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quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Herberto Helder, leitor de François Villon, ladrão, boémio, amante de beber e de andar à pancada

François Villon (Grand Testament de Maistre François Villon, 1489)

 


A designação «maldito», aplicada a artistas, não corresponde a uma censura nem a uma condenação por parte dos críticos e historiadores. Pelo contrário, mostra que os reverenciamos, que temos na conta de luminosa a obra que nos deixaram. O artista maldito é quase uma personagem de tragédia, pelo muito sofrimento e desconcerto que vida e obra revelam, e pelo valor que nós atribuímos a esses factos. Foi o movimento romântico a criar o conceito. O romantismo pôs em cena o poeta maldito para classificar artistas de muito valor e de vida conturbada. Ao opor-se ao racionalismo clássico, ao valorizar o génio e a loucura, e com estes a originalidade, o sentimento, a aventura longe das normas sociais, ao trazer ao palco as lutas interiores do indivíduo com Deus e com o Demónio, o romantismo também criou a figura do artista maldito.

Não espanta assim que os românticos tenham classificado como maldito François Villon, poeta do século XV, cujo poema «Balada dos enforcados» muito impressionou Herberto Helder – pelo menos duas vezes usou a abertura, no poema «A máquina de emaranhar paisagens» e no livro Servidões. Ladrão, boémio, amante de beber e de andar à pancada, Villon é considerado um precursor do romantismo. 

Maria Estela Guedes, “Três autores malditos: Herberto Helder, Luiz Pacheco e Manuel de Castro” - Palestra na Escola Secundária de Vila Nova de Foz Côa. «Encontros Literários», 27 de março de 2014. Disponível em https://www.triplov.com/estela_guedes/2014/malditos/index.htm

 

 


 

Em Servidões, Helder se refere em alguns momentos a Villon[42], entre os quais destacamos um trecho de poema em que o poeta deixa um recado aos futuros escritores: “irmãos futuros do génio de Villon e do meu género baixo,/ não peço piedade, apenas peço:/ não me esqueceis só a mim, esquecei a geração inteira,/ inclitamente vergonhosa, que em testamento vos deixou esta montanha de merda:” (2014b, p. 688-89). Helder já havia emaranhado Villon em A máquina de emaranhar paisagens: “Irmãos Humanos que depois de nós vivereis, não nos guardeis ódio em vossos corações. (François Villon).” (2014b, p. 217). O autor da “Balada dos Enforcados”, poema citado em A máquina de emaranhar paisagens e retrabalhado em forma de eco em Servidões, é símbolo da indisposição com seu tempo, algo que podemos encontrar de maneira mais discreta no autor português. Essa comparação em forma de autorrebaixamento denuncia a alta medida em que estava Villon para Helder43. Não por acaso também encontramos o vocábulo “testamento” no poema, título do último livro do poeta francês, escrito em 1461. Ao final de O testamento, encontramos “Outra Balada” (2000, p. 301-303), poema em que ele se despede do mundo e se dirige a quem fica:

 

Aqui se fecha o testamento

E se finda o pobre Villon.

Vinde, pois, ao sepultamento,

Quando ouvirdes os carrilhões,

Em trajes rubro-vermelhões.

Foi mártir do Amor a servir,

Isso jurou por seus colhões

Quando do mundo quis partir.

 

E julgo bem que ele não mente,

Pois foi banido sem razões

Dos amores, qual cão demente.

Tal que daqui a Rossillon

Nem espinhos nem esporões

O pouparam, diz sem mentir,

De ferir-se com aguilhões,

Quando do mundo quis partir.

 

Assim é, tão completamente,

Que ao morrer só tinha rasgões;

E mais, que morrendo, inclementes,

Picavam-no meigos ferrões:

Mais agudos que facões

Em ponta, o faziam rugir

(O que provoca exclamações!),

Quando do mundo quis partir.

 

Falcão gentil, príncipe bom,

Sabei o que fez, antes de ir:

Emborcou, firme, um morillon,

Quando do mundo quis partir.

 

Outra imagem de nascimento encontramos no poema abaixo; entretanto, neste caso, o sujeito não se descreve “sôfrego e delicado e furioso”, “num sufoco”, “furiosamente”, diz-nos, quer tomar “tudo em seu regaço” (2014b, p. 28):

 



e eu que não sei através de que verbo arranquei ao fundo da placenta até a ferida entre as coxas maternas,

e roubei oxigénio todo à minha volta próxima,

furiosamente,

eu que procuro o corpo a corpo o nada disso tudo,

não sei nada,

digo: olhar a morte incalculável,

toda,

agora na hora próxima, súbito, atónito,

e agarrado a tudo (2014b, p. 708)

 

Em pleno nascimento se vê obrigado a “olhar a morte incalculável”, dando indícios de que ali se fala também da vida (“A minha vida é incalculável” (2014b, p. 411), lê-se em Última ciência): “agarrado a tudo”, o sujeito demonstra ter em si uma força para o trabalho de parto, de conhecimento do mundo, e para o abraço à vida, “súbito, atónito”. Se compararmos o poema anteriormente citado, em que o sujeito estremece diante da presença da morte que o fita, e este em que a força e a fúria prevalecem, notamos que Servidões está sob o jugo de dois ânimos que oscilam continuadamente.

Prevalece, entretanto, em Servidões, o permanente retorno à morte como dilatação no tempo, o que o poeta chamou “morte no gerúndio”: “traças devoram as linhas linha a linha dos livros,/ o medo devora os dias dia a dia das vidas,/ a idade exasperada é ir investindo nela:/ a morte no gerúndio” (2014b, p. 693). Nesse poema, as “traças” e os “medos” são equiparados em seu poder de devoração: enquanto o primeiro devora as linhas dos livros, apagando a escrita do mundo, o medo devora os dias de uma vida, relegando à imobilidade o sujeito que dele se tornou refém. O gerúndio, tempo verbal em que a ação é dilatada para sinalizar sua duração, é emendado à morte, fazendo-a não evento único, mas agonia que perdura e se estende por cima da vida, a cobri-la, como o saco que envolve o poeta e o isola no fundo dos “armazéns confusos” (2014b, p. 639):

 

já não tenho tempo para ganhar o amor, a glória ou a Abissínia,

talvez me reste um tiro na cabeça,

e é tão cinematográfico e tão sem número o número dos efeitos especiais,

mas não quero complicar coisas tão simples da terra,

bom seria entrar no sono como num saco maior que o meu tamanho,

e que uns dedos inexplicáveis lhe dessem um nó rude,

e eu de dentro o não pudesse desfazer:

um saco sem qualquer explicação,

que ficasse para ali num sítio ele mesmo sítio bem amarrado

― não um destino à Rimbaud,

apenas longe, sem barras de ouro, sem amputação de pernas,

esquecido de mim mesmo num saco atado cegamente,

num recanto pela idade fora,

e lá dentro os dias eram à noite bem no fundo,

um saco sem qualquer salvação nos armazéns confusos

 

Rimbaud, figura poética reincidente na poesia de Helder44, é aqui referenciado nominalmente e pela menção à Abissínia, região da atual Etiópia, para onde o poeta francês foi quando abandonou a poesia, passando ao comércio de armas e, suspeita-se, de escravos. A admiração por sua figura é de tal modo relevante, que, em Photomaton & vox, Helder diz que ele “principiou a ser contemporâneo do futuro, melhor designado: ele é nosso irmão de sangue” (2006c, p. 59). Sua figura é tão singular que fez o poeta brasileiro Paulo Leminski apelidá-lo “poeta roqueiro”45, com seu contumaz humor. Em Estrutura da lírica moderna, Hugo Friedrich se refere a ele como uma das três linhagens da poesia moderna europeia. Com uma obra deveras curta, Une saison en Enfer e Les Illuminations, Rimbaud marcou em definitivo a literatura europeia, com sinais de que foi além disso. Friedrich (1978, p. 59), de maneira breve, faz um apanhado dessa figura de todo conturbada:

 

Uma vida de trinta e sete anos; uma atividade poética começando na adolescência e interrompendo-se depois de quatro anos; o resto, um completo silêncio literário, um irrequieto viajar por toda a parte: do que mais teria gostado seria de chegar à Ásia, mas teve de se contentar com o Oriente próximo e a África Central; dedicado a todo o gênero de ocupações em exércitos coloniais, pedreiras, firmas de exportação e, por fim, no tráfico de armas para os Negus da Abissínia; além disso, a relatórios para sociedades geográficas sobre territórios da África até então inexplorados. Naquele breve período de atividade poética, um ritmo furioso de evolução que, já após dois anos, tinha feito ir pelos ares não só o próprio início, mas também a tradição literária que se achava atrás deste e a criar uma linguagem que, ainda hoje, continua sendo uma linguagem originária da lírica moderna: estes são alguns feitos da pessoa de Rimbaud.

 

Ao contrário de Helder, Rimbaud abandonou a escrita, sob a justificativa de se considerar maduro46, muito cedo. Em “Adieu”47, peça que encerra o conjunto Une saison en Enfer, temos essa espécie de despedida da literatura, texto que ainda abriga a famosa frase “Il faut être absolument moderne”, retomada posteriormente por diversos teóricos e poetas, os “filhos de Rimbaud”, dirá um deles, Al Berto. “Outono já!” (2015, p. 67), exclama o autor das Iluminações; “ao vento deste outono/ avanço/ para que inferno?” (2014b, p. 705), se pergunta Helder. De um lado, o jovem escritor que de pronto decide tudo abandonar, de outro, o escritor velho que em pleno outono não tem ciência de qual inferno/inverno irá recebê-lo. Esse aspecto é ressaltado por Francesc Parcerisas, em prólogo às Cartas abissínias:

 

Assim, a vida literária de Rimbaud se estende no máximo dos dez aos dezenove anos. Os dezoito anos que restam até sua morte são de silêncio, e toda sua maturidade parece vir a ser um anticlímax se comparada com sua ascensão literária inicial. Étiemble escreveu lucidamente sobre como a vida literária anômala de Rimbaud, sua precocidade, sua ambição, seu minoratismo e sua aposentadoria deram frutos a vários mitos particulares, que acabaram por nos dar essa enorme figura de letras modernas que é hoje o ‘mito Rimbaud’. (tradução nossa, 1980, p. 9-10)48

 

Voltando ao poema “já não tenho tempo para ganhar o amor, a glória ou a Abissínia,”, encontramos a imagem do sujeito em “um saco sem qualquer salvação nos armazéns confusos”, um modo de escapar do mundo e do relógio que marca o tempo a se esgotar. O poeta, em retrospectiva, analisa sua vida e não lhe afere grandes acontecimentos. Como fez com Villon, Helder se coloca em posição rebaixada à Rimbaud, que teria ganhado, entre os três itens citados, a Abissínia. Não podendo fugir para a Abissínia, sem amor e sem glória, segundo os critérios do autor, resta esperar a morte, posto que mesmo o suicídio com tiro na cabeça é descartado49. Espera, então, a morte como um evento nada cinematográfico, sem dores e sem grandes acontecimentos, ao contrário do que aconteceu a Rimbaud ao ter a perna amputada e o câncer que lhe limou a vida. Prevalece o desejo de esquecimento como o adentrar em um sono profundo, sem as agruras da idade (“num recanto pela idade fora”). Aqui, o desejo de uma morte indolor, que de todo se assemelhasse ao sono, contrasta sobremodo com a vontade de conhecimento da morte que encontramos, por exemplo em Última ciência: Eu entrava na morte, era o filho da estrela/ bárbara ― erguia-a do meio dos diamantes.” (2014b, p. 419-20). A “arte íngreme” do Herberto Helder de então, praticada também no sono, traz um tratamento diferente do que encontramos em Servidões. Vejamos, a seguir, um poema que se utiliza dos mesmos elementos, o sono e a morte, mas com outro tratamento:

 

A arte íngreme que pratico escondido no sono pratica-se

em si mesma. A morte serve-a.

Serve-se dela. Arte da melancolia e do instinto.

Quando agarro a cara, a rotação do mundo faz rodas

a olaria astronómica: uma cara

chamejante, múltipla, luxuosa.

Deus olha-a.

E a arte alta do sono fica pesada:

― Mel, o mel em brasa, a substância

potente, elementar, ardente, obscura, doce de uma doçura

fortíssima,

o mel,

arrebatada. Uma arte inextricável que,

pela doçura, enche as bolsas cruas

da carne, embriaga, queima tudo, mata,

mata. (2014b, p. 426)

 

O sono, nesse caso, em nada se assemelha à fuga que lemos em Servidões. Se em Última ciência sono e noite são espaços e temporalidades próprias dos momentos de inspiração e de escrita, o sono tornado saco nos armazéns confusoslembra muito mais uma interrupção da escrita. Esse tom aparentemente apaziguado com a proximidade da morte não é de todo unívoco. É esse o mesmo sujeito que afirma sem pestanejar: “que se devoro o mundo também o mundo me devora” (2014b, p. 636). Ou mesmo aquele que, diante da virgem de “corpo tremulamente intacto”, avança com o “corpo de bode coroado/ fedendo a testosterona e sangue”, marcando “a fogo” a jovem donzela, donde jorra novamente a possibilidade do canto (“os verbos soberbos cantem”), mas agora canto feito de um “assombro novo”, pois “faz-se-me tarde para o poema das frutas” (2014b, p. 635). A imagem do coito e da criação novamente entrelaçadas, mas sob nova energia, agora emanada pelo “corpo de bode coroado” do poeta. Resta-lhe, enfim, arrematar: “cômo-te antes que morra:/ e eu sei quanto depressa morro” (2014b, p. 635). Em Letra aberta, livro póstumo com poemas do espólio escolhidos pela viúva Olga Lima, os cornos desse “bode coroado” retornam como parte da cabeça, onde o poeta guarda “uns poemas que pràqui tenho” (2016, p. 14): “poemas que tanto pesam no meu desequilíbrio/ entre os dois cornos:/ pela direita vou sair à noite indistinta que me troca os passos,/ pela esquerda vou entrar no dia múltiplo que me ofusca os olhos” (2016, p. 14).

A força juvenil de rebentar “os selos” (2014b, p. 635) convive com o desencanto trazido pela consciência do fim. Mas lembremos que, segundo Edward Said, essa contradição é própria do tardio: “Esta é a prerrogativa do estilo tardio: dar voz ao desencanto e ao prazer, sem ter que resolver a contradição entre um e outro.” (2009, p. 167). Já que “a morte iminente está próxima e não tem como ser negada” (SAID, 2009, p. 29), resta a Helder “trabalhar a morte sempre tão difícil” (2014b, p. 706), torná-la “morte escrita” (2014b, p. 709).

Para Said, “Viver essa condição tardia significa viver rumo ao fim, com plena consciência, com plena memória e com total (e mesmo extraordinária) ciência do presente” (2009, p. 34). Tendo em vista a consciência encontrada em seus últimos poemas, é muito provável que este seja também o caso de Herberto Helder: ciente do presente e de seu percurso poético, o escritor não hesitou em retrabalhar textos antigos e dar a eles novo contexto, como é o caso, por exemplo, dos textos em prosa que abrem Servidões. Entretanto, isso não impediu que o poeta nos deixasse a imagem de uma “memória trémula”, o que também pode ser entendido como mais um desejo de afastamento do mundo, em vez da simples autodesignação de memória senil. O poema:

 

não quero mais mundo senão a memória trémula,

quando me perdi,

a cidade, o rio camoniano, o ar,

era como se os apanhasse de uma só vez,

um dia inteiro para ver como acabava em noite,

não quero senão perder-me nesse enigma:

um pequeno poema bastava para meter tudo lá dentro,

e a minha vida como nota,

rápida, ríspida,

nas margens,

mas tamanhas eram elas que não acabavam nunca,

notas mais notas,

o caos,

e eu ali à espera da morte entre canções roucas,

eu que, trémulo, não quero, digo, mais mundo,

eu que me perdi,

não tinham ainda começado o rio, o poema, o ar, a morte (2014b, p. 681)

 

Perdido, o sujeito se encontra no desejo de exílio: do mundo quer apenas o que resta na memória, nisso incluído o que por ela já foi inventado e reinventado, visto que o erro (a “memória trémula” erra) é sua adjetivação primordial. Viver à margem do mundo é uma das atitudes mais comumente atribuídas a Herberto Helder, ele que, em carta a Gastão Cruz, assume a sua incapacidade em lidar com perdas, como a de Carlos de Oliveira, e prefere esquivar-se ao mundo:

 

A morte do Carlos deixou-me uma tal ferida que eu procuro agora não envolver-me demasiado com o que acontece aos amigos ou a pessoas que estimo ou prezo. Neurótico como sou, não aguento para além de um certo ponto. Tudo isso reanima essa grande dor infantil, incurável, que foi a morte de minha mãe. Não se trata de sentimentalidade não sou sentimental , mas de uma catástrofe central da minha vida. A minha relação humana com o Carlos era muito profunda, e a morte dele deixou um grande buraco. A diferença é que, na infância, aquando da morte de minha mãe, eu não possuía nenhuma estratégia, nenhuma saída. Agora sei relativamente fugir. (2015c, p. 163)

 



Mas se, desde sempre, “é tudo só memória inverossímil” (2014b, p. 664), temos que com Herberto Helder aceitar que, “porque todos os poemas são trémulos” (2014b, p. 698), o erro é matéria poética. O “enigma” dentro do qual o sujeito se quer perdido tem a concisão de um “pequeno poema” ou da “vida como nota”, imagens emblemáticas de que nos ocuparemos mais à frente, mas que recuperam também a presença de uma “Bibliografia dispensável”: “Les origines tragiques de l’érudition. Une histoire de la note em bas de page. Anthony Grafton (trad. Antoine Fabre).” (2014b, p. 698). De todo modo, interessa aqui, nesse poema, a imagem final: o poeta “à espera da morte entre canções roucas”. Do corpo enquanto massa oca atravessado pelos sopros50 – “― De nome em nome passam por mim os sopros.” (2014b, p. 423) , indistinto, encontramos este próximo à morte e rodeado de “canções roucas”, mais um indicativo do que aqui já consideramos um atenuamento da energia poética outrora mais próxima do sublime. Se “roucas”, essas canções (no plural, ressalte-se), supostamente sem corpo, não vibram (“o verbo sibilante” (2014b, p. 352)) mais como antigamente. O esgarçamento do canal e, por conseguinte, do sujeito diferem do que mencionamos em Flash, em que ele se encontra “Completamente vivo.” (2014b, p. 352). Aqui, à espera da morte, memória e sujeito trêmulos, perdidos.

Noutro poema encontramos as imagens da mão e da luz/energia em falta. A escrita do velho, a olhar “o relógio que mede/ minha turva eternidade”, é nele também motivado pelo registro dos momentos finais, do fim que se aproxima lentamente:

 

já não tenho mão com que escreva nem lâmpada,

pois se me fundiu a alma,

já nada em mim sabe quanto não sei

da noite atrás da luz: livros, frutas na mesa, o relógio que mede

minha turva eternidade

e o tempo da terra monstruosa,

já nada tenho com que morrer depressa,

excepto

tanta hora somada a nada:

acautela a tua dor que se não torne académica (2013, p. 73)

 

Corpo e alma em pane, o sujeito se encontra à deriva, perdido como no poema anteriormente lido, sem poder ver a “noite atrás da luz”. Ou, como encontramos em outro poema: “agora se tivesses alma tinhas de salvá-la, agora/ se tivesses génio tinhas de resgatar o pacto, agora/ que não tiveste senão quotidiano terás de trazer muita da luz sumida/ pelo mundo fora à tua roupa [...]” (2014b, p. 666). Sem poder trazer essa luz e com todas as opções esgotadas, mesmo as de “morrer depressa”, resta-lhe o conselho final: “acautela a tua dor que se não torne académica”, que se repete em outro poema mais ao final do conjunto com o mesmo ímpeto de encerramento (2014b, p. 703). Aqui, podemos encontrar uma distinção entre o poema e o que dele fazem os acadêmicos e os críticos. A postura do poeta é de proteger o poema de um suposto desvelamento da dor, como a suprimir de sua matéria aquilo que pudesse oferecer ao acadêmico e/ou crítico meios de intelectualizar algo da ordem do sentimento. É concebível pensar que essa seja uma preocupação justa no último Herberto Helder. Entretanto, tornar essa exortação parte do poema, principalmente de seu encerramento, muito mais denuncia sua presença incontestável que o protege desse tipo de aproximação acadêmica.

Há, em Servidões, outros tipos de críticas como a que encontramos aos acadêmicos. É o caso, por exemplo, dos “burrocratas”: “e ali em baixo com terra na boca e mãos atadas atrás das costas/ alors qu’on peut écouter de la musique avant toute chose/ sob a força devastadora da poesia/ os burrocratas os burrocratas” (2014b, p. 684). Nessa peculiar cena em que os “burrocratas” estão enterrados e no plano superior impera “a força devastadora da poesia”, a presença de Paul Verlaine e de sua “Art Poétique” são evocadas para ressaltar o “terror da beleza” – da poesia, da literatura – na “vida administrativa” (2014b, p. 648): “administra a tua voz,/ mas administra a tua dor primeiro/ (a dor e a voz administrativas?)” (2014b, p. 678), ecoando Ruy Belo ao fundo, seu companheiro de geração: “Feliz aquele que administra sabiamente/ a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias/ Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará”. E arremata: “Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente” (2009, p. 161-62).

De outro lado, o poeta critica as revistas de poesia, publicações coletivas que podem ou não servir a um propósito comum. Se pensarmos que o autor não raro buscou se desfiliar de movimentos agregadores, como o caso do Surrealismo em Portugal, não estranharemos o poema em que desdenha desse papel mais social do circuito literário.

 

disseram: mande um poema para a revista onde colaboram todos

e eu respondi: mando se não colaborar ninguém, porque

nada se reparte: ou se devora tudo

ou não se toca em nada,

morre-se mil vezes de uma só morte ou

uma só vez das mortes todas juntas:

só colaboro na minha morte:

e elas entenderam tudo, e pensaram: que este não colabore nunca,

que o demónio o leve, e foram-se,

e eu fiquei contente de nada e de ninguém,

e vim logo escrever este, o mais curto possível, e depressa, e vazio poema de sentido e de endereço e de razão deveras

só porque sim, isto é: só porque não agora (2014b, p. 653)

 

A recusa em colaborar na revista serve de imagem para este Helder mais intransigente. Sabemos que o poeta colaborou em diversas publicações ao longo de sua vida literária: fez prefácios51, textos de exposições52 e participou de revistas literárias53. Porém, não deixou de ser senso comum sua caracterização como um autor da recusa em participar do círculo literário. De toda forma, não deixa de ser patente aqui a atitude de afronta a tudo e a todos, que se intensificou em A morte sem mestre: “alheio aos mortos e aos vivos,/ ou afrontando-os a todos?” (2014b, p. 687).

Continuando com a reflexão sobre a proximidade da morte, encontramos ainda em Servidões o seguinte poema, que nos oferece uma visão do autor sobre seus capítulos finais e os iniciais, em um movimento de revisitação de sua poética nada animador:

 

releio e não reamo nada,

a minha vida abrupta é absurda,

a arte da iluminação foi toda ao ar pelos fusíveis fora,

e fiquei cego dentro da casa cuja, e pelo mundo, e na memória, e na maneira

das palavras quentes que eu amava,

com as costuras das gramáticas inventadas tortas mas tão amadas também elas,

nessa língua das músicas,

e desfaleço então de tudo e nunca mais ressuscito,

e só a dor,

só o pobre de mim com seu ramilhete de rosetas bravas,

suas mínimas corolas desirmãs que mexo

entre os dedos aos nós, eruditos e ardentes,

e os trabalhos do diabo, pobre diabo, deixo-os,

e a sopa e o pão meio comidos que nem esses sequer hei merecido nunca:

e com estes míseros ofícios

morrerei do meu muito terror e da nenhuma salvação da minha vida

(2014b, p. 680)

 

Se em Do mundo eram os “poemas/ abruptos, sem autoria” (2014b, p. 518), aqui é a vida do sujeito que é assim designada: “a minha vida abrupta é absurda”. Não fica claro acima, mas nos parece que a ação de releitura é direcionada para os próprios poemas do autor, já que Helder é conhecido pelas reescritas que empreendeu ao longo de seu poema contínuo, como aqui já apontamos. Em mais uma referência a Rimbaud, que em muito esclarece a ideia de poesia como energia, luz, iluminação. Porém, aqui, o autor tem a clara percepção de que “a arte da iluminação foi toda ao ar pelos fusíveis fora”, demonstrando, mais uma vez, o quanto não tinha na mesma conta de outrora a energia que permeia estes últimos poemas. As “palavras quentes que eu amava”, ele diz ainda, “com as costuras gramaticais inventadas todas tortas”, referindo-se ao encadeamento de metáforas e de conexões inusitadas que tanto serviram para caracterizar sua poética entre a crítica. Aqui, o sujeito poético fala disso em tom saudoso, como se esse momento fosse agora todo leitura e memória (“releio e não reamo nada”). A “língua das músicas” dá lugar ao “pobre de mim com seu ramilhete de rosetas bravas”, contrastando com a “arte de roseira” e sua “fria/ inclinação das rosas contra os dedos/ iluminava em baixo/ as palavras” (2014b, p. 438), que encontramos em A última ciência. Os poemas não são mais “rosas”, mas “rosetas bravas”, nos fazendo pensar no tom desafiador contra tudo e todos que encontramos de modo mais intenso no próximo capítulo, dedicado ao livro A morte sem mestre. Acreditamos que esse “ramilhete de rosetas bravas” representa de modo claro como o autor enxerga esses poemas escritos em tom sarcástico, irônico, que muito nos ajudam a vislumbrar as nuances do Herberto Helder tardio, cujos poemas revelam uma indisposição com a consciência da baixa energética. Convém ressaltar ainda que o termo “roseta” serve para designar a parte da espora que pica o cavalo, mostrando a riqueza polissêmica do léxico herbertiano. Ao final do poema, encontramos mais uma vez o poeta declarando seu “muito terror” perante a morte: “e os trabalhos do diabo, pobre diabo, deixo-os,/ e a sopa e o pão meio comidos que nem esses sequer hei merecido nunca:/ e com estes míseros ofícios/ morrerei do meu muito terror e da nenhuma salvação da minha vida”. Lembremos que o primeiro poema deste conjunto apresentava a cena do poeta olhado pela morte – “agora sou olhado, e estremeço/ do incrível natural de ser olhado assim por ela” (2014b, p. 702) , o que pode colaborar para entender o “muito terror” que insiste em reaparecer em Servidões.

A noite, elemento comumente associado à poesia em/por Herberto Helder, aparece em Servidões e não se furta de resvalar nessa mesma ideia literária. Entretanto, não deixa de ser interessante a maneira de tratamento desse elemento órfico, que tanto serviu para caracterizar o primeiro Helder, de “O amor em visita”, ainda em 1958. É António Ramos Rosa quem primeiro faz essa leitura, no ensaio “Herberto Helder ― poeta órfico”, publicado em Poesia, liberdade livre, de 1962: “O espaço órfico é o espaço terrestre revelado como espaço interior, como o espaço da unidade essencial do espírito que a si mesmo se encontra no Mundo e pelo Mundo” (p. 151). É neste mesmo ensaio que o poeta e crítico amigo de Helder aponta “o seu poder visionário, o sentimento transfigurador, a autenticidade dos seus temas cósmicos, o sentido do originário ou do poema como realidade originária” (p. 154). Nuno Júdice, por sua vez, aponta um “êxtase verbal de raiz surrealista, mas controlado por uma lúcida autoconsciência do jogo verbal e vocabular” (1997, p. 90). Em Servidões, “a noite que no corpo eu tanto tempo trouxe, setembro, o estio,” (2014b, p. 644), diz o poeta, serve para marcar a capitulação feita ao fim da vida: “que tudo acaba: canção, talento, alento, papel, esferográfica,” (2014b, p. 644). Essa noite que há muito habita o corpo do sujeito é justaposta a “setembro, o estio”, o primeiro marcando o início do outono e o segundo uma referência figurada à idade madura ou à velhice.

Essa vida repercutida nos poemas herbertianos aparece no pensamento da morte para celebrá-la, tal como encontramos no poema da agave54, planta que floresce uma vez na vida para de pronto morrer. O belo poema de Helder volta a esse fenômeno da natureza para transformá-lo em reflexão sobre o “sistema das maravilhas”:

 

que floresce uma só vez na vida, agaué! dez metros, escarpada, branca, brusca, brava, encarnada,

e lava a língua às crianças,

e põe-lhes a fala cantante,

e nunca esperes que se repita no deserto da vida,

não esperes,

não nunca esperes pelo regresso do sistema das maravilhas,

porque morreu do mundo uma só vez prodigiosa,

e adormeces e acordas,

e a espera enche os dias,

e quebram-se o ar e a água,

porque rente à cara respirando do chão quente batem fundo como se água e ar se amarrassem,

abecedária,

desamarrassem,

e o sal e o ouro moído e a escarlata,

pousam camada a camada ― e

giram logo acima da pulsação da terra para que os colham e recolham,

e o sopro unido vem à volta: estrelas, ondas,

trigos às faíscas,

aberturas,

e o teu rosto mortal iluminado e as pequenas artes do triunfo das palavras:

as criaturas, e a sua morte,

e os campos de trigo e orvalho e alumiação,

e os grandes anéis das estações e os grandes animais,

e a tua morte de alto a baixo e dentro e fora,

a morte floral, dez metros de sangue compacto e espuma extraordinária,

fria fria luz como uma guerra de lâminas,

fria nas rápidas colinas tomadas pelo estio e a primavera,

pelas estações vertiginosas,

agaué! quando a luz as toma uma só vez na vida e as levanta até onde

ninguém respira,

ninguém brilha,

nunca ninguém ressuscita, agaué! e amanhã e ontem e agora,

os campos de trigo e orvalho e alumiação,

e a sua morte (2014b, p. 646-47)

 

A “morte floral” da planta e, por conseguinte, do sujeito são o motivo do poema. Tal qual o ser humano que morre apenas uma vez, a agave “morreu do mundo uma só vez prodigiosa”, revelando que, para ele, essa morte tem algo de belo e de extraordinário em si. Segundo Rosa Maria Martelo (2016, p. 39),

 

[...] Herberto Helder usa várias vezes a palavra “agaué”, termo grego que significa “notável” ou “admirável” e que poderá ter origem numa outra palavra que significava “exultar”. Agaué era, por isso mesmo, o nome de uma das bacantes, aquela que no transe das cerimónias em honra de Dioniso mata desgraçadamente o próprio filho sem o reconhecer. Mas, actualizado sob a forma “agave”, também é o nome de uma espécie de plantas que se faz notável pela floração altíssima [...]. Cumprida essa floração, morrerá. Herberto Helder fala do agave/agaué fazendo confluir todos estes sentidos: exaltação, crime, elevação, floração, morte ― e sugerindo que notável é também a “floração” da linguagem, pois envolve a mesma violência, tão criadora quanto mortífera.

 

Importa-nos aqui essa imagem da alta floração que, findada, leva à morte o corpo vegetal: a vida floral cumpriu sua servidão, com a beleza efêmera exposta ao mundo, e pode então dar-se por encerrada. Podemos pensar que a flor da agave seria o equivalente a encontrar o “poema perfeito prometido que não nunca” (2014b, p. 670), não fosse ele, por muito explícito no verso, “não nunca”: “¿oh será que um poema entre todos pode ser absoluto?/ :escrevê-lo, e ele ser a nossa morte na perfeição de poucas linhas” (2014b, p. 660), eis o desejo do poeta de encontro da perfeição, mas, lembremos, “morrerei do meu muito terror e da nenhuma salvação da minha vida” (2014b, p. 680). A vida da agave, segundo o poema herbertiano, é salva pela servidão cumprida.

Nesse contexto, a música aparece como uma das possibilidades de salvação dessa vida extenuada, dedicada à servidão da poesia, à busca do poema perfeito:

 

¿e a música, a música, quando, como, em que termos extremos

a ouvirei eu,

e ela me salvará da perda da terra, águas que a percorrem,

tão primeiras para o corpo mergulhado,

magníficas,

desmoronadas,

marítimas,

e que eu desapareça na luz delas ―

só música ao mesmo tempo nos instrumentos todos,

curto poema completo,

com o autor cá fora salvo no derradeiro instante

numa poalha luminosa? (2014b, p. 658)

 

A imagem do poema revela de que modo a música é comparada a um sopro poético, com a profundidade desse sentido perceptível na reiteração do termo “música” no primeiro verso: “e a música, a música,”. A figura do autor está curiosamente dentro e fora do poema: ele é parte essencial para ouvir essa música, que será capaz de salvá-lo “da perda da terra”, ou seja, da vida, e, ao final, ele aparece “cá fora salvo no derradeiro instante”. “curto poema completo” envolvido numa interrogação, portanto em suspensão, podemos dele apreender o desejo de “ouvido absoluto para as músicas sumptuosas do verso livre” (2b014, p. 671).

Outra imagem de confronto com a proximidade da morte encontramos em um poema com eco kavafiano. A referência ao famoso poema de Konstantinos Kavafis, “À espera dos bárbaros”55, não deixa de aproveitar o aspecto intervenientemente político que alguns acusam encontrar nos escritos do poeta alexandrino. Sobre isso, os tradutores, em nota ao poema, referem os estudos de Marina Risva e José María Álvarez (2005, p. 433-34). Não deixa de ser curioso, então, que Herberto Helder assim comece seu poema: “profano, prático, público, político, presto, profundo, precário,/ improvável poema,” (2014b, p. 676). Tal surpresa também aparece expressa nas palavras finais do poema “No meio da praça”, que integra A sombra do mar (2015), de Armando Silva Carvalho:

 

Estou só no duro chão da praça solitária,

numa terra de pesca que já nem cheira a pescado.

Chão seco, sem ondas, sem lugar sequer

para o meu arrepio de alma social.

E nela deixo cair este verso:

profano, prático, público, político, presto, profundo, precário,

dum improvável, recente, poema

de Herberto Helder. (2015, p. 36-7)

 

Esse improvável poema herbertiano encerra-se com a exclamação: “oh nunca mais quero viver no mundo!” (2014b, p. 677), um tipo de assertiva que só poderia vir de um homem já em idade avançada e que, desiludido, não conserva maiores esperanças para o mundo “prático”. Leiamos o poema na íntegra:

 

profano, prático, público, político, presto, profundo, precário,

improvável poema,

contudo

nem eu estava à espera dos bárbaros que viriam devastar a terra,

porque éramos inocentes,

nós que só queríamos o silêncio,

e a voz diria que se fosse preciso traziam Deus,

e é sim possível que trouxessem qualquer espectáculo com cristos nus e saltimbancos de feira,

e paus vermelhos,

paus amarelos,

paus virgens com linho e algodão pintado,

paus compridos com petúnias como borboletas:

e eu achava inadmissível,

e tinha a meio da minha própria linguagem a dor sòzinha em que súbito se repara,

e de que o poema se faz carregado e quente,

e não explicava nada,

e lá vinham os bárbaros como no episódio de Alexandria,

mais uma vez depois de Cavafis,

incendiada pelos soldados de César e do califa Omar,

por franceses e ingleses e todos os outros bárbaros,

por todos os incapazes da medida intrínseca,

a densa meditação que conduz ao poema puro,

e nunca, nunca mais a paixão,

e então o centro mesmo do mundo é o centro de Alexandria,

livros, música, mão calígrafa movendo-se ainda,

olhos fechados víamos através das pálpebras a nossa vida ardente e muda e lenta,

e a carne desde o imo desfazia-se num soluço,

magoada, humana,

alexandrina,

e o mundo era pequeno,

mais pequeno com certeza que um poema de um verso único,

universo:

oh nunca mais quero viver no mundo!

 

Essa crítica ao contemporâneo, atravessada pela referência a Alexandria56, é pouco comum na poética herbertiana, o que nos motiva a colocá-la entre os aspectos mais próprios de sua última fase. Helder estabelece a distinção entre os que queriam silêncio os poetas, podemos pensar – e os que eram “incapazes da medida intrínseca, a densa meditação que conduz ao poema puro”. Ele parece nos levar a uma ideia de afastamento do mundo prático para que a poesia tenha espaço: “lavorare stanca”57 (2014b, p. 688), diz em outro poema, que dialoga imensamente com esta discussão:

 

irmãos humanos que depois de mim vivereis,

eu que fui obrigado a viver dobrados os oitenta,

fazei por acabar mais cedo vossos trabalhos cegos,

porque nestas idades já não nunca,

nem leituras embrumadas,

nem crenças, nem política das formas, nem poemas no futuro, nem

visitas extraterrestres de mulheres

exorbitantemente

nuas, cruas, sexuais, luminosas,

só vê-las um pouco, sim, mas vê-las também cansa,

é como trabalhar: stanca,

lavorare stanca,

queríamos tanto acreditar no milagre isabelino do pão e das rosas,

e só tínhamos que perder a alma,

hoje talvez eu mesmo acreditasse melhor, mas foi-se tudo,

enfim esses jogos gerais, ao tempo que se esgotaram!

livros, je les ai lus tous, e como de costume a carne é insondável,

estou mais pobre do que ao comêço,

e o mundo é pequeníssimo, dá-se-lhe corda, dá-se uma volta,

meia volta, e já era,

irmãos futuros do génio de Villon e do meu género baixo,

não peço piedade, apenas peço:

não me esqueceis só a mim, esquecei a geração inteira,

inclitamente vergonhosa,

que em testamento vos deixou esta montanha de merda:

o mundo como vontade e representação que afinal é como era,

como há-de ser: alta,

alta montanha de merda trepai por ela acima até à vertigem,

merda eminentíssima:

daqui se vêem os mistérios, os mesteres, os ministérios,

cada qual obrando a sua própria magia:

merda que há-de medrar melhor na memória do mundo (2014b, p. 688-89)

 

O colérico recado deixado à posteridade, ecoando Villon e sua “Balada dos enforcados”, denuncia a carga irônica presente de modo mais patente na última produção de Helder. O peso da vida aos oitenta é sintoma de uma velhice mais atormentada que apaziguada por uma possível sabedoria (“estou mais pobre do que ao comêço”) – mesmo que ele tenha lido todos os livros, repetindo a “Brise marine” de Mallarmé: “La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres.” –, em que sente a ausência das visitas femininas, das “crenças”, das “políticas das formas” e mesmo dos “poemas no futuro”, poemas esses que seriam impensáveis salvo alguma ingenuidade ou inocência, que ele rejeita: “queríamos tanto acreditar no milagre isabelino do pão e das rosas,” – num sujeito mais próximo da mortalha que na juventude.

As despedidas do mundo não deixam de se mostrar de maneiras aparentemente discordantes na relação com a proximidade da morte: por um lado, vemos o poeta a “olhar a morte incalculável”, “[...] súbito, atónito,/ e agarrado a tudo” (2014b, p. 708), e por outro a troçar do mundo e de quem nele há-de permanecer: “o mundo como vontade e representação que afinal é como era,/ como há-de ser: alta,/ alta montanha de merda”. Notamos, então, que em Servidões não poderíamos fixar uma atitude unívoca perante a presença da morte, revelando o modo contraditório dessa relação na última fase poética de Herberto Helder.

[…]

Ler mais em: Figurações do tardio no último Herberto Helder, Roberto Menezes. Belo Horizonte, UFMG - Faculdade de Letras, 2018


___________________

NOTAS

42 François Villon (1431-?): órfão de pai, o menino é confiado pela mãe a Guillaume de Villon, cônego de Saint-Benoît-le-Bétourné, em 1438, vindo a assumir o nome do pai adotivo. De 1443 a 1452, Villon estuda na Faculté des Arts da Université de Paris, tornando-se bacharel, licenciado e mestre em Artes. Em 1455, mais precisamente no dia 5 de junho, numa rixa de rua, Villon fere mortalmente o padre Philippe Sermoise, que morreu dois dias depois. Villon fuge. Em 1456, consegue o perdão e volta a Paris. No mesmo ano, participa de um roubo de 500 escudos de ouro do Colégio de Navarra. O poeta evade-se mais uma vez, num exílio de 6 anos. Delatado, Villon teve que se comprometer em devolver parte do roubo. Mas sua vida boêmia e criminosa o levou a ser condenado à forca, em 1462. Depois de recurso ao Parlamento, Villon teve sua pena comutada em banimento de Paris, depois do que desaparece completamente, sem deixar quaisquer rastros. Informações retiradas da cronologia presente no volume: VILLON, François. Poesia. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: EdUSP, 2000.

43 Na poesia portuguesa contemporânea, encontramos em Manuel de Freitas também uma correspondência poética com François Villon, por exemplo, no poema “Cronofobia”, de SIC (2002, p. 23):

Sou contemporâneo de Villon

e escrevo às vezes a Montaigne,

arguto mas demasiado absorto

no renome e na sabedoria instável

dos seus livros anotados.

Ouvi ontem, junto de Lady Nevell,

as últimas composições de Byrd

para virginal e pareceram-me

a primeira pavana, sobretudo

uma dádiva excessiva à posteridade.

Escrevo estas linhas agora

outrora, olhando de frente

o crepúsculo e as poucas nuvens

que toldam, por desfaçatez,

o céu irremediável de Janeiro.

Corre entretanto o boato de que

Castela se apossou de Portugal

e houve até um poeta obscuro

que preferiu morrer antes disso,

em versos de imponderável beleza.

Não sei. O vinho cola-se-me uma vez mais

aos lábios, cansados peregrinos do amor,

e um galgo aproxima-se devagar

da mão que nunca lerá José Saramago.

44 No livro póstumo intitulado Poemas canhotos, de 2015, Herberto Helder refere-se ao poeta francês como “mito Rimbaud”: “(entra um jovem sobraçando um maço de poemas cortados em diagonal pelo mito Rimbaud) (2015, p. 30).

45 Assinalando a tradução de Ledo Ivo para os poemas de Rimbaud, Paulo Leminski assim inicia seu texto: “Aí vem o primeiro marginal. Vivesse hoje, Rimbaud seria músico de rock. Drogado como o guitarrista Jimi Hendrix, bissexual como Mike Jagger, dos Rolling Stones. ‘Na estrada’, como toda uma geração de roqueiros. Nenhum poeta francês do século passado teve vida tão ‘contemporânea’ quanto o gatão e ‘vidente’ Arthur Rimbaud. Pasmou os contemporâneos com uma precocidade poética extraordinária obras-primas entre os 15 e os 18 anos. De repente, largou tudo, Europa, civilização ocidental-cristã, literatura e, cometa, se mandou para a Abissínia, na África. Lá, longe da Europa branca e burguesa que odiava, levou a vida de mercador árabe, traficando armas, varando desertos nunca antes pisados, vivendo a grande aventura infantil, pré-figurada em seu nome de rei lendário. Breve durou esse Camelot. Da África, o rei Arthur voltaria à França para amputar uma perna e morrer, de câncer, num hospital de Marselha, delirando poesia, cercado por padres e sua irmã, ávidos pela confissão desse blasfemo.” (2011, p. 311).

46 Sobre isso, Enrique Vila-Matas, em Bartleby e companhia, diz: “Um Rimbaud maduro – “O outono já!” –, um Rimbaud maduro aos dezenove anos despede-se definitivamente da, para ele, falsa ilusão do cristianismo, das sucessivas etapas pelas quais, até esse momento, passara sua poesia, de suas tentativas

iluministas, de sua ambição imensa.” (2004, p. 103).

47 “Outono já! ― mas por que lamentar um sol eterno, se estamos empenhados em descobrir a claridade divina, ― longe dos que morrem com as estações.

O outono. Nossa barca arvorada sobre as brumas imóveis se volta para o porto da miséria, a cidade imensa cujo céu se mancha em labareda e lodo. Ah! os farrapos já podres, o pão que a chuva empapa, a embriaguez, as mil paixões que me crucificaram! Não terá mesmo fim essa lâmia rainha de milhões de almas e de corpos que serão julgados! Estou a ver-me, a pele carcomida pela lama e a peste, de vermes cheios os cabelos e axilas e um verme ainda maior no coração, estendido entre desconhecidos sem idade, nem sentimentos... Podia ter morrido ali... Horrenda evocação! Abomino a miséria.

E temo o inverno por ser a estação do conforto!

― Vejo às vezes no céu praias sem fim cobertas de brancas nações em júbilo. Grande nave dourada, acima de mim, agita pavilhões multicores à brisa da manhã. Criei todas as festas, todos os triunfos, todos os dramas. Tentei inventar novas flores, novos astros, novas carnes, novas línguas. Acreditei-me possuído de poderes sobrenaturais. Pois bem! devo enterrar minha imaginação e minhas lembranças! Bela glória de artista e prosador que lá se vai!

Eu! eu que me dizia mago ou anjo, eximido de qualquer moral, sou devolvido ao solo, com um dever a cumprir e forçado a abraçar a áspera realidade! Aldeão!

Estarei enganado? seria a caridade a irmã da morte, para mim?

Afinal, pedirei perdão por ter-me alimentado de mentiras. E continuemos.

Mas nem uma só mão amiga! e donde arrancar socorro?

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Sim, a hora nova é pelo menos severíssima.

Porque posso afirmar ter alcançado a vitória: o ranger de dentes, o silvar do fogo, os suspiros pestilentos se moderam. Todas as lembranças imundas se esvanecem. Meus últimos pesares se retiram; ― inveja dos mendigos, malfeitores, amigos da morte, retardados de todas as espécies. Danados, se eu me vingasse! Sejamos absolutamente modernos. Nada de cânticos: manter o terreno conquistado. Dura noite! o sangue seco esturrica no meu rosto, atrás de mim só tenho aquele horrendo arbusto!... O combate espiritual é tão rude quanto a batalha dos homens; mas a visão da justiça é prazer só de Deus. É a vigília, contudo. Acolhamos todos os influxos de vigor e de autêntica ternura. E à aurora, armados de ardente paciência, entraremos nas cidades esplêndidas. Falei de mão amiga! Uma grande vantagem é que posso rir dos velhos amores mentirosos, e cobrir de vergonha esses casais de mentira ― lá embaixo eu vi o inferno das mulheres ―; e então me será lícito possuir a verdade em uma alma e um corpo.” (2015, p. 67-69).

48 No original: “Así pues la vida literaria de Rimbaud se prolonga – como mucho de los diez a los diecinueve años. Los dieciocho años que restan hasta su muerte son de silencio, y toda su madurez parece venir a ser un anticlímax a su temprano descollar literario. Etiemble ha escrito lúcidamente sobre cómo la anómala vida literaria de Rimbaud, su precocidad, su ambición, su minoratismo y su retiro, han dado fruto a diversos mitos particulares, que han acabado por darnos esta figura enorme de las letras modernas que es hoy el ‘mito Rimbaud’.” (PARCERISAS, 1980, p. 9-10).

49 Em Letra aberta, encontramos um poema que retorna ao tema do suicídio, desta vez comparando a profundidade do rio em Lisboa com a do rio em Paris, que, apesar de ser mais raso, seria mais propício ao suicídio: “o rio cego em Lisboa é bem mais fundo/ que o rio cego e largo e rápido em Paris/ mas é bem mais longa e ilustre e interessante/ a história suicida do rio cego lá fora/ do que a história do rio aqui/ em Paris mal uma pessoa se angustia pensa em afogar-se nas modestas águas do rio ali à mão/ mas em Lisboa com toda aquela massa sumptuosa e lenta e histórica/ as pessoas pensam que não estão à altura de uma assim tão vasta morte/ as pessoas então pensam: esta tão subida morte nunca me acolherá/ não a mereço/ e voltam para a sua pequena vida desesperada/ mas em si mesma burocrática” (2016, p. 30). Esse poema refere-se, provavelmente, ao suicídio de Paul Celan, poeta romeno radicado na França depois de sobreviver ao Holocausto, no rio Sena, em 1970.

50 Refiro-me aqui, também, ao poema “Sei às vezes que o corpo é uma severa/ massa oca, com dois orifícios/ nos extremos:” (2014, p. 352), de Flash, já citado no segundo capítulo desta tese.

51 Destacamos os prefácios intitulados “Relance sobre a poesia de Edmundo de Bettencourt” (HELDER, Herberto. Relance sobre a poesia de Edmundo de Bettencourt. In: BETTENCOURT, Edmundo de. Poemas de Edmundo de Bettencourt. Lisboa: Portugália, 1963. p. XI-XXXII.) e “Nota inútil” (HELDER, Herberto. Nota inútil. In: FORTE, António José. Uma faca nos dentes. Lisboa: Parceira A. M. Pereira, 2003. p. 9-16.).

52 Referimo-nos ao texto “Cena vocal com fundo visual de Cruzeiro Seixas”, retirado do catálogo da exposição de Cruzeiro Seixas e republicado no jornal Diário de Notícias: HELDER, Herberto. Cena vocal com fundo visual de Cruzeiro Seixas. Diário de Notícias, Lisboa, 19 jun. 1980. p. 17.

53 Podemos destacar, por exemplo, as recentes publicações nas revistas Relâmpago e Telhados de Vidro.

54 Sobre esse poema, indicamos ainda a reflexão de Patrícia Resende Pereira presente no texto “‘e o sopro unido vem à volta: reflexões sobre o ato da criação em um poema de Servidões, de Herberto Helder”, do livro Sáfara safra: OLIVEIRA, Silvana Pessôa de; SOUZA, Isabella Batista de; PEREIRA, Patrícia Resende (Org.). Sáfara safra: leituras da poesia de Herberto Helder. Belo Horizonte: Tamanha Poesia, 2015.

55 Eis o poema de Kavafis completo, em tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis (KAVAFIS, 2005, p. 221-23):

Quem esperamos na ágora congregados?

Os bárbaros hão-de chegar hoje.

Porquê tanta inactividade no Senado?

Porque estão lá os Senadores e não legislam?

Porque os bárbaros chegarão hoje.

Que leis irão fazer já os Senadores?

Os bárbaros quando vierem legislarão.

Porque se levantou tão cedo o nosso imperador,

e está sentado à maior porta da cidade

no seu trono, solene, de coroa?

Porque os bárbaros chegarão hoje.

E o imperador espera para receber

o seu chefe. Até preparou

para lhe dar um pergaminho. Aí

escreveu-lhe muitos títulos e nomes.

Porque os nossos dois cônsules e os pretores

saíram hoje com as suas togas vermelhas, as bordadas;

porque levaram pulseiras com tantas ametistas,

e anéis com esmeraldas esplêndidas, brilhantes;

porque terão pegado hoje em báculos preciosos

com pratas e adornos de ouro extraordinariamente cinzelados?

Porque os bárbaros chegarão hoje;

e tais coisas deslumbram os bárbaros.

E porque não vêm os valiosos oradores como sempre

para fazerem os seus discursos, dizerem das suas coisas?

Porque os bárbaros chegarão hoje;

e eles aborrecem-se com eloquências e orações políticas.

Porque terá começado de repente este desassossego

e confusão. (Como se tornaram sérios os rostos.)

Porque se esvaziam rapidamente as ruas e as praças,

e todos regressam às suas casas muito pensativos?

Porque anoiteceu e os bárbaros não vieram.

E chegaram alguns das fronteiras,

e disseram que já não há bárbaros.

E agora que vai ser de nós sem bárbaros.

Esta gente era alguma solução.

56 Podemos referir ainda ao poema “Alexandria”, de Pedro Mexia, que desenvolve uma reflexão sobre o caráter mítico a ela atrelado pela escrita kavafiana. Assim começa Mexia o seu poema, que fala de uma “Alexandria do pensamento”, “unreal city”: “Lisboa não é Alexandria mas/ Alexandria não passa de uma metrópole/ em versos subida e sublimada, a sua geometria,/ as incisões do pequeno desespero.” (2016, p. 67).

57 Aqui podemos sem medo apontar a referência ao título original do primeiro livro de poemas de Cesare Pavese: Lavorare stanca, traduzido no Brasil por Trabalhar cansa. Na seção “Cidade no campo”, encontramos os poemas mais engajados do volume, com a aparição de camponeses e operários que trabalham duro e se sentem cansados. O poema que carrega o título ali aparece comparando vida adulta e infância: “Travessar uma rua fugindo de casa/ só um menino o faria, mas este homem que passa/ todo o dia nas ruas não é mais menino/ e não foge de casa”. Contemplativo, o sujeito do poema se põe a divagar sobre as ações no mundo, como é o caso das conquistas amorosas, citadas no poema herbertiano e no de Pavese: “[...] Forçoso é abordar uma mulher/ e falar-lhe e fazê-la viver com você.” É notória a diferença entre os dois poemas: uma visão matrimonial e uma visão sexual se chocam inevitavelmente.




CARREIRO, José. “Herberto Helder, leitor de François Villon, ladrão, boémio, amante de beber e de andar à pancada”. Portugal, Folha de Poesia, 31-08-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/08/herberto-helder-leitor-de-francois.html



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