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domingo, 2 de agosto de 2020

Emanuel Jorge Botelho: Dizeres de Atalaia



Emanuel Jorge Botelho: a asa batida sobre o medo

Em dois volumes, a obra poética completa de Emanuel Jorge Botelho.

Dizeres de Atalaia I

 

Emanuel Jorge Botelho (Ponta Delgada, 1950) é um poeta e uma personalidade singular. Talvez como todos os grandes poetas. Mas este mais. Pelo seu viver apartado das luzes da ribalta, pelo seu viver na ilha (S. Miguel), mas nesta se instala o mundo inteiro. Foi professor, fez parte do Grupo de Intervenção cultural Açoriano, fundou e dirigiu a revista Aresta e coordenou o suplemento cultural do jornal Correio dos Açores.

Publicou muito, e muito dispersamente desde sempre. Sempre bem acompanhado em edições ou editores menores (leia-se maiores): Frenesim, Black Sun’s, & Etc, Sistema Solar, Averno... muitas edições de autor. Esta última lançou em dois volumes a obra poética completa (cf. artigo neste jornal de Luís Miguel Queirós A poesia tornou-se um território de pequenas editoras, de 8/5/2020).

Como objecto, apetece manusear, e como conteúdo revela a dimensão maior de um autor. Em 2017, as crónicas já haviam sido reunidas em Letras Lavadas. Muitos textos dispersos surgiram em revistas (Telhados de Vidro, Cão Celeste), integraram antologias (Língua Morta, Companhia das Ilhas), surgiram em folhas de autor assinadas apenas por si ou com outro(s), sob vários pretextos. Pretextos que são, aliás, trampolins para o arvorar de um mundo de palavras. Palavras que se podem filiar na origem, tantas vezes explicitada, ou se desprendem e ganham fôlego, asas (palavra que o poeta reitera).

Manuel de Freitas, autor do posfácio, pega numa epígrafe de Luiza Neto Jorge que aquele usa para encetar a sua série Urbano (um dos maiores pintores açorianos) — ‘“Não podendo falar para toda a terra/ direi um segredo a um só ouvido’”. Freitas aproxima do poeta autores que se revelaram pelos anos 80. De Al Berto a Carlos Poças Falcão, Fátima Maldonado, Adília Lopes ou Rui Baião, entre outros, portadores de um modo nocturno, exausto e desolado de ser e de ver. Chama-lhe a “geração invisível”. Mas Emanuel Jorge Botelho é também um grande leitor — o que densifica a sua poesia e estende as redes. Herberto Helder, Ramos Rosa são presenças manifestas, Antero obviamente. Botelho firma uma poética de nomes próprios. Nomes que dão nome a um poema, ou poema dedicado a um poeta, ou personalidade, vivos ou mortos. Listando esses nomes que são sempre resultado de uma emoção tornada escrita, temos a constelação de influências e cumplicidades do autor. Quem ler, percebe o em-comum desse universo. Pavese, talvez o mais assíduo, Michaux, Genet, Artaud, mas também Jim Morrison. Vários autores portugueses convocados: Vítor Sousa Tavares, Santos Barros, António Barahona, Manuel de Freitas, Inês Dias, Rui Nunes, Fernando Guerreiro, Luís Manuel Gaspar, Urbano. Em comum, talvez, uma não cedência obstinada.

Dois exemplos, entre muitos possíveis, que podem ser considerados emblema da arte poética de Emanuel Jorge Botelho, da sua força motriz e do campo que ela levanta: não será por acaso que “asa” é no autor uma recorrência, por oposição a “chão” igualmente insistente. Essa força motriz ramifica-se rasgando a sombra, amortecendo o ethos disfórico de onde emerge. O primeiro exemplo pertence à sequência Lorena (2002), nome próprio da companheira amada: “eu tinha nos ombros/ um livro encerrado/ até os teus olhos/ me darem palavras// Contigo fui dando/ a tudo o teu nome/ em nome de nós/ por causa de mim.”

Recapitulando de um modo que por certo empobrece: a voz do sujeito poético emerge do peso e da sombra, da apatia, e será propulsionada por um TU, um Outro, mesmo uma cor, uma lembrança, propulsionada por algo de fora que mobilize o campo e semeia as palavras de que assim, incendiadas, o sujeito se apropria e devolve, generosamente, ao mundo tornando sensível à volta. O “tu” como a mulher amada que responde ao homem cheio de sombras: “ela olhou-o (...) e disse a noite só é negra se não for a véspera de outra noite”. E o ser sombrio devém não necessariamente luz, mas aberto. E é esse movimento de abertura e acolhimento de traços sensíveis que nutre afirmativamente esta poesia mesmo exibindo com doçura o recuo da instância do desejo, da vontade e do poder.

Os poemas são em geral curtos. O poeta usa, frequentemente, a duas, quatro ou seis mãos, o haiku. Assina com outros alguns textos. Num dos últimos poemas do segundo volume, quando a pressão do tempo esmaga, o sujeito sorrindo escreve, talvez com um sorriso de bolso, que só um poema longo à Ruy Belo ou Pascoaes seria capaz de domar o medo, o medo de tudo

Estilisticamente uma das suas características é uma espécie de colisão de campos imagéticos distintos. Afastados. Esse choque é um “coice” (metáfora recorrente), um safanão que abana o ser amortalhado (“sudário” é outra recorrência, a impressão que resta da rasura do corpo, a fímbria da cinza). A colisão de campos imagéticos diferentes, infamiliares, mantém palpável a estranheza da aproximação, o atrito, a coligação de campos semânticos à partida dissonantes: “colhi no chão de cada noite/ uma hera de trigo/ e um palmo de sorte”. Outro caso é a série de 2017, Ruídos da luz,conjunto de poemas que relê a criação do mundo, o encontro dos elementos, embora pouco “se saiba ou quase nada.”

Não se pode deixar de notar a intersecção de géneros, a transmigração de ferramentas de um campo para outro. O imaginário da pintura é evidente (“às vezes a cor sai da moldura/ e fala de ti como se fosse lábios”); assim como do teatro (“Avulsos de palco/para um acto de peça”), o mar como quarta parede, o sujeito lírico perante um palco.

No posfácio, às recorrências vocabulares do autor Freitas chama uma cartografia lexical que o tempo foi acumulando e dando espessura, sem, todavia, abafar a textura renovada e versátil do verso. Sem se pretender ser exaustivo, sublinhando-se a tensão: ardósia, bibe (a infância), asa, céu, chão, terra, pedra, cinza, lava, amanhecer, lume, luz, noite, branco, negro, recuo, rasura, tempo, morte, mas até ela está cansada...

Emanuel Jorge Botelho é um dos melhores poetas contemporâneos da língua portuguesa, que constrói uma obra com a conjugação de materiais muito nobres, elementares, esplendorosamente pobres.

Maria Conceição Caleiro, Público, 2020-07-29


Dizeres de Atalaia II Autoria: Emanuel Jorge Botelho (posfácio de Manuel de Freitas) Averno

Dizeres de Atalaia II

Autoria: Emanuel Jorge Botelho
(posfácio de Manuel de Freitas)
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CARREIRO, José. “Emanuel Jorge Botelho: Dizeres de Atalaia”. Portugal, Folha de Poesia, 02-08-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/08/emanuel-jorge-botelho-dizeres-de.html



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