia das mães e donas-de-casa em geral, bem como outros aspetos referentes ao universo doméstico ou feminil. No texto ora em evidência, já no subtítulo – “A missão da mulher portuguesa na Literatura, na Arte e no Lar” – a autora subtilmente promove a associação da cultura da mulher com o ambiente doméstico. No entanto, do mesmo modo que usa um tom ufanista para exaltar o poder do ser feminino no “destino” da humanidade, seja como incentivadora dos “feitos heroicos” dos homens ou como “responsável” direta por tais factos numa clara adesão ao pensamento positivista, ela diz que proporcionalmente as mulheres também são capazes de provocar neles as maiores “baixezas” e “ações malignas”.
Mesmo afirmando que o advento da modernidade produzira inegáveis mudanças no perfil feminino e, por isso, era impossível desejar que a mulher do século XX tivesse o mesmo espírito abnegado e compassivo de outrora, Castelo Branco não deixa de incentivar que suas leitoras se aplicassem a ter um comportamento estoico a fim de “fazer do momento que passa um sorriso de Bondade, um cântico de fé, um turíbulo de Arte e de Beleza.”
Especificamente com relação à literatura, a autora assegura que a mulher:
cultiva[va] já uma mão quasi varonil, ela pode ser a paladina dos valores ideais, da moralidade, da perseverança e da fé num melhor futuro. Ela deve dar à literatura esse “graal” subtil e feminino que se semelha ao perfume duma flor. Sobretudo ser mulher no pudor, na abstenção do materialismo, no cultivo das nobres aspirações. (BRANCO, 1925, p. 2)

O uso do vocábulo “varonil” para atestar que as mulheres haviam adquirido uma maior desenvoltura na arte de escrever, além de reafirmar a ideia de que o padrão universal usado para medir a qualidade da escrita produzida por elas continuava a ser as obras masculinas, também admite que, por esse motivo, as mulheres estavam habilitadas a se tornarem “paladinas” da moralização do país. Mais do que isso, a insistência com que ela ressalta os valores “morais” e a ênfase no “pudor” como virtude feminina faz do seu texto uma cópia quase fiel do Emílio, em que Rousseau afirma que a natureza deu à mulher o pudor para conter-lhe os “desejos ilimitados” e também quando ele diz que uma mulher que não cumpre o papel moral dado pela natureza ao sexo “dissolve a família e quebra todos os elos da natureza.” (ROUSSEAU, 1990, p.185)
O que se percebe aqui é um desmesurado cuidado com a mensagem transmitida pela literatura e com os efeitos que ela poderia provocar na mentalidade feminina, apesar das concepções inovadoras acerca do fenómeno literário. Em todos esses textos fica evidente uma preocupação em usar a literatura para “forma(ta)r” o ser feminino para ser e pensar como “mulher”. Trata-se, portanto, de uma discursividade que se constrói sobre parâmetros morais, o que é uma incipiência com relação aos caminhos que a literatura já havia percorrido até aquele momento, como se todos os avanços em torno do assunto fossem processos alheios às mulheres "literatas”, como muitos taxavam pejorativamente as escritoras.

 

2. Um “coro de pasmaceiras”: Florbela Espanca e Judith Teixeira nos periódicos
A presença de Florbela Espanca e de Judith Teixeira nos periódicos não foi tão frequente como a de outras escritoras como Beatriz Delgado, Cândida Ayres de Magalhães, Fernanda de Castro, Branca da Gonta Colaço, Laura Chaves, Mercedes Blasco (Colombine), Virgínia Vitorino e outras cujos nomes estampavam nas páginas dos jornais diários de Lisboa durante semanas.
Renata Soares Junqueira assegura que o relacionamento de Florbela com a crítica desde o princípio não foi marcado por "nobre feitos". Para ela, a maior parte das apreciações relativas ao trabalho da poetisa foi feita por pessoas que "demonstraram pouca aptidão à verdadeira crítica literária." (JUNQUEIRA, 1992, p. 27) Acresce ainda o facto de que tais críticos, em grande parte das vezes investidos de pré-julgamentos acerca da vida de Florbela, acabavam por ler a obra a partir desse mote. De facto, as poucas referências à Florbela Espanca nos periódicos permitem traçar um esboço do quão sua passagem abalou o universo letrado português. Embora a qualidade da sua obra não tenha sido desmerecida em vários dos textos a seguir, as críticas comumente não passavam de cordialidades, ou de um “coro afinado de pasmaceiras”, conforme assegura Maria Lúcia Dal Farra em "O Affaire Florbela Espanca". (DAL FARRA, In: ESPANCA, 1996, p. 10) que, quando não trazem à tona aspectos reprováveis de sua biografia, contentam-se simplesmente com exaltar-lhe a capacidade de expor o "sentimento" de modo tão tenaz, passando ao largo pelo aspecto erótico.
Do Livro de Mágoas, por exemplo, o colunista Armando Ferreira em A Capital mais não faz do que lamentar o facto de Florbela não ser tão conhecida quanto Cândida Ayres de Magalhães, cuja obra, Trevas Luminosas, foi prefaciada por Maria Amália Vaz de Carvalho, ou de ela não ter um "nome de família" que lhe garantisse uma entrada fácil na galeria das escritoras então prestigiadas, mas não se digna a sequer citar um verso da obra que pudesse demonstrar a subentendida qualidade literária de Florbela. (FERREIRA, 1919, p.1)
Também uma coluna anónima de O Século ressente-se da tristeza demonstrada pela poetisa na referida obra, principalmente porque Florbela vivia "ainda em plena mocidade”. Mais do que isso, o articulista diz que este livro é um “mimo”, que Florbela trabalha “magnificamente o soneto” e, sem se desviar da maioria das apreciações feitas aos versos escritos por mulheres, diz que ela coloca em sua obra “toda a ternura, todo o sentimento de uma alma de mulher. [...] Escreve versos simples e n'eles se mostra bem feminina.” (O Século, 1919, p.2)
Como já mencionou Maria Lúcia Dal Farra em seu já mencionado texto, (DAL FARRA, In ESPANCA, 1996, p. 10) a poetisa só conheceu a simpatia de amigos próximos como, por exemplo, João Botto de Carvalho, seu colega de classe na Faculdade de Direito de Lisboa, que lhe dedica uma coluna em A Capital em que declara a sua amiga como a primeira poetisa portuguesa. Ao longo do texto, para censurar a posição da crítica em relação à Florbela, Botto assegura que são consideradas "grandes artistas" aquelas poetisas para quem "a vida apenas as interessa[va] pelo prisma do amor", temática que, na visão dele, já estava desgastada e elas não conseguiam dar-lhe uma "nova tonalidade" como o fez a poetisa alentejana. Ao final da coluna, faz uma breve menção ao Livro de Máguas, ressentindo-se de que a crítica não o tenha dado a devida atenção e merecimento. (CARVALHO, 1922, p. 2) Como é possível verificar, embora no texto Botto faça juz à amizade de ambos, ele também não vai além das louvaminhas de costume.
E também foi Botto de Carvalho quem, em 1923, escreveu um texto n'A Capital (CARVALHO, 1923, p. 1) em rebate a uma crítica ao Livro de "Sóror Saudade" publicada à página 190 da Ilustração Portuguesa do dia 10 de fevereiro do referido ano. Em seu texto, o colega de turma da poetisa questiona A. de A. – signatário da crítica – sobre os motivos que o levaram a elogiar a obra Namorados, de Virgínia Vitorino, em uma recensão destinada à obra florbeliana, afirmando, inclusive, que esta teria sido a fonte de inspiração para a poetisa alentejana. No entanto, o próprio Botto assegura que isso não seria possível, pois, em 1919, portanto um ano antes da edição da obra de Vitorino, Florbela já lançara Livro de Mágoas contendo apenas sonetos. A indignação de Botto de Carvalho reside principalmente no facto de o outro crítico literário enaltecer a obra de Vitorino, simplesmente para menosprezar a de Florbela Espanca, contudo sem estar devidamente inteirado dos factos.
Sobre esta segunda obra, também em uma breve nota referente aos "Livros novos" o jornal O Século exalta, além do "requintado lirismo" dos versos, a "forma curada" e a capacidade da poetisa de versejar baseada em "delicadíssimos conceitos", o que a colocava "entre as poetisas de maior merecimento da nossa terra." (Anônimo, 1923, p. 5) O Diário de Notícias, na seção "Cronica literária" também enaltece Livro de "Sóror Saudade" como uma obra "cheia de sentimento e emoção" em que os possíveis defeitos são compensados "pela largueza da inspiração, sensibilidade verdadeiramente feminina e sinceridade com que descreve os melhores impulsos de sua alma." Por fim, o escritor diz que todos os sonetos da citada obra têm "um pensamento elevado e traduzem, sem exceção, uma ideia nobre e cheia de ternura." (Anônimo, 1923, p. 4).
Já o jornal católico A Época, também em um pequeno comentário acerca dos livros recém-chegados para apreciação, elogia a capa e diz que "contem versos lindos". Contudo, menospreza o facto de nele predominar "demasiado exuberante o sentimento amoroso." (Anônimo, 1923, p. 03). Semanas depois, entretanto, o diretor José Fernando de Sousa, vulgo Nemo, escreve um longo artigo sobre as poetisas portuguesas iniciando com um comentário nada convidativo acerca do facto de que todas as obras a que tivera acesso tinham sido compostas exclusivamente de sonetos: "Fartura de bombas e de sonetos; é o que se vê. Não sei qual prefira." (SOUSA, 1923, p. 3). Prossegue associando a monotonia do ritmo da leitura ao do comboio em que viajava, ao que diz ter sido um "verdadeiro feito de Hércules." Depois, inicia uma crítica também nada afável à temática amorosa que ele considera perniciosa para as jovens moças, pois as desvia de suas reais virtudes. Ao fim da primeira parte do texto, questiona se no momento estava a haver uma:
nova irrupção de romantismo, que da vida só conhece o amor alheio a quaesquer deveres, egoísta, sensual, sob o diáfano manto da carnalidade espiritualisada, ignorante da moral, sem uma elevada concepção do destino, sem preocupações da família, do lar, da sociedade, da religião? Acaso a mulher deixou de ser filha, esposa e mãe para ser apenas amante? (SOUSA, 1923, p. 3)

Toda essa introdução feita por Nemo prepara de antemão o leitor para a recensão que virá acerca deste segundo livro de poesias de Florbela Espanca de que ele elogia a "musica do verso heroico, fluido como o murmuro fio de água serpenteando mansamente entre flores." (SOUSA, 1923, p. 3) Apesar disso, essa apreciação amistosa logo cede lugar a uma crítica ácida em que o resenhador caracteriza a obra como uma blasfêmia devido às "hyperboles amorosas", afirmando que Florbela tem "atitude de escrava de harem" e que ela é "uma alma ignorante dos seus altos destinos". Além disso, ajuíza que o livro é “digno de ser recitado em honra da Vênus impudica” e que a poetisa deveria purificar os lábios com "carvão ardente." Enfim, desfere o golpe final ao afirmar que “é um livro mau o seu, um livro desmoralizador.” (SOUSA, 1923, p. 3, col. 2) Embora o julgamento realizado por este último periódico seja o mais depreciativo deles, é o único que se detém a apreciar as senhas do que futuramente refulgiria na derradeira obra da poetisa, Charneca em Flor: a capacidade de verbalizar sensações eróticas sem intimidação.



Acerca da produção poética de Judith Teixeira, a despeito de toda polêmica envolvendo a apreensão de seu primeiro livro, Decadência (1923), em grande parte, as recensões restringiam-se a elogiar o esmero e o luxo da edição, mas viam o “estro pouco vulgar em poetizas” como um diferencial que lhe garantiria "um perfeito êxito", como assegura uma nota, denominada "Livros novos", em O Século. (Anônimo, 1923, p.2)
Em outra apreciação, sem deixar de elogiar “o belíssimo papel” e a composição, Matos Sequeira diz que Decadência parece uma obra de “uma senhora, embora já corresse por ahi que podia ser de um homem”. Como já foi dito, havia uma conveniência que, de certa forma, autorizava certos temas na escrita feminina, mas proibia outros. Assim, Sequeira afirma que não pôde, "por pudor próprio", comentar o conteúdo do livro que, a seu ver, era inconveniente aos padrões morais da época e, mais do que isso, que teve de escondê-lo tão logo este lhe chegou às mãos. (SEQUEIRA, 1923, p.1)
Uma das poucas recensões mais racionais acerca da apreensão e da obra judithiana foi assinada por Antonio de Monsanto numa coluna intitulada "Livros proibidos", em que ele considera o ato um extremismo "contraproducente", pois "o gérmen de dissolução continua alastrando, sem que um ligeiro obstáculo embargue a sua acção deleteria." Exclusivamente com relação aos livros, Monsanto se mostra indignado com o panfleto Sodoma Divinizada, de Raul Leal, denominando-o "aborto literário"; e, por não conhecer Antonio Botto, mostra-se lacunar em relação ao Canções. De Decadência, não foge à regra de elogiar a elegância da edição e afirma não haver motivo para alarde, visto que na obra "aparte um ou outro incidente profano mais audacioso, sempre estilizado com elevação, emotividade, delicadeza" não há nada que fira o "pretendido pudor dos leitores." Pelo contrário, conforme ele assegura, os versos de Judith Teixeira são "todos recortados em ondeantes contornos musicais, levantando-se, por vezes, um fremito de tortura, uma pulsação de dor, impessoal e abstracta, que logo se transfunde e se perturba em voluptuosidade impenitente." (MONSANTO, 1923, p. 1)
Na mesma linha, Luiz Oliveira Guimarães também enfatiza o primor da edição e, de imediato, faz questão de afirmar que não estava “absolutamente de acordo com certas conclusões de Judith Teixeira”, referindo-se aí à sua temática pagã e ao pessimismo que há em alguns poemas. Contudo, a crítica se esvai na opinião evasiva de seu autor que considera “preferível” que a obra dela fosse menos “decadente e menos triste e cantasse, em vez da morte, a sua mocidade radiosa e triunfante”. (GUIMARÃES, 1923, p.1 a) Poucos dias depois, o colunista faz referência a uma nova produção de Teixeira, Castelo de Sombras, que ele inicia com uma comparação entre a poética judithiana e a de Beatriz Delgado, segundo seu ponto de vista, aquela é mais "intelectual" e "profunda, pois "procura descortinar os mistérios da alma", enquanto esta se mantém na "epiderme". Por fim, assegura que este livro "marca sobre o primeiro um triunfo incontestável." (GUIMARÃES. 1923, p. 01 b)
Depois desse tempo, a presença de Judith permaneceu ofuscada até ela lançar seu derradeiro livro de poemas, Nua. Poemas de Bysancio, a que A Capital, em nota anônima de poucas linhas, assegura "um êxito colossal". (Anônimo, 1926, p.1). Também o Diário de Notícias faz uma referência lacônica a esta obra, afirmando que nela a poetisa acentuou "com mais relevo" os notáveis dotes de artista revelados nas anteriores, pois "descreve com a maior emoção as lutas em que se debate a sua alma de mulher […]." (Anônimo, 1926, p. 2)
Por fim, merece destaque a coluna publicada em A Capital, pois é uma das poucas que reconhece a apurada sensibilidade lírica de Judith Teixeira, bem como a sua perceção estética invulgar, por isso o autor do texto denomina-a "poetisa-artista" cujos versos apresentam uma "linguagem rica de imagens, muito variada e harmoniosa", um pensamento traduzido em "frases engenhosamente atraentes" e um sentimento expresso através de "palavras animadas e coloridas". Enfim, a obra "tem o lirismo da alma, a ardência do corpo – e a fantasia do sonho. É completo." (Anônimo, 1926, p. 01)
Como podemos perceber pelas poucas resenhas expostas, o erotismo presente na obra de ambas, quando não é tratado de forma depreciativa, é quase que apagado totalmente, como se fosse um aspecto irrelevante na composição das mesmas. Entretanto, esse silêncio não pode ser menosprezado, uma vez que é uma forma de não trazer à tona justamente o diferencial de ambas, fazendo-as com isso permanecer em um âmbito menos valorizado no contexto literário português.

Referências bibliográficas:
ALMEIDA, Júlia Lopes de. “Os livros”. A Época, Lisboa, 03 de ago. de 1922, p. 3, col 1 e 2.
Anônimo. O Século, Lisboa, 10 de ago. de 1919, p.2, col 6.
_____. “Livros novos”, O Século, 17 de fev. de 1923, p.2.
_____. A Época, Lisboa, 06 de mar. de 1923, p. 03, col. 03.
_____. “Livros Novos”. O Século, Lisboa, 11 de mar. de 1923, p. 5, col 2.
_____. “Crónica literária”, Diário de Notícias, Lisboa, 29 de mar. de 1923, p. 4.
_____. A Capital, Lisboa, 05 de mai. de 1926, p.1.
_____. Diário de Notícias, Lisboa, 18 de mai. de 1926, p. 2.
_____. A Capital, Lisboa, 21 de jun. de 1926, p. 01.
BRANCO, Gabriela Castelo. “De mulher para mulher”. Diário de Notícias, Lisboa, 14 de dez. de 1925, p. 2.
CARVALHO, João Botto de. A Capital, Lisboa, 07 de jan. de 1922, p. 2, col 1.
_____. A Capital, Lisboa, 16 de fev. de 1923, p. 1, col. 6 e 7.
DAL FARRA, Maria Lúcia. “O affaire Florbela Espanca”. In: ESPANCA, Florbela. Poemas. Maria Lúcia DaI Farra (org.). 1. ed.. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p.p. 10-26
FERREIRA, Armando. “A semana literária”. A Capital, Lisboa, 9 de ago. de 1919, p.1.
GUIMARÃES. Luís Oliveira. “O que se escreve e o que se lê”. A Capital, Lisboa, 19 de mai. de 1923, p.1. a
_____. O que se escreve e o que se lê. A Capital, 26 de mai. de 1923, p. 01 b
MONSANTO, António. “Livros proibidos”. A Capital, Lisboa, 22 de mar. de 1923, p. 1
RAMOS, Rui. História de Portugal. v. 6, (Dir.) José Mattoso. Lisboa: Editorial Estampa, 2001.
ROUSSEAU, Jean- Jacques. Emílio. V. 2, Mira-Sintra: Europa-América, 1990.
SEQUEIRA, Matos. O Mundo, Lisboa, 28 de fev. de 1923, p.1
SOUSA, José Fernando de. A Época, Lisboa, 01 de abr. de 1923, p. 3, col. 1.

Fonte:

“Sob a mira da imprensa: mulher, literatura e jornal em Portugal nos anos 20”, Suilei Monteiro Giavara e Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento. Congresso Internacional da Associação Internacional de Professores de Literatura Portuguesa (24.: 2014: Campo Grande, MS). Anais do 24º Congresso Internacional de Professores de Literatura Portuguesa, 20 a 25 de outubro de 2013, Campo Grande/MS/Brasil [recurso eletrónico] / Santos, Rosana Cristina Zanelatto... [et al.], organizadores. – Campo Grande: Ed. UFMS, 2014.
 
 
 


CARREIRO, José. “Receção de Florbela Espanca e Judith Teixeira, em Portugal, nos anos 20 do séc. XX”. Portugal, Folha de Poesia, 08-04-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/04/rececao-de-florbela-espanca-e-judith.html


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