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segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Menina dos olhos tristes, Zeca Afonso

 



 

Menina dos olhos tristes

o que tanto a faz chorar

o soldadinho não volta

do outro lado do mar

 

Vamos senhor pensativo

olhe o cachimbo a apagar

o soldadinho não volta

do outro lado do mar

 

Senhora de olhos cansados

porque a fatiga o tear

o soldadinho não volta

do outro lado do mar

 

Anda bem triste um amigo

uma carta o fez chorar

o soldadinho não volta

do outro lado do mar

 

A lua que é viajante

é que nos pode informar

o soldadinho já volta

 

está mesmo quase a chegar

Vem numa caixa de pinho

do outro lado do mar

desta vez o soldadinho

nunca mais se faz ao mar

 

Zeca Afonso: ``Menina dos Olhos Tristes'' Single Orfeu STAT-803 1969

Zeca Afonso: ``De Capa e Batina'' CD Movieplay JA-8000 1996

 

 

A canção Menina dos Olhos Tristes foi escrita pelo poeta Reinaldo Ferreira84, musicada e interpretada por Zeca Afonso[85] e lançada em 1969. A canção é muito melódica, marcadamente sentimental, sendo acompanhada apenas pelo violão, e critica a Guerra Colonial, que ceifava a vida de milhares de jovens que lutaram em Angola, Guiné Bissau e Moçambique, entre 1961 e 1974.

 

Do ponto de vista formal, a composição obedece ao mesmo padrão da divisão silábica poética tradicional, com poucas exceções: no último verso das quadras 1 a 4, não há a junção das sílabas "do" e "outro" na frase "do outro lado do mar", para que a métrica permaneça a mesma da dos versos anteriores, sendo todos eles caracterizados como redondilha maior. O oposto ocorre na quinta estrofe, também no último verso: "está quase mesmo a chegar'', em que a palavra "está" é contraída para igualar a quantidade de sílabas, formando apenas uma sílaba com a palavra "stá". Todos os versos pares terminam com a última sílaba sendo forte, por serem verbos no infinitivo (todos terminados em -AR) ou monossílabos tônicos (mar), sendo a única rima recorrente no texto inteiro – que são classificadas como rima rica, visto que há a rima de um substantivo com um verbo; outra rima encontrada nessa canção ocorre nos substantivos 'soldadinho e pinho', no último verso. O aspeto sonoro dessa canção é importante e merece atenção especial antes de proceder ao comentário sobre a letra: a canção tem um ritmo lento, uma melodia sentimental, melancólica, e até a quinta estrofe as notas obedecem a esse padrão que foi imposto logo na primeira quadra. Ao término das estrofes 2, 4 e 6, na versão cantada por Zeca Afonso, há um tom de lamentação ("huuum"), cantado juntamente com o violão, instrumento bem marcado em todos os versos até a penúltima estrofe. As notas também seguem um mesmo tom, não sendo tão agudas e nem tão graves, até a chegada da última estrofe, quando se atinge o clímax com o final da narrativa que há no poema e a melodia é alterada, mostrando uma "morbidez na vocalização de José Afonso"86 ao anunciar: "O soldadinho já volta".

 

Assim, ao fim da quinta estrofe a expectativa do ouvinte é quebrada de duas maneiras: a primeira delas, em relação ao som, deixando de se ouvir o violão, que não é mais tocado entre os versos, como uma alusão ao luto, e com a subida do tom da nota, que passa a ser mais aguda, nos versos "vem numa caixa de pinho, desta vez o soldadinho'', além de serem tocados numa duração temporal maior que os versos das estrofes anteriores. A segunda quebra de expectativa dá-se com relação ao conteúdo da letra, por não mais manter a repetição ocorrida nas quadras anteriores, e pelo real significado de o soldadinho "estar de volta do outro lado do mar'', agora morto, pois não era esse o desfecho esperado pelo ouvinte e nem pela família.

 

Relativamente à letra destaca-se em cada estrofe a presença da palavra soldadinho sendo o centro da mensagem, e também, outras personagens que fazem parte da família do soldadinho enviado à guerra. Juntos (a menina, o senhor, a senhora e o amigo), todos enfrentam a saudade e a dor de ter que conviver com a ausência do ente querido.

 

Em relação à escolha das palavras da canção, ressalta-se a preferência do compositor pelo uso do diminutivo em "soldadinho". Sabendo que muitos dos soldados portugueses que iam à guerra estavam no auge da sua juventude, muitos com dezassete ou dezoito anos, e inexperientes, eram obrigados a abdicar do convívio familiar, de seus sonhos para lutar numa guerra que não lhes tinha apoio, nem lhes fazia qualquer sentido. Além dos sonhos, os jovens deixavam para trás seus pais, namoradas e amigos, e os que ficavam conviviam com a dor de ver alguém partir. Ao utilizar o diminutivo "soldadinho", além de enfatizar a juventude e a falta de experiência, ainda aumenta a compaixão por parte de quem ouve a canção, atentando para uma das crueldades de se manter a guerra, ao retirar do jovenzinho um futuro que lhes reservava. Ressalta-se que também o compositor, Zeca Afonso, na altura do lançamento dessa canção, tinha em torno de quarenta anos de idade, convivendo amigos bem mais jovens, como José Letria e Francisco Fanhais, e a partir deles via como seria partir tão cedo, com tanta vida e aspirações, e sentia-se penalizado e envolvido no lamento dessas vidas desperdiçadas.

As palavras escolhidas para caracterizar os entes dos soldadinhos que sofrem com a ausência dele apontam que a situação não seria "temporária'', como nos versos "menina dos olhos tristes" e "senhora de olhos cansados" - e não "menina com os olhos tristes" ou "senhora com os olhos cansados". O uso da preposição "de'', traz a ideia de algo permanente - com o sofrimento que começou há tantos anos e se prolongará para o resto da vida - pois aos jovens que morreram na guerra, a família carregará para sempre essa dor - para os sobreviventes, com certeza, carregarão marcas físicas e psicológicas difíceis de serem cicatrizadas.

 

Nas estrofes 1 a 4, nos dois últimos versos, o poema trabalha com uma repetição que é reforçada pela negação: "O soldadinho não volta, do outro lado do mar". Essa repetição comunica uma história que não tem fim, e que se repete ano após ano (ao todo, a Guerra Colonial durou treze anos). Além disso, a repetição também revela a longa espera, por parte dos familiares, de notícias que nunca chegavam. A ausência dessas informações podia ser para o bem, ou para o mal, pois a chegada de uma carta, por exemplo, seria sinónimo de que a notícia poderia acabar com a esperança de qualquer um. Já no penúltimo verso, em vez da repetição com a negação, no lugar no "não" há uma ênfase no advérbio "já", desvendando o incomum - confirmado pelo verso seguinte: "desta vez o soldadinho", mostrando a triste diferença em relação à rotina relatada nos versos anteriores.

 

Esses dois últimos versos admitem múltiplas leituras: a) pode dar a ideia de uma situação corriqueira, todos já sabem que o soldadinho "não volta", e, por isso, as primeiras estrofes já mostram o luto, pois expondo nas palavras utilizadas nos dois primeiros versos de cada estrofe a tristeza e o choro dos familiares. Talvez por já saberem do desfecho e esperarem a chegada do corpo do soldado - que podia voltar, ou não. Mas essa espera, demonstrada nas estrofes, se refere à espera do corpo - talvez a certeza de que o soldadinho realmente morreu em combate - e poder enterrar no seu país, de maneira digna; b) As estrofes também podem revelar que a falta de notícias é angustiante para os familiares - eles não sabem do desfecho, mas aguardam ansiosamente por notícias. Era como se a família estivesse à espera todos os dias perto do mar, vendo os barcos que iam e vinham das províncias ultramarinas, mas o soldadinho que tanto esperavam, não estava no meio deles. Assim, com a última estrofe, indicando a volta do soldadinho, para as duas interpretações há a quebra de expectativa: na primeira, o corpo realmente voltou e a angustiante espera da família também acaba, podendo finalmente certificar de que o que já sabiam, era a dura realidade. Na segunda hipótese, o desfecho se revela ainda mais trágico, visto que havia uma esperança de que o soldado voltasse vivo da guerra, e não em um "caixão".

 

O termo "caixa de pinho" é utilizado como um "eufemismo", no lugar da palavra "caixão", sendo uma maneira mais suave para "minimizar" a real expressão. Essa expressão ainda colabora com a duração do verso da canção e ao mesmo tempo, com a rima para "soldadinho'', sendo a única palavra da canção com essa terminação, mostrando uma relação muito próxima entre eles.

 

Por meio do esquema abaixo, pode-se ver o destaque de cada estrofe e a razão da tristeza de cada uma das pessoas. Em todas elas, o motivo é a ausência do soldadinho:

 



 

Temos na penúltima estrofe uma prosopopeia, com a personificação da "lua'', assumindo o papel de "viajante", "mensageira" e "informante". Essa escolha pode ser justificada pelo fato de ela ser um elemento único e onipresente e sendo viajante, fazendo-se presente em vários lugares ao mesmo tempo, poderia ser a única que soubesse do desfecho, ao acompanhar (mais ainda: ao guiar) os soldadinhos no triste regresso. Simbolicamente, a lua, possuidora de quatro fases, assume ritmos biológicos: ao nascer, crescer, decrescer e desaparecer, representando os ciclos da vida, do nascimento à morte (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006).

 

A escolha da lua no poema indica em que momento a ação se passa, pois, sendo à noite, pode trazer a ideia de um tom sombrio, como se isso trouxesse desesperança, tristeza e melancolia, confirmando os sentimentos demonstrados ao longo do poema.

 

A canção se encerra com outra negação, contida no advérbio "nunca'', também relativo ao 'soldadinho', que tanto se refere ao tom de negação presente na canção inteira, quanto à noção de temporalidade (em tempo algum, jamais): o soldadinho que "não volta do outro lado do mar" também "nunca mais voltará ao mar".

 

Canto de intervenção em Portugal: "O povo é quem mais ordena", Ludmila Arruda.

São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016

 

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Notas:

84 Reinaldo Ferreira nasceu em 1922, em Barcelona (Espanha) e viveu em Moçambique. Sua poesia só ficou conhecida após a sua morte, ocorrida em 1959.

85 O cantor Adriano Correia de Oliveira também interpretou a canção em 1964, antes, portanto de Zeca Afonso, podendo ser considerada a primeira versão. Como foi primeiramente musicada por Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira teria pedido ao cantor a permissão para gravá-la.

86 http://www.aja.pt/verso-dos-versos/

 





CARREIRO, José. “Menina dos olhos tristes, Zeca Afonso”. Portugal, Folha de Poesia, 18-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/menina-dos-olhos-tristes-zeca-afonso.html



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