Minha Poesia será uma Contra‑Literatura
Se eu ainda chegar a tempo de a escrever
À rasa, como simples criatura
Que em comarca de terceira classe foi nascer.
Assim fez meu tio Ernesto da caneta
E o José Valeriano, pobre primo,
Que como eu, aprendeu solfejo a mimo
Onde solfejo e pão não davam cheta.
Despirei o calção da rima, e logo a frase
Puxada, o bem‑falar, o
João de Deus
Imitando só no coser roupa à máquina.
E o Herculano, que António Belo amava,
Apenas seguirei nas minutas da última fase
Do lavrador que trata pautas como regos seus
Escorreito como um professor primário
Correcto como um escriturário
Limpo de letras como o pão no armário
Mas então outra vez com rimas às listas nas calças. Que
fadário!
Como o nada se torna outra vez tudo
À Contra‑Literatura
cai‑lhe o contra ou a
literatura
Pois só com palavras finas um homem bota figura.
Vitorino Nemésio, 01/06/1976
No
texto «Da Poesia», que Nemésio publicou como prefácio ao volume Poesia (1935‑1940) [Nemésio, 1961.
Reeditado em Duarte, 2006: 115‑124 (citação: 116,
123)],
encontramos umas palavras que eu gostaria de deixar aqui como aconchego para
uma reflexão sobre este poema:
«Só
o poeta conhece intimamente o pouco que se pode saber da conspiração das
circunstâncias factuais, biograficamente vividas, para o resultado narrativo ou
confidencial que é o poema. Só ele, inclinando‑se com a possível isenção de aderência ao calor dos próprios
textos, pode tentar resolver certa anfibologia inerente ao seu estilo, em ordem
a achar os modos de conversão do sentido comum no seu, e assim propondo a chave
que melhor possa abrir‑nos as
portas da poética intimidade. (…) Da minha própria poesia, eu que sei? Aprendo
com ela a apreender‑me.»
E
nós, é claro, com ele.
Luiz Fagundes
Duarte, “Minha Poesia será uma Contra‑Literatura”. Os
palácios da memória: ensaios de crítica textual. Imprensa da
Universidade de Coimbra, junho 2019, pp. 351-352.
Intervenção num debate
sobre Vitorino Nemésio. Centro Cultural de Belém, Lisboa (setembro, 2011). O
poema fora entretanto publicado por L.F.D. na revista Relâmpago, 28,
Lisboa, abril de 2011.
SUGESTÕES DE LEITURA
► Apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura de
textos de Vitorino Nemésio
CARREIRO, José. “Minha
Poesia será uma Contra‑Literatura,
Vitorino Nemésio”.
Portugal, Folha de Poesia, 31-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/minha-poesia-sera-uma-contraliteratura.html
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