LITANIA
O teu rosto inclinado pelo vento;
a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes;
o triunfo cruel das tuas pernas,
colunas em repouso se anoitece;
o peito raso, claro, feito de água;
a boca sossegada onde apetece
navegar ou cantar, ou simplesmente ser
a cor dum fruto, o peso duma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror;
são a grande razão, a única razão.
Eugénio de Andrade, Até
Amanhã. Lisboa, Guimarães Editores, 1956
Tomamos o poema como uma
espécie de prece e possível canção constituída por uma enumeração de
invocações do corpo (“rosto”, “dentes”, “mãos”, “pernas”, “peito”, “boca”), que são a forma de representar o objeto de desejo, o qual poderá resgatar o sujeito
lírico da "solidão" (v. 11), quer presencialmente, quer por via da
memória que as palavras e o canto convocam.
As palavras consubstanciam a vontade de "cantar" (v. 9), mas também a
"alegria" do desejo ou mesmo o "terror" (v. 12) que interfere na relação
com o tu, aquele que surge no poema identificado sugestivamente como o de
"peito raso". Dito com os termos metafóricos do texto: que
caracterizam o ato de "navegar" no "peito raso, claro, feito de
água" (v. 7) do outro – plausivelmente uma figura masculina, se na nossa
leitura optarmos por uma hermenêutica que liberte a poética eugeniana do tabu
que enfumou o século XX e que levou o autor por uma homossensualidade enviesada,
por uma voz "segura e trémula", como diria Manuel Gusmão.
Esta designada litania
(variante culta de ladainha, palavra que chegou ao português por via popular)
tem como responsório o verso final que surge isolado, qual um refrão
"profano" que poderia ser repetido no final de cada estrofe, se se
quisesse musicar e cantar.
Assim, “a grande razão, a
única razão” (v. 13) está na pulsão amorosa, mais ou menos inquietante perante
o corpo-conflito, em que o outro é o lugar “onde apetece // navegar ou cantar ou
simplesmente ser" (vv. 8 e 9), como diz metaforicamente o sujeito lírico: ser "a cor dum fruto, o peso duma flor" (v. 10).
José Carreiro, “Litania (Eugénio de Andrade)”,
Folha de Poesia 2021-02-07
<https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/litania-eugenio-de-andrade.html>
INTERTEXTUALIDADE
ALGUÉM
LIA O ECO DE UM ECO
É
uma voz. segura e trémula a ouves / e
rigorosa
é; e diz em voz alta a litania.
Não
sabes bem se é do passado
que
vem; ou se do futuro chega
despedindo-se.
Sabes que não é presente
a
luz, a chama ou o luar que nela vibra.
Recordas,
porque inventas: Ela é o eco
da
invenção de um outro, quando diz
o
teu rosto inclinado pelo vento;
a
feroz brancura dos teus dentes.
Sabes
então que feroz é também essa voz
que
de cor diz os versos. E tu escutas
sem
conto essa ferocidade que se quebra
e
de um para o outro verso estremece:
o
triunfo cruel das tuas pernas;
colunas
em repouso se anoitece;
A
voz não a ouves agora. Não está aqui.
Mas
há uma praia do tempo, uma noite branca
fulgurando
entre mundos: e o poema
regressa
à impossível presença.
Lês
em silêncio; os dedos tacteando
o
eco de um eco. Recordas segundo a invenção.
E
o poema traz consigo a voz que ele próprio
escreveu:
essa voz emprestada
que
um dia te inventou para o amor:
a
razão enquanto ardia, a única razão.
Manuel Gusmão, Migrações do Fogo. Lisboa,
Editorial Caminho, 2004
***
A
EUGÉNIO DE ANDRADE GLOSANDO A LITANIA
Sabia,
sei ainda, de cor a Litania,
em
que um rosto inclinado era
a
razão, a única, na vida
para
que com o vento elas viessem,
as
palavras, de sol atravessadas e do
medo
da solidão, metades
do
mesmo mundo, dia
e
noite, e as mãos irresponsáveis,
também
elas sombrias, transparentes
Não,
não era somente claridade
nem
só o sol amigo irradiava
da
brancura feroz daqueles dentes;
cruéis
eram as pernas triunfantes
na
noite que chegava: e esse claro-
-escuro
essa traição fiel à
realidade,
um corpo dividindo
as
palavras, alegria terror, sombrio
transparente,
triunfo crueldade,
poesia
que não era apenas sol
mas
também solidão escuridão
era,
passara a ser, minha verdade
Gastão Cruz, Repercussão. Lisboa,
Assírio & Alvim, 2004
Poderá também gostar de:
CARREIRO, José. “Litania,
Eugénio de Andrade”. Portugal, Folha de Poesia, 07-02-2021. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/02/litania-eugenio-de-andrade.html
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