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terça-feira, 19 de outubro de 2021

LIBERDADE, Sérgio Godinho

 



LIBERDADE

 

Viemos com o peso do passado e da semente

Esperar tantos anos torna tudo mais urgente

e a sede de uma espera só se estanca na torrente

e a sede de uma espera só se estanca na torrente

 

Vivemos tantos anos a falar pela calada

Só se pode querer tudo quando não se teve nada

Só quer a vida cheia quem teve a vida parada

Só quer a vida cheia quem teve a vida parada

 

Só há liberdade a sério quando houver

A paz, o pão

habitação

saúde, educação

 

Só há liberdade a sério quando houver

Liberdade de mudar e decidir

quando pertencer ao povo o que o povo produzir

quando pertencer ao povo o que o povo produzir

 

Sérgio Godinho, 1974

 

 

A canção Liberdade [...] foi composta logo após a Revolução dos Cravos e traz uma temática relevante em relação ao período português que sucedeu o regime ditatorial. Composta e lançada por Sérgio Godinho (um dos entrevistados) no seu disco Á Queima-Roupa, ainda em 1974, logo após o seu retomo a Portugal, foi um enorme sucesso por realçar os problemas que Portugal estaria enfrentando e por ser um dos primeiros discos da fase do PREC, o teor das composições reforça a preocupação com a política e com o país naquele período significativo que deveria ser de mudanças. Esta canção é ainda muito lembrada atualmente, por discorrer sobre desigualdade social, tema que continua recorrente em esfera global.

 

A canção contém quatro estrofes, sendo as duas últimas apresentadas como 'refrão'. Contém quatro versos em cada, podendo ser regulares e/ou livres, devido à mudança da contagem da sílaba métrica nas duas últimas estrofes. Nas duas primeiras quadras, todos os versos contêm quatorze sílabas métricas, e no refrão, podem variar entre quatro e quatorze. As rimas são emparelhadas, sendo a primeira estrofe: AAAA, a segunda BBBB, e, no refrão, segue a ordem: CDDD CEEE. As rimas das duas primeiras quadras são graves, formadas apenas por paroxítonas, enquanto as rimas do refrão são todas agudas, por serem oxítonas. Todas as rimas são externas, por aparecerem ao fim de cada verso e perfeitas ou consoantes, por apresentarem correspondência total de sons.

 

A canção segue um estilo bem diferente dos estilos vistos em Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira, sendo esta com um ritmo mais acentuado para o rock e folk, com o acompanhamento de viola, baixo, guitarra elétrica, bateria, além de outras duas vozes. A letra serve como aviso tanto à população quanto aos "militares' que tomaram o poder em abril de 1974, pois mostra um conjunto de aspirações do povo que vivenciou uma repressão por mais de quarenta anos e agora, diante da perspetiva da mudança, precisa rapidamente 'resolver' as pendências acumuladas. Com a presença de antíteses, o cantautor mostra situações vividas no país naquele período, como veremos estrofe por estrofe:

 

Viemos com o peso do passado e da semente

Esperar tantos anos torna tudo mais urgente

e a sede de uma espera só se estanca na torrente

e a sede de uma espera só se estanca na torrente

 

Já no primeiro verso, ocorre uma antítese e um tipo de metáfora (catacrese) ao revelar "o peso do passado e da semente". A antítese é descrita pelo tempo "passado" e o substantivo "semente", que nesse caso, pode fazer alusão a algo que ocorrerá no futuro. E o "peso'', nesse caso, não se refere a um peso comum, volume, mas de uma "força", "gravidade", provocando uma catacrese ao utilizar uma palavra no lugar de outra mais adequada: o "peso'', nesse caso, pode trazer dois sentidos: 1. o "peso" do país, que o próprio Salazar deu à História portuguesa, com toda a contribuição de Portugal em relação às grandes navegações e conquistas do passado, e 2. faz alusão ao "fardo" que Portugal carregou nos últimos quarenta anos de opressão. Assim, tanto em um sentido como em outro, esse peso "aumenta" em relação ao futuro, pois há a expectativa das pessoas de voltarem à época dos grandes avanços, em que a nação se mostrava próspera; ou ainda, quanto a sentir uma necessidade de haver (finalmente) um presente ou futuro favorável às pessoas, após mais de quarenta anos na opressão.

 

No decorrer da canção, percebe-se que a leitura mais apropriada é em relação à segunda hipótese, especialmente com o segundo e terceiro versos. O segundo verso também apresenta uma antítese com a "espera de tantos anos" e "urgente'', referindo ao tempo da ditadura salazarista. Pela história portuguesa, desde a queda da monarquia, em 1910, pode-se dizer que Portugal esteve sempre à espera dessa mudança que parecia vir e não somente em relação ao período em que Salazar esteve no poder. No terceiro e quarto versos (repetição) vemos outra figura metonímica utilizada por Sérgio Godinho, ao afirmar que a "sede de uma espera só se estanca na torrente".

 

Nesse caso, a sede pode se referir a um anseio de um povo, a uma série de expectativas que as pessoas têm em relação a Portugal, que só será boa caso seja concretizada; e ao mesmo tempo, essa "sede" também faz parte da necessidade de sobrevivência, pois, sem "água" uma pessoa não sobrevive, e no caso da canção, sem as necessidades básicas, também não. Muitos que emigraram foram a procura de trabalho, liberdade e vida melhor para a família, caso contrário, não viveriam. Essa sede, essa necessidade de sobrevivência só seria saciada com a melhoria em todas as áreas, e na canção, a palavra "torrente", vem confirmar essa ideia, pois, como uma "enxurrada de água", mostra que a melhoria não seria suficiente em apenas um ou outro setor, e sim, em muitos setores, de tão atrasado que o país se encontrava.

 

Vivemos tantos anos a falar pela calada

Só se pode querer tudo quando não se teve nada

Só quer a vida cheia quem teve a vida parada

Só quer a vida cheia quem teve a vida parada

 

Mais algumas figuras de oposição são exploradas nessa estrofe, começando pelo paradoxo logo no primeiro verso, ao "falar pela calada". O silêncio do povo reflete a censura, já que, na verdade o povo não esteve em silêncio, mas sim, foi silenciado. Por meio da censura e do silêncio forçado, as pessoas exprimiam o que de fato estava ocorrendo, e esse ato, por si só, já era uma forma de "denúncia" ao mundo. O segundo verso mostra novamente a ansiedade das pessoas de desejarem tantas coisas (tudo), porque nada tiveram, mostrando outra antítese. Assim, a vida cheia - que antes não era, por falta de emprego, de voz, de saúde - hoje é uma vida que se deseja plena, com trabalho, saúde, disposição e uma participação mais efetiva na luta. A repetição dos dois últimos versos reforça a necessidade de uma mudança, além da anáfora, que ocorre com a repetição das iniciais "só", em três dos quatro versos.

 

Só há liberdade a sério quando houver

A paz, o pão

habitação

saúde, educação

 

A anáfora continua no refrão iniciado com a partícula adverbial "Só". Nele, o poema traz o que mais se exigia pelos portugueses quando do fim da ditadura: a "Liberdade". A canção reforça que a liberdade real só existe mediante a existência de todos os aspetos que não eram possíveis de se ter com o regime salazarista. Como exemplifica a canção: a paz (alusão à guerra que ainda ocorria), o pão (metonímia para alimentação, que ainda não era adequada para todos), a habitação (a moradia, que também não era uma realidade para todas as pessoas); a saúde (melhoria no sistema de saúde, melhores hospitais) e a educação (melhoria e reforma no sistema de ensino)

 

Só há liberdade a sério quando houver

Liberdade de mudar e decidir

quando pertencer ao povo o que o povo produzir

quando pertencer ao povo o que o povo produzir

 

Com a imposição da censura durante o regime as pessoas não tinham o direito de intervir e nem de reivindicar mudanças, após o Golpe Militar, as pessoas esperavam que, com a instauração da democracia, passassem a ter o direito de participar ativamente das mudanças. O último verso encerra o poema referindo-se à injustiça da má distribuição de renda.

 

O antagonismo presente na canção refere-se a uma gama de expectativas que não foram concretizadas durante o salazarismo, e pareciam não se concretizar após a queda do regime. Se a liberdade é tão desejada pelo povo, significa que durante todo o regime salazarista as pessoas não se sentiam livres: se o regime acabou, a ideia, ou a expectativa, era de que a liberdade fosse, enfim, conquistada também. Mas a canção adverte que essa autonomia só seria conquistada de verdade, uma vez que todos os percalços e problemas advindos com o salazarismo fossem igualmente extintos. Além disso, a liberdade não seria de verdade: de que valeria uma liberdade com as expectativas frustradas? O que seria a liberdade, se, no fim, as pessoas teriam de permanecer caladas e sem o poder de decisão? Ou, ainda, se não houvesse investimentos nas áreas prioritárias, que realmente seria a solução para as melhores condições de vida? Esse livramento causaria a verdadeira rutura entre o passado e o presente, mas essa rutura só seria quebrada quando todos os outros problemas citados na canção fossem vencidos também.

 

Essa canção foi uma forma de as pessoas perceberem que uma mudança não acontece rapidamente, como todos esperam. Antes, é preciso que se lute para que ocorram de maneira eficiente e gradativa, especialmente com ação do povo. A letra dessa canção é ainda hoje recorrente em Portugal, não somente como uma forma de protesto contra a desigualdade social, mas também em ocasiões em que se exaltam a conquista da liberdade - ainda que parcial. A seguir, uma imagem retirada de um muro comemorativo de Abril, que estampa as letras mais conhecidas da canção de Sérgio Godinho:

 

Muro Liberdade. Coletivo PCP da Figueira da Foz. "Paz, pão, habitação, saúde, educação".
Disponível em: http://pallasathena-pt.blogspot.com.br/2014_ 08 _O l _ archive.html


 

Canto de intervenção em Portugal: "O povo é quem mais ordena", Ludmila Arruda.

São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016




CARREIRO, José. “Liberdade, Sérgio Godinho”. Portugal, Folha de Poesia, 19-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/liberdade-sergio-godinho.html


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