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domingo, 31 de outubro de 2021

Minha Poesia será uma Contra‑Literatura, Vitorino Nemésio


 


Minha Poesia será uma ContraLiteratura

Se eu ainda chegar a tempo de a escrever

À rasa, como simples criatura

Que em comarca de terceira classe foi nascer.

 

Assim fez meu tio Ernesto da caneta

E o José Valeriano, pobre primo,

Que como eu, aprendeu solfejo a mimo

Onde solfejo e pão não davam cheta.

 

Despirei o calção da rima, e logo a frase

Puxada, o bemfalar, o João de Deus

Imitando só no coser roupa à máquina.

 

E o Herculano, que António Belo amava,

Apenas seguirei nas minutas da última fase

Do lavrador que trata pautas como regos seus

Escorreito como um professor primário

Correcto como um escriturário

Limpo de letras como o pão no armário

Mas então outra vez com rimas às listas nas calças. Que fadário!

 

Como o nada se torna outra vez tudo

À ContraLiteratura cailhe o contra ou a literatura

Pois só com palavras finas um homem bota figura.

 

Vitorino Nemésio, 01/06/1976

 


No texto «Da Poesia», que Nemésio publicou como prefácio ao volume Poesia (19351940) [Nemésio, 1961. Reeditado em Duarte, 2006: 115124 (citação: 116, 123)], encontramos umas palavras que eu gostaria de deixar aqui como aconchego para uma reflexão sobre este poema:

«Só o poeta conhece intimamente o pouco que se pode saber da conspiração das circunstâncias factuais, biograficamente vividas, para o resultado narrativo ou confidencial que é o poema. Só ele, inclinandose com a possível isenção de aderência ao calor dos próprios textos, pode tentar resolver certa anfibologia inerente ao seu estilo, em ordem a achar os modos de conversão do sentido comum no seu, e assim propondo a chave que melhor possa abrirnos as portas da poética intimidade. (…) Da minha própria poesia, eu que sei? Aprendo com ela a apreenderme.»

E nós, é claro, com ele.

 

Luiz Fagundes Duarte, “Minha Poesia será uma ContraLiteratura. Os palácios da memória: ensaios de crítica textual. Imprensa da Universidade de Coimbra, junho 2019, pp. 351-352.

Intervenção num debate sobre Vitorino Nemésio. Centro Cultural de Belém, Lisboa (setembro, 2011). O poema fora entretanto publicado por L.F.D. na revista Relâmpago, 28, Lisboa, abril de 2011.


SUGESTÕES DE LEITURA

      

Apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura de textos de Vitorino Nemésio




CARREIRO, José. “Minha Poesia será uma ContraLiteratura, Vitorino Nemésio”. Portugal, Folha de Poesia, 31-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/minha-poesia-sera-uma-contraliteratura.html



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