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terça-feira, 11 de agosto de 2020

Bach: Variações Goldberg

 


BACH: VARIAÇÕES GOLDBERG

 

A música é só música, eu sei. Não há

outros termos em que falar dela a não ser que

ela mesma seja menos que si mesma. Mas

o caso é que falar de música em tais termos

é como descrever um quadro em cores e formas e volumes, sem

mostrá-lo ou sem sequer havê-lo visto uma única vez.

Vejamo-lo, bem si, calados, vendo. E se a música

for música, ouçamo-la e mais nada. No entanto,

nenhum silêncio recolhido nos persiste além

de alguns minutos. E não dura na memória com

silêncio. Ou se dura, esse silêncio cala

a própria música que adora. Porque a música

não é silêncio mas silêncio que

anuncia ou prenuncia o som e o ritmo.

Se os sons, porém, não são de devaneio,

e sim a inteligência que no abstracto busca

ad infinitum combinações possíveis bem que ilimitadas;

se tudo se organiza como a variada imagem

de uma ideia despojada de sentido;

se tudo soa como a própria liberdade dos acasos lógicos

que os grupos, e os grandes números, e as proporções

conhecem necessários; se tudo repercute como

em cânones cada vez mais complexos que não desenvol-

vem um raciocínio mas o transformam de um si mesmo em si;

se tudo se acumula menos como som que como pedras

esculpidas em volutas brancas e douradas cujos

recantos de sombra são um trompe-l’œil

para que elas mais sejam em paredes curvas ;

se uma alegria é força de viver e de inventar e de

bater nas teclas em cascatas de ordem;

e se tudo existiu na música para que tal triunfo

e dele descende tudo o que de arquitectura

possa existir em notas sem sentido – COMO

não proclamar que essa grandeza imensa

não se comove com íntimos segredos (mesmo implica

que não haja segredo em nada que se faça

a não ser o espanto de fazer-se aquilo),

é como que uma cúpula de som dentro da qual

possamos ter consciência de que o homem é, por vezes,

maior do que si mesmo. E que nada no mundo,

ainda que volte ao tema inicial, repete

o que foi proposto como tema para

se transformar no tempo que contém. Quando, no fim,

aquele tema torna não é para encerrar

num círculo fechado uma odisseia em teclas,

mas para colocar-nos ante a lucidez

de que não há regresso após tanta invenção.

Nem a música, nem nós, somos os mesmos já.

Não porque o tempo passe ou porque a cúpula se erga,

para sempre, entre nós e nós próprios. Não. Mas sim porque

o virtual de um pensamento, se tornou ali

uma evidência: se tornou concreto.

Um concreto de coisas exteriores – e o espanto é esse –

igual ao que de abstracto têm as interiores que o sejam.

Será que alguma vez, senão aqui,

aconteceu tamanha suspensão da realidade a ponto

de real e virtual serem idênticos, e de nós

não sermos mais o quem ouve, mas quem é? A ponto de

nós termos sido música somente.

 

Jorge de Sena, 9 de janeiro de 1966.

Virginia Naughton,  Goldberg Variations
Goldberg Variations, Virginia Naughton



CARREIRO, José. “Bach: Variações Goldberg”. Portugal, Folha de Poesia, 11-08-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/08/bach-variacoes-goldberg.html



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