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domingo, 7 de fevereiro de 2021

Litania, Eugénio de Andrade


 

LITANIA

 

O teu rosto inclinado pelo vento;

a feroz brancura dos teus dentes;

as mãos, de certo modo, irresponsáveis,

e contudo sombrias, e contudo transparentes;

 

o triunfo cruel das tuas pernas,

colunas em repouso se anoitece;

o peito raso, claro, feito de água;

a boca sossegada onde apetece

 

navegar ou cantar, ou simplesmente ser

a cor dum fruto, o peso duma flor;

as palavras mordendo a solidão,

atravessadas de alegria e de terror;

 

são a grande razão, a única razão.

 

Eugénio de Andrade, Até Amanhã. Lisboa, Guimarães Editores, 1956

 

 

Tomamos o poema como uma espécie de prece e possível canção constituída por uma enumeração de invocações do corpo (“rosto”, “dentes”, “mãos”, “pernas”, “peito”, “boca”), que são a forma de representar o objeto de desejo, o qual poderá resgatar o sujeito lírico da "solidão" (v. 11), quer presencialmente, quer por via da memória que as palavras e o canto convocam.

As palavras consubstanciam a vontade de "cantar" (v. 9), mas também a "alegria" do desejo ou mesmo o "terror" (v. 12) que interfere na relação com o tu, aquele que surge no poema identificado sugestivamente como o de "peito raso". Dito com os termos metafóricos do texto: que caracterizam o ato de "navegar" no "peito raso, claro, feito de água" (v. 7) do outro – plausivelmente uma figura masculina, se na nossa leitura optarmos por uma hermenêutica que liberte a poética eugeniana do tabu que enfumou o século XX e que levou o autor por uma homossensualidade enviesada, por uma voz "segura e trémula", como diria Manuel Gusmão.

Esta designada litania (variante culta de ladainha, palavra que chegou ao português por via popular) tem como responsório o verso final que surge isolado, qual um refrão "profano" que poderia ser repetido no final de cada estrofe, se se quisesse musicar e cantar.

Assim, “a grande razão, a única razão” (v. 13) está na pulsão amorosa, mais ou menos inquietante perante o corpo-conflito, em que o outro é o lugar “onde apetece // navegar ou cantar ou simplesmente ser" (vv. 8 e 9), como diz metaforicamente o sujeito lírico: ser "a cor dum fruto, o peso duma flor" (v. 10).

 

José Carreiro, “Litania (Eugénio de Andrade)”, Folha de Poesia 2021-02-07

<https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/litania-eugenio-de-andrade.html> 

 

EUGÉNIO DE ANDRADE


INTERTEXTUALIDADE

 

ALGUÉM LIA O ECO DE UM ECO

 

É uma voz. segura e trémula a ouves / e

rigorosa é; e diz em voz alta a litania.

Não sabes bem se é do passado

que vem; ou se do futuro chega

despedindo-se. Sabes que não é presente

a luz, a chama ou o luar que nela vibra.

Recordas, porque inventas: Ela é o eco

da invenção de um outro, quando diz

 

o teu rosto inclinado pelo vento;

a feroz brancura dos teus dentes.

Sabes então que feroz é também essa voz

que de cor diz os versos. E tu escutas

sem conto essa ferocidade que se quebra

e de um para o outro verso estremece:

o triunfo cruel das tuas pernas;

colunas em repouso se anoitece;

 

A voz não a ouves agora. Não está aqui.

Mas há uma praia do tempo, uma noite branca

fulgurando entre mundos: e o poema

regressa à impossível presença.

Lês em silêncio; os dedos tacteando

o eco de um eco. Recordas segundo a invenção.

E o poema traz consigo a voz que ele próprio

escreveu: essa voz emprestada

que um dia te inventou para o amor:

 

a razão enquanto ardia, a única razão.

 

Manuel Gusmão, Migrações do Fogo. Lisboa, Editorial Caminho, 2004


 ***

 

A EUGÉNIO DE ANDRADE GLOSANDO A LITANIA

 

Sabia, sei ainda, de cor a Litania,

em que um rosto inclinado era

a razão, a única, na vida

para que com o vento elas viessem,

as palavras, de sol atravessadas e do

medo da solidão, metades

do mesmo mundo, dia

e noite, e as mãos irresponsáveis,

também elas sombrias, transparentes

 

Não, não era somente claridade

nem só o sol amigo irradiava

da brancura feroz daqueles dentes;

cruéis eram as pernas triunfantes

na noite que chegava: e esse claro-

-escuro essa traição fiel à

realidade, um corpo dividindo

as palavras, alegria terror, sombrio

transparente, triunfo crueldade,

poesia que não era apenas sol

mas também solidão escuridão

era, passara a ser, minha verdade

 

Gastão Cruz, Repercussão. Lisboa, Assírio & Alvim, 2004

 

 

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CARREIRO, José. “Litania, Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 07-02-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/litania-eugenio-de-andrade.html


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