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quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Pedro Mexia - entrevista P2, verão 2020

 


Pedro Mexia: “Ouço professores catedráticos dizerem coisas que antes ouvia dizer a abades minhotos”

A biografia é extensa: poeta, cronista, editor, dramaturgo, crítico literário, tradutor, comentador, assessor do Presidente da República. Aos 47 anos Pedro Mexia assume uma dispersão de interesses que o impede de querer ser especialista em alguma coisa. Um generalista incomodado com o recrudescer do moralismo na arte e nos comportamentos.

  

Um dia normal numa Lisboa quase deserta num mês de Agosto de um ano que não é como os outros. Parece a deserção de um “recolher obrigatório”. A imagem é dada pelo entrevistado. Está de pé, máscara no rosto, no minúsculo jardim Camilo Castelo Branco, esquina as Av. Duque de Loulé com a Rua Rodrigues Sampaio. É preciso encontrar um lugar para uma conversa sem um guião definido. A vida, os interesses, o último livro, as crónicas, as impressões sobre o momento actual. Pedro Mexia caminha agora com um saco de jornais e livros, como quase sempre que anda pela cidade, na rua que dava para as traseiras da antiga sede do Diário de Notícias, o jornal onde publicou os primeiros textos. 

Nasceu numa Lisboa diferente, em 1972, estudou Direito, nunca exerceu. Seria a escrita, marcada pela diversidade de interesses, da literatura ao cinema, mas também sobre a música, as artes plásticas, a cultura e todas as ligações artísticas, ou o comentário político a fazer dele um dos nomes mais lidos e interventivos da sua geração. Chamaram-lhe intelectual. Ele não se revê na palavra. “Sou uma pessoa que lê muitos livros”, diz. O resto faz parte de um auto-retrato pouco ficcionado, mas cheio de coisas falsas, como todos os auto-retratos.

No prefácio de Imagens Imaginadas (Tinta da China, 2019) Rui Chafes apresenta-o como um flâneur, sobretudo na cidade de Lisboa. Revê-se na definição? 
Já vi mais. Mas há muitos textos em que o motivo era alguém — eu — a andar pela cidade e a apanhar fragmentos, conversas, histórias, personagens. Uma parte importante do que escrevi enquadra-se nessa tipologia, criada pelo Baudelaire, do sujeito a passear pela cidade. Talvez não seja o registo mais proeminente do que escrevo agora.

O que mudou?
A cidade tornou-se mais turística. Tenho uma opinião positiva de Lisboa do ponto de vista da gestão autárquica, mas o facto de o turismo ser uma monocultura tem consequências na vida de uma cidade. Estamos a sentir isso. A cidade até pode estar mais arranjada, recuperada, mas as marcas de uma cidade antiga, com cafés, livrarias, lojas históricas, tendem a desaparecer ou a ser uma espécie de recordação quase longínqua. Uma das características de uma cidade como Lisboa é não só aquilo que frequentamos, mas o que faz parte da paisagem, e há uma espécie de homogeneização que torna menos interessante andar pela cidade. Por outro lado, à medida que a minha biblioteca cresceu, tornei-me mais livresco. Passo ainda mais tempo a ler. Boa parte dos textos dos últimos anos são muito livrescos.

Como viu a cidade deserta? Andou por aí?
Andei. Tenho de fazer uma distinção entre o olhar puramente estético e o olhar humano. É uma Lisboa como nunca tínhamos visto e há nisso um fascínio estético. Mas não é possível esquecer o contexto. Não é a Lisboa deserta num Agosto normal em que as pessoas estão de férias É uma desertificação de recolher obrigatório que conhecemos de imagens de tempos de guerra. Não podemos deixar que a estética nos tolde o olhar sobre o que está a acontecer. Nalguns momentos, ao ver algumas imagens, senti que a minha ligação à cidade se reforçou. Se havia zanga, houve uma espécie de reconciliação, no sentido em que isto é mesmo a minha casa.

Anda menos pela cidade, a escrita é cada vez mais uma reacção à leitura?
Sim. Sempre li muito; não sei se leio mais, mas leio mais coisas. Ainda estou a descobrir autores, o que é óptimo. Não ficar com os autores que se gosta desde a adolescência.

Começou a escrever publicamente há uns anos...
No DN Jovem, em 1990, mas profissionalmente, em 1998.

E rapidamente o apresentaram como uma espécie de intelectual da sua geração. O que é que isso significou?
Não faço a mínima ideia. Ainda hoje não tenho nenhuma relação com essa palavra. Não fico contente por a usarem; também não a sinto como insultuosa, embora haja pessoas que a possam usar nos dois sentidos. Mas não me reconheço nela, não procuro ser isso. É uma palavra que aparece muitas vezes, mas acho que significa aquilo que antigamente se chamava literato. Sou uma pessoa que lê muitos livros e que passa boa parte da sua vida a ler. Se isso é um intelectual, há milhões de intelectuais.

Não terá também a ver com uma dispersão de interesses?
Sim, sim. Esta semana, no programa que faço na rádio com a Inês Meneses [PBX], estava a falar do livro do Isaiah Berlin, O Ouriço e a Raposa, um ensaio a partir de um fragmento de um poema de Arquíloco, segundo o qual a raposa sabe muitas coisas e o ouriço sabe uma coisa muito importante. Nessa dicotomia, sou claramente uma raposa. Prefiro saber alguma coisa de muitas coisas do que ser um especialista numa coisa. Nunca quis ser um especialista em nada. Conheço pessoas que sabem tudo sobre poesia portuguesa do século XVI e nunca viram um filme do John Ford. Isso, para mim, não faz sentido.

Porquê?
O que me interessa na cultura são as ligações; é o facto de as artes estarem em diálogo umas com as outras. Uma pessoa que vai ver um filme do Godard e não sabe nada de pintura ou de literatura perde dois terços das referências. Gosto de ter uma visão o mais possível alargada. O defeito da visão alargada é que, por natureza, não pode ser profunda. Não é possível conhecer muita coisa profundamente. Há pessoas muito cultas que o último filme de que falam é O Padrinho ou coisa do género. Nunca vão ao cinema. Isto não é um juízo sobre elas, é uma opção minha de tentar ser o mais possível generalista com os riscos de não profundidade.

Nunca há esforço para abarcar essa generalidade?
Há coisas que me esforço por ler. No campo da política ou das ideias ou da filosofia houve muitas coisas que me esforcei para ler porque achei que era importante, e outras, desisti.

Quais? Quem?
Tantos filósofos... O Husserl, tentei ler e não consegui; o Lacan é um desafio gigantesco, até por causa da prosa; mas de vez em quando vou ler porque acho que é importante e acontece ficar fascinado. Como o Freud que é um escritor maravilhoso, mesmo que se ache que o que diz não faz sentido, ou é ultrapassado. Aí ganha-se mais do que simplesmente ter o conhecimento teórico. Tento ler sobre muitos assuntos, muitas vezes por razões informativas. Esta semana comecei a ler um autor de quem tinha lido um livro há muitos anos, o Ernest Gellner; vi uma referência, comprei um livro dele de que gostei muito e comecei a comprar livros, ainda por cima estão baratíssimos em segunda mão.

Costuma fazer essa perseguição a um autor quando gosta?
Sim, sim, e a Amazon, para isso, é terrível. As livrarias online. Durante anos consegui manter-me longe das drogas duras que são os alfarrabistas, mas agora comecei verdadeiramente. Tinha medo porque sabia que era fatal.

O seu último livro é sobre pintores, pintura, fotografia, e sempre com grande ênfase no auto-retrato.
Gosto muito de auto-retratos. São exercícios curiosos. As pessoas mais introspectivas são, potencialmente, quem sabe mais sobre si mesmas e, no entanto, os auto-retratos são falsos. É um paradoxo muito engraçado. Num auto-retrato do Bonard ele aparece como pugilista. Há pequenos detalhes que nos fazem ter a noção de que o auto-retrato, como a criação literária e artística em geral, sabe mais do que o próprio artista, incluindo sobre si próprio. Há qualquer coisa que se manifesta no acto criativo que não estava previamente decidida. No Imagens Imaginadas, ao contrário do livro de textos sobre cinema e dos textos sobre literatura, nem de perto nem de longe se pretendem textos críticos.


Logo-caricatura, in "Governo Sombra", SIC, 2020


Nesse livro elabora uma espécie de auto-retrato, no texto “Photomaton”: “Cabelo em recuo, testa alta, feições assimétricas, olhos azuis, vincados e cansados, palidez, cara rotunda, barba mal semeada, boca indecisa, aspecto ausente. Eis a minha memória imediata.” Isso leva-me à construção da sua imagem. A sua escrita refere esse persona e ela aparece nas entrevistas. Uma persona que construiu e deixa construir, autodepreciativa, pessimista, nostálgica, velha.
[Risos] Eu sei.

Não alimenta isso?
Muitas coisas que as pessoas tendem a perguntar nas entrevistas são ou repescadas de entrevistas anteriores ou são Polaroids de uma coisa que já não é verdade. Há pessoas que dizem assim: “Os seus poemas sobre poesia centram-se na cidade de Lisboa.” Isso é verdade num livro, mas não é verdade em geral. Não são verdades genéricas e generalizadas. A certa altura cria-se um efeito bola de neve. As pessoas presumem sempre uma espécie de grau de ficcionalidade que não existe. Não há nenhuma ficcionalidade no que escrevo. 

Porque não escreve ficção? Disse que é por não tem imaginação. 
Não tenho imaginação. Só seria capaz de escrever uma ficção completamente decalcada de pessoas e factos e isso parece-me eticamente discutível. Se se for o Saul Bellow uma pessoa pode-se safar com isso, mas de Saul Bellow... Acho que até gostaria de fazer isso, mas não, nunca farei. 

Voltando à imagem, criou uma persona bizarra? Alguém que não é como quase ninguém da sua geração e apesar disso teve sucesso.
É capaz de ser verdade, uma espécie de bizarria. Não tenho as mesmas opiniões da maioria das pessoas da minha geração. Mas isso é um facto e não tem valor a não ser estatístico. Não é por ter opiniões diferentes nem uma mundividência diferente que me torno interessante. A escrita não é um retrato fiel daquilo que a pessoa é. Geralmente é até um retrato melhorado.

Sente falta do registo diarístico dos blogues?
Sinto muita falta. Não o faço porque isso tem de ser feito com constância. Num diário publicado não se pode fazer um post por mês, não faz sentido. Tenho demasiadas coisas. Até ver não voltarei a ter um blogue.

Disse: “Tenho demasiadas coisas.” É outra vez a dispersão. Escreve, é editor, é assessor do presidente da República, tem um programa de rádio, um programa de televisão que lhe deu um reconhecimento público que nenhuma outra actividade foi capaz.
A televisão não se pode comparar com nada. A visibilidade tem aspectos positivos e negativos. O aspecto mais negativo é isso canibalizar tudo o resto; parece ser a única coisa que faço. Mas costumo dar o exemplo: se o Vitorino Nemésio, que era o Vitorino Nemésio, se queixava disso, daí para baixo também nos podemos queixar do mesmo. E era uma televisão de outro tempo, um senhor a conversar.

Isso leva-me a um texto sobre a sua infância nos anos 70 a que atribui uma imagem: uma espécie de longa tarde de sábado a ver séries de televisão.
Sim, com alcatifas e iogurteiras. Quando os anos 70 acabaram eu tinha oito anos, e os anos 70 na minha memória são um bocadinho como os adultos do Charlie Brown, uma coisa a fazer ronhonhonhó. Não estão a dizer nada, mas existem, fazem uns ruídos. Tenho uma visão assim um bocadinho aborrecida desses primeiros anos de vida e dessa época. Não é um retrato sociológico da década de 70, onde estavam a acontecer coisas importantes. As coisas marcantes para mim aconteceram em final dos anos 80 e meados dos anos 90, os anos da faculdade. 

Se tivesse uma imagem para esses anos, qual seria?
Aí já tenho a noção do mundo. Nos anos 90 era maior de idade e lembro-me de muitas coisas. Lembro-me da política... Noutro dia comecei a fazer uma lista dos meus álbuns favoritos de pop-rock e apercebi-me de que eram todos de 91, 92, 93... Há coisas maravilhosas anteriores a isso, mas esses, além de serem muito bons, correspondem a uma fase muito importante: ouvi-os quando saíram. Não sou capaz de dar uma imagem de nada imaginário porque tenho demasiadas imagens reais.

Na sua biografia aparece sobretudo como poeta e cronista. Durante algum tempo disse que gostava de ser sobretudo um poeta...
De tudo o que escrevo, o que é mais importante para mim — ou foi — é a poesia. Não é necessariamente, entre o que faço, o que é mais interessante. Se formos ver pelo reconhecimento, não é o que tem mais reconhecimento. Durante uns tempos foram os blogues, porque calhou estar numa das primeiras vagas e isso marcou muito, mas os blogues hoje já são uma recordação

Compara os blogues aos broadsheet. 
Não me lembrava disso, mas é uma coisa já um bocadinho arcaica. Quanto às crónicas, sei que tenho leitores e um feedback de pessoas muito diferentes.

Tem registos também diferentes.
Sim, e há vários registos de crónica que não quero fazer ou que não sei fazer. 

Por exemplo?
Não sei fazer crónicas ficcionais. Há pessoas que escrevem crónicas que, na verdade, são contos. Não sei fazer isso. E fiz crónicas muito ostensivamente autobiográficas. Agora não faço nem tenho muita vontade de fazer.

Porquê?
Porque acho que não interessa a ninguém; que ninguém tem nada com isso, e porque num jornal não é interessante. O protocolo de leitura num jornal não é esse. Mas às vezes faço umas experiências, fiz umas crónicas com colagens de textos, mas não é muito fácil. Houve uma altura em que escrevia algumas crónicas que podiam ser consideradas humorísticas, hoje raramente faço a não ser que o tema seja flagrantemente humorístico.

Gosta desse registo humorístico?
Escrevo sobretudo, com ironia, mas não escrevo humor. Isso é notório no Governo Sombra. Não tenho uma relação apaixonada com a política e o meu tom tende a ser irónico, mas não é humorístico; a gente não se ri. A ironia, nalguns casos, funciona como uma forma de distanciação. Há muitas pessoas que acham que a ironia não tem lugar na política porque acham a política a coisa mais importante do mundo. Não vejo problema em usar a ironia em qualquer tema político. Nós não ironizamos sobre coisas de que gostamos muito, ou pelo menos é-nos mais difícil. Para mim a política é fácil porque a política não é nem será a minha vida. Sinto-me suficientemente distante para ter uma relação mais de toca e foge.

Não ambiciona o poder?
Não. Mas depende o que quer dizer poder. Haver pessoas que vão a uma livraria procurar um livro sobre o qual escrevi é uma influência que me agrada muito e que é mensurável. Tive dois convites [para cargos políticos] que aconteceram em dois momentos, que aceitei e gostei de exercer. Mas é acidental. Não é o essencial da minha vida.

Faz crítica literária há muitos anos. Mudou para pior?
Mudou para pior no sentido em que é menos importante, há menos e menos espaço. Não sei se as pessoas que a fazem são piores, mas o ecossistema mudou e a crítica não tem uma influência decisiva. Noutros momentos, os grandes sucessos e os grandes insucessos não sei se se deveram à crítica. Mas havia um discurso crítico generalizado nos jornais que hoje não há. O mais significativo é quando a crítica reduz significativamente o número de livros sobre os quais escreve e o espaço que tem. A quantidade não é qualidade, mas abaixo de um certo número de caracteres é impossível fazer um discurso crítico.

Lembro-me do Bookcionário do Fernando Assis Pacheco como exemplo de que se pode escrever de forma interessante e crítica sobre livros com muito pouco espaço, mas é um desafio muito grande. Não tenho dúvidas de que é uma área em recuo. Porque a legitimação já não é uma evidência: o que as pessoas tendem a dizer é: “O que é que me interessa a opinião desta pessoa?” Percebo, não concordo, porque há razões para uma pessoa ser melhor do que outra. Porque os jornais e revistas generalistas já não fazem parte do quotidiano das pessoas. Mas se isso é problemático na critica literária, o que dizer da crítica de cinema; é totalmente deslegitimizada pela Internet. As pessoas hoje em dia não conseguem achar que há uma pessoa que viu mais filmes e que os viu melhor, e que sabe mais. Que há uma dimensão objectiva segundo a qual podemos dizer que um escritor ou um cineasta é melhor do que outro. Depois isso fica aberto a discussão e a revisitações periódicas.

Mas podemos dizer com bastante certeza que Fellini é melhor que Sorrentino? Acho que sim e explicar porquê. Um especialista é uma pessoa localizada, com os seus gostos, as suas circunstâncias, nalguns casos a sua ideologia. Quando leio alguém regularmente, sei isso e dou o devido desconto. Não faz sentido não ler uma pessoa sobre política e dizer que não vou ligar ao que diz porque não concordo com ela. Não concordar é normal. Lerei se for uma pessoa que acho que tem características de observação, de estilo, de argúcia, que me fazem querer ler. 

Está a pensar em alguém?
Não, mas aconteceu-me agora ler As Crónicas do [Nuno] Brederode Santos. Neste sentido parece ter uma contra-indicação: era um partisan político, escrevia do ponto de vista do Partido Socialista e, no entanto, as crónicas são maravilhosas. Mesmo que não se partilhe o posicionamento ou as ideias. Ele suplanta o que podia ser uma limitação, ao ponto de certos textos serem quase mais literatura do que política. Por exemplo, quando ele tem aquela obsessão pelo Cavaco e ele se torna uma espécie de personagem do Rabelais ou coisa do género.

A propósito da fruição da arte, refere em Imagens Imaginadas o fotógrafo e caricaturista Nadar e de uma espécie de poética muito dele feita de luz e empatia. É uma boa síntese do que obra de arte é capaz de lhe suscitar?
Empatia, certamente. Na relação com os objectos artísticos não estou a imaginar qual a alternativa. Significa relacionarmo-nos de alguma maneira com aquilo; aquilo dizer-nos alguma coisa. Se leio um texto e não me diz nada, pode ser uma obra-prima, mas há obras-primas pelas quais não tenho empatia. Várias!

Por exemplo?
Walt Whitman. Não tenho qualquer empatia pelo Whitman. É um dos maiores poetas americanos e um dos maiores poetas, ponto. Mas todo aquele entusiasmo me é estranho... Ou o teatro do Brecht. Não se trata de pôr em causa nem Whitman nem o Brecht. Noutros casos a minha empatia é from the word go...

Outro exemplo?
O Tchékov. Tudo o que Tchékov diz me é familiar, me interessa, e ele tem uma obra gigante. Isto não é um critério absoluto. Não significa que Tchékov seja melhor que Brecht ou que Eliot é melhor que Whitman. Às vezes são afinidades de gosto, de tom, de ideias. É um valor na adesão pessoal. Num autor como o [Harold] Pinter tudo me interessa. É duvidoso que seja um critério crítico, mas é um critério humano: há uma relação entre aquilo e a nossa vida. Sou muito céptico em achar que há uma proximidade muito grande entre a literatura e a vida. Isso pode levar a patologias graves, mas há alguma. Não são puros exercícios. Se daí nasce luz? Pode nascer nevoeiro, mais do que luz. 

Tem escrito sobre a relação entre estética e moral. No último texto do livro fala do belo e do bom e do belo muitas vezes tomado como bom, no que isso pode ter de pernicioso: a bondade do belo. É um tema actual.
Para mim é muito clara — e fiquei-me no Kant — a autonomia da obra de arte, da obra estética. Uma obra de arte deve ser julgada por valores artísticos, independentemente das ideias expressas ou implícitas, ou da biografia do autor. Há uma contestação à Elizabeth Bishop como homenageada da FLIP, em Paraty, ela que foi uma das mais extraordinárias poetas americanas, e viveu no Brasil, e cuja companheira era brasileira, tudo porque numa carta ela exprimiu simpatia pela ditadura militar. Estamos já a vários níveis da obra. Não é um poema. É uma carta pessoal. Como não faz sentido julgar os filmes do Polanski pelo que ele certamente fez e os filmes do Woody Allen pelo que ele hipoteticamente terá feito. Percebo a angústia que isso gera em algumas pessoas. Isso era pacífico há umas décadas, até se elogiava essa dimensão; o Genet, dava um certo picante que tivesse uma vida à margem da lei. Isso para mim é pacífico, sendo hoje muito controverso.

O que não é pacífico é a ligação, na nossa vida, entre o belo e o bom. Sendo essa ligação falsa, temos que ter um bocadinho a ilusão de que o belo e o bom podem ser a mesma coisa. Empiricamente não me parece. Fui um crente nessa ideia durante muito tempo, hoje não acredito, mas é importante acreditar nisso, pelo menos durante um tempo, ou até certo ponto; saber que não é assim, mas fazer como se fosse, com algumas precauções. É uma ideia demasiado boa para a atirar fora.

A religião, a religiosidade são temas recorrentes no que escreve, a fé não. Porquê?
A fé não é argumentável. Não falo nisso não por ser uma espécie de reduto inviolável, mas porque não é muito passível, pelo menos para mim, de produzir um discurso. A religião é muito argumentável. Tem a ver com comportamentos humanos, com práticas, com decisões. Pode-se falar de religião como de política. A fé baseia-se em imponderáveis. Gosto muito da ideia do Pascal “é uma hipótese”. Mas o papel das religiões nas sociedades interessa-me bastante. Muitas reacções que estamos a viver em relação a obras de arte e a comportamentos são impulsos religiosos desviados.

Ouço professores catedráticos dizer coisas que antes ouvia dizer a abades minhotos: “Não, isso não pode ser porque isto é imoral.” Conheço os abades minhotos e conheço as pessoas que têm objecções morais a livros e a filmes. É a clássica censura religiosa sobre os comportamentos. Vemos, na universidade, um hiper-investimento na moralização, sobretudo na universidade americana. A mais letal das investidas é a investigação da biografia para fazer um juízo sobre a obra. Isso não vai deixar pedra sobre pedra. Não é preciso fazer investigações. Sabemos o suficiente sobre Chaplin e Picasso para os tirar das galerias e das cinematecas se o que estiver em causa não for a sua obra.

Esta semana retiraram o nome de Flannery O'Connor de um dos edifícios de uma universidade dos Estados Unidos porque saiu um texto na New Yorker sobre o racismo na Flannery O'Connor, em cartas. Uma pessoa que leia a ficção da Flannery O'Conner e que abstraia dali uma mensagem racista é maluca da cabeça. As exactas coisas que eram horríveis no passado passaram a ser aceitáveis: as mesmas perseguições, as mesmas listas negras. É muito inquietante.

 

Isabel Lucas (Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotografia), Público, 2020-08-11

 


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