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sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Roger Wolfe


 

NADA DISTO TEM A MÍNIMA IMPORTÂNCIA

 

É novembro e sinto-me como o proverbial

canário de uma mina

de carvão.

 

As folhas das árvores

são lentamente corroídas pela chuva

ácida, pelo monóxido.

 

O ar da tarde pesa

e sopesa a minha cabeça

como uma longa

e viscosa ressaca.

 

Nada disto tem

a mínima

importância.

 

Acendo um cigarro e peço

ao barman outra

San Miguel.

 

A noite

promete ser

muito longa.

 

 

A VERDADE, FINALMENTE

 

Todo o dia

a querer escrever este poema

e agora não recordo

o que supostamente

devia dizer.

Os bons escritores - nunca é demais

repeti-lo - são aqueles

que sabem sempre, exatamente,

quando não devem escrever.

Mas esse

evidentemente

não é o meu caso.

 

 

AMOR, LOUCO

 

                                                      Traz-me

novas ofertas e presentes todos os dias,

cuidados, lembranças, ninharias

que com grande esmero conservo

no baú do coração.

É tudo tão temo

e patético ao mesmo tempo.

 

Como impedir-lhe

estas pequenas alegrias, estes caprichos?

Como dizer-lhe que na verdade não preciso

deles, que não lhes darei uso

jamais?

 

                             Que nem ela é um Rei Mago

nem eu sou Jesus Cristo

nem estamos em Belém?

 

 


DEMOCRACIA

 

Outra maldita tarde

de domingo, uma dessas

tardes que um dia escolherei

para me pendurar

do último prego flamejante

da minha angústia.

Pela rua

famílias com crianças,

pais e mães

de faces rosadas, satisfeitos

pelo recém-cumprido

dever eleitoral;

gente debruçada sobre rádios

que vomitam números, percentagens

em bases de dados.

Cordeiros a caminho do matadouro

dando a escolher a arma

ao magarefe.

 

 

AS DUAS RAMEIRAS

 

Todas as mulheres de que não me aproveitei

visitam os meus melhores sonhos,

os meus piores pesadelos.

Levanto-me de pau feito

todas as manhãs.

Tomo ginseng e vitaminas

A, B, C, D e E.

Depois fumo um cigarro

e sento-me ao computador

a teclar poemas como este

à espera das duas rameiras mais infames

da terra: a Fama e a Morte.

Só me resta a esperança

de que não venham, as puras, as duas

de mão dada.

 

 

DESCULPAS DE MAU PAGADOR

 

O aborrecimento

pode matar

um homem

e para esse problema

existem diversas soluções:

dinheiro

mulheres

álcool

drogas

arte...;

nenhuma

delas

ao meu alcance,

como se pode comprovar.

Por isso

precisamente

estou aqui.

Qual é a

tua desculpa?

 

 

A POESIA

 

A poesia de uma mãe que grita da varanda

chamando os filhos para a mesa.

A poesia de um rádio que toca do outro lado

de uma janela entreaberta.

A poesia de um mendigo curvado à frente de um chapéu

no passeio, à espera de esmola.

A poesia de um charco quase seco entre as pedras.

A poesia de uma mulher que se levanta da cama

e procura às apalpadelas o sutiã na penumbra.

A poesia de um cão que se espreguiça

bocejando numa esteira.

A poesia de um televisor silenciado

enquanto se ouve música e os corpos se afastam.

A poesia de uma rua a meio da tarde

em cujo extremo há uma fresta de luz que se projeta

sobre o mar, atravessada pelos tombos de um bêbado.

A poesia de uma voz ao telefone.

A poesia de um autocarro que sobe a avenida

cheio de gente ensimesmada.

A poesia de um velho e desdentado vagabundo

emborcando um pacote de vinho na escadaria de uma igreja.

A poesia de uma mancha de óleo na calçada.

A poesia de um gordo que se agacha

com um cigarro entre os lábios

para atar os sapatos ao fundo do balcão.

A poesia de uma velha que retoca a maquilhagem

ao espelho.

A poesia de umas mãos que quase não são as minhas

sondando (seduzindo?) o teclado…

 

Toda esta poesia que nunca cabe num poema.

 

 

O AMOR, SUPONHO

 

Tenho pensado escrever

um poema de amor

dedicado à minha mulher

mas a verdade é que não sei

porquê, ponho-me

incrivelmente triste e os poemas

de amor nunca foram coisa que me corresse

muito bem - ou quem sabe se nunca

os tentei muito a sério -;

suponho que o amor

deve ser

como esses raríssimos instantes

de felicidade:

se por um momento

os tens

eu diria

que não convém

perderes tempo

com poemas.

 

 

ARTIGO NÃO SUJEITO À LEGISLAÇÃO EM VIGOR

 

Os poemas?

Alguns funcionam,

outros não.

Se o que queres

é uma garantia,

então compra um televisor.

 

 

POEMA ENCONTRADO NO CESTO DE PAPÉIS

 

Conheço todos os argumentos.

Conheço todos os contra-argumentos.

Conheço a futilidade da vida.

Conheço a fome, a sede, a ânsia.

A alegria.

O amor? Também.

O desamor. A sorte e o azar.

Tropeço todos os dias na mesma pedra.

Tropeço todos os dias na mesma pedra.

Tropeço todos os dias na mesma pedra.

E no fim já nem sabemos

se havia alguma pedra ou se tropeçamos

por hábito, por amor à arte,

porque não sabemos fazer mais nada.

Porque o homem é um animal que tropeça.

Porque não sabemos fazer mais nada.

 

Roger Wolfe, Fazer o Trabalho Sujo.

Seleção, tradução e prólogo de Luís Pedroso. Língua Morta, 2020

 

Roger Wolfe nasceu em Westerham, Inglaterra, em 1962, mas vive em Espanha desde a infância, tendo residido em várias cidades – atualmente, em Madrid. É um poeta que enquadram no estilo do Realismo Sujo, embora tal designação possa ser um pouco redutora. A sua poesia utiliza uma linguagem direta, toma-nos de assalto, alternando entre descargas de revolta, a observação das falhas e fragilidades humanas e momentos de contemplação. Alternando entre a raiva e, até, momentos de ternura. Encontramos nela por vezes um humor ácido que frequentemente se volta contra o próprio poeta. Estreou-se em 1986 com Diecisiete poemas, contando já doze livros inéditos de poesia, mas também ensaio e prosa, num percurso que é dos mais importantes contemporâneos da poesia espanhola.

 

Luís Pedroso

https://escamandro.wordpress.com/2020/02/04/roger-wolfe-1962-por-luis-pedroso/

 


CARREIRO, José. “Roger Wolfe”. Portugal, Folha de Poesia, 28-08-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/08/roger-wolfe.html


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