Páginas

sábado, 30 de outubro de 2021

Maravilha-te, memória!, Fernando Pessoa


Maravilha-te, memória!

Lembras o que nunca foi,

E a perda daquela história

Mais que uma perda me dói.

 

Meus contos de fadas meus —

Rasgaram-lhe a última folha...

Meus cansaços são ateus

Dos deuses da minha escolha...

 

Mas tu, memória, condizes

Com o que nunca existiu...

Torna-me aos dias felizes

E deixa chorar quem riu.

 

Fernando Pessoa, 21-8-1930

 

Fonte: Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990), p. 162.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2642

 



 


Síntese escrita da análise do poema “Maravilha-te, memória!”, de Fernando Pessoa ortónimo.

Este poema tem como temática dominante a nostalgia da infância. A primeira estrofe reflete uma interpelação à memória, um diálogo com esta, em que o sujeito se fragmenta, dialogando com a memória e invocando a imaginação. Temos também presente, ainda na primeira estrofe, um paradoxo, pois é impossível lembrar-se de algo que nunca aconteceu, o que remete para a nostalgia da infância, onde há uma memória vaga de algo que até pode nem ter acontecido, mas, devido ao seu distanciamento temporal, é criada a ideia da sua existência. Vemos muito presente uma dicotomia entre o passado e o presente, quer na primeira estrofe, quer ao longo de todo o poema.

A segunda estrofe apresenta o imaginário infantil, nos versos 5 e 6, ao referir-se aos “contos de fadas”. Nos versos seguintes, é-nos apresentada uma metáfora, que tem várias interpretações possíveis; refere-se, como todo o poema, ao distanciamento entre a infância e o presente, indo buscar desta maneira um pouco da temática da dor de pensar, no sentido em que o raciocínio constante tirou-lhe a inconsciência em que vivia na infância, por isso os seus “cansaços” são “ateus”, são cansaços inúteis, o sujeito poético não tem força para acreditar em mais e sair desse ciclo de cansaços, os quais não têm solução.

Na terceira estrofe, começamos com um claro contraste com o que foi dito na estrofe anterior, sendo usado, mais uma vez, o paradoxo que vimos no segundo verso. É usado o imperativo, como uma tentativa de voltar aos seus bons dias, através da memória, da nostalgia da infância já referida anteriormente, e não pela experiência factual. No último verso, para finalizar, vemos a, tão presente ao longo do poema, dicotomia entre o presente e o passado, ao usar tempos verbais que assim o indicam; também vemos aqui uma fragmentação do sujeito, pois o “quem” a que o sujeito poético se refere pode ser interpretado como sendo ele mesmo, ligando assim à infância feliz e o distanciamento dessa altura.

 

Alunos Daniela Mendes, Adriana Gonçalves, Norberto Ferreira e Bernardo Martins do 12.º ano de escolaridade, na Escola Secundária de Albufeira, Ano letivo 2017-2018



 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 



CARREIRO, José. “Maravilha-te, memória!, Fernando Pessoa”. Portugal, Folha de Poesia, 30-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/maravilha-te-memoria-fernando-pessoa.html



Sem comentários:

Enviar um comentário