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quarta-feira, 17 de agosto de 2022

François Villon, criminoso e poeta

     François Villon (1431?-1463), poeta francês do final da Idade Média, também boémio e ladrão, é precursor dos “poetas malditos” do Romantismo.



 

BALLADE

DES MENUS PROPOS.

 

Je congnois bien mouches en laict ;

Je congnois à la robe l’homme ;

Je congnois le beau temps du laid ;

Je congnois au pommier la pomme ;

Je congnois l’arbre à veoir la gomme ;

 

Je congnois quand tout est de mesme ;

Je congnois qui besongne ou chomme ;

Je congnois tout, fors que moy-mesme.

 

Je congnois pourpoinct au collet ;

Je congnois le moyne à la gonne ;

Je congnois le maistre au valet ;

Je congnois au voyle la nonne ;

Je congnois quand piqueur jargonne ;

Je congnois folz nourriz de cresme ;

Je congnois le vin à la tonne ;

Je congnois tout, fors que moy-mesme.

 

Je congnois cheval du mulet ;

Je congnois leur charge et leur somme ;

Je congnois Bietrix et Bellet ;

Je congnois gect qui nombre et somme ;

Je congnois vision en somme ;

Je congnois la faulte des Boesmes ;

Je congnois filz, varlet et homme ;

Je congnois tout, fors que moy-mesme.

 

ENVOI.

 

Prince, je congnois tout en somme ;

Je congnois coulorez et blesmes ;

Je congnois mort qui nous consomme ;

Je congnois tout, fors que moy-mesme.

 

Œuvres complètes de François Villon, Texte établi par éd. préparée par La Monnoye, mise à jour, avec notes et glossaire par M. Pierre Jannet, A. Lemerre éd., 1876 (p. 117-118) <https://fr.wikisource.org/wiki/Ballade_des_Menus_Propos>




[traduções]


 

BALADA DAS COISAS SEM IMPORTÂNCIA

 

Conheço a mosca em leite branco,

Conheço o homem pela veste,

Conheço o tempo mau e o brando,

Conheço o ramo e o cipreste,

Conheço a fruta onde se colga,

Conheço quando tudo é o mesmo,

Conheço quem trabalha ou folga,

Conheço bem, fora a mim mesmo.

 

Conheço o gibão no colete,

Conheço no hábito o monge,

Conheço o patrão no valete,

Conheço pelos véus a monja,

Conheço o engano e a lisonja,

Conheço o louco solto a esmo,

Conheço o vinho bom de longe,

Conheço bem, fora a mim mesmo.

 

Conheço o jegue e o ginete,

Conheço a carga que os assoma,

Conheço Bia e Elizabete,

Conheço a ficha que faz soma,

Conheço a visão e o sonho,

Conheço os hereges Boêmios,

Conheço os poderes de Roma,

Conheço bem, fora a mim mesmo.

 

Príncipe, bem conheço, em suma:

Conheço os bons e os enfermos,

Conheço a morte e o que se esfuma,

Conheço bem, fora a mim mesmo.

 

Villon, François. Poesia, trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: EdUSP, 2000, p. 316-9

 

 

 

BALADA DAS COISAS SEM IMPORTÂNCIA

 

Conheço se há moscas no leite,

Conheço pela roupa o homem,

Conheço o tédio e o deleite,

Conheço a fartura e a fome,

Conheço a mulher pelo enfeite,

Conheço o princípio e o fim,

Conheço pela chama o azeite,

Conheço tudo, menos a mim.

 

Conheço o gibão pela gola,

Conheço o rico pelo anel,

Conheço o fiel pela sacola,

Conheço a monja pelo véu,

Conheço o porco pela tripa,

Conheço o irmão pelo latim,

Conheço o vinho pela pipa,

Conheço tudo, menos a mim.

 

Conheço a mula e o cavalo,

Conheço o carro e a carreta,

Conheço a galinha e o galo,

Conheço o sino e a sineta,

Conheço a flor pelo talo

Conheço Abel e Caim,

Conheço o pote e o gargalo,

Conheço tudo, menos a mim.

 

Ofertório

 

Príncipe, conheço tudo em suma,

Conheço o branco e o carmim,

E a morte que o fim consuma.

Conheço tudo, menos a mim.

 

Tradução de Reynaldo Ferreira, http://www.arteculturanews.com/poesia51.htm, 20/6/2005

 

 

BALADA DAS COISAS DESIMPORTANTES

 

Conheço bem moscas no leite;

Conheço o homem pela roupa;

Conheço o bom tempo e o mau;

Conheço a maçã pela macieira;

Conheço a árvore ao ver a goma;

Conheço quando tudo é assim mesmo;

Conheço quem trabalha ou folga;

Conheço tudo, menos a mim mesmo.

 

Conheço o gibão pelo colarinho;

Conheço o monge pelo hábito;

Conheço o mestre pelo criado;

Conheço pelo véu a freira;

Conheço quando trapaceiro deita fala;

Conheço loucos nutridos de cremes;

Conheço o vinho pelo tonel;

Conheço tudo, menos a mim mesmo.

 

Conheço cavalo e mulo,

Conheço seu encargo e sua carga;

Conheço Beatriz e Belinha;

Conheço ficha que conta e soma;

Conheço a vigília e o sono;

Conheço a falta dos Boêmios;

Conheço o poder de Roma.

Conheço tudo, menos a mim mesmo.

 

Príncipe, eu conheço tudo, em suma.

Conheço corados e pálidos;

Conheço a morte, que nos consome;

Conheço tudo, menos a mim mesmo.

 

wilson a. ribeiro jr., https://warj.med.br/memo/villon.asp, 30.09.2021

 

François Villon (Grand Testament de Maistre François Villon, 1489)


 

FRANÇOIS VILLON, CRIMINOSO E POETA

Falámos na semana passada, de um príncipe francês e de um nobre de Espanha: Charles d'Orléans e o Marquês de Santillana. Hoje iremos falar de um pobre plebeu de Paris, de quem os azares da existência e as vicissitudes de um temperamento irrequieto fizeram um vagabundo e até um criminoso de direito comum. Mas na balança dos valores poéticos este plebeu pesa sem dúvida muito mais que esses dois nobres, ainda seus contemporâneos; e no tribunal da crítica de poesia este criminoso ver-se-á inteiramente ilibado de culpas. Com efeito, a sua obra (e apenas a sua obra é que temos ele julgar) não apresenta nenhum daqueles pequenos delitos - ele maneirismo, de preciosismo, de artificialidade - que mancham um pouco, aqui e ali, as obras ele Charles d'Orléans e do Marquês ele Santillana. Por outro lado, há em toda essa obra um tal vigor e um tal sabor de genuína raiz popular que a sentimos incomparavelmente mais perto de nós. Enfim, por outras palavras (e isto não tem absolutamente nada a ver com a condição social destes três poetas do século xv), tanto Charles d'Orléans como o Marquês de Santillana, ambos poetas ele primeira categoria, tinham, indubitavelmente, muitíssimo talento; mas François Villon, além do talento - também tinha génio. E não falta mesmo quem o considere o vulto mais genial de toda a poesia francesa.

Essa genialidade manifesta-se logo no domínio da expressão: François Villon possuía, por instinto, o dom da palavra exata, da construção certeira, da imagem que acerta no alvo - e logo nos faz estremecer da cabeça aos pés, porque o alvo é afinal o nosso próprio coração. Um poeta alemão do século xx - Gottfried Benn - escreveu um dia o seguinte a este respeito: "A relação que se tem com a palavra é primária, não pode aprender-se. Pode-se aprender o equilibrismo, a corda bamba, os jogos do trapézio, a marcha em cima dos pregos, mas colocar a palavra para que ela exerça a sua fascinação, isso, ou se sabe fazer ou não se sabe." Ora isto mesmo sabia-o François Villon, e no mais alto grau. Mas saber isto mesmo no mais alto grau também apresenta os seus inconvenientes: os poetas que assim o sabem são praticamente intraduzíveis. E devo confessar, desde já, que, sob este aspeto, poucos poetas até agora me deram tantas dores de cabeça como François Villon. Deixaremos, contudo, este ponto para mais tarde.

De momento, ou eu me engano muito ou há por aí algumas pessoas que estarão interessadas em saber como é que François Villon se tornou um vagabundo e quais os crimes de que veio a ser acusado. A curiosidade acerca deste género de coisas continua ainda a ser muito forte em muita gente. Pois bem: vamos lá a um sucinto relato biográfico.

François Villon - cujo verdadeiro nome era François de Montcorbier (e também conhecido por François des Loges) - nasceu em Paris, provavelmente em 19 de abril de 1432. Paris teria então o aspeto que se vislumbra na zona de fundo deste quadro, com as duas torres da abadia de Saint-Germain-des-Prés ali à esquerda, o vulto do Louvre (do Louvre de então) mesmo no meio e, lá para cima, a Butte Montmartre, o outeiro de Montmartre ... Aqui temos agora, vista também da Rive Gauche, outra perspectiva do Louvre; tratemos de não prestar atenção à figura da direita, em grande plano, e atentemos, sobretudo, naqueles três figurantes, do lado direito, indolentemente encostados ao parapeito sobre o Sena... Serão porventura contemporâneos de François Villon e algum deles, porventura, também estudante como ele foi; e quem sabe também se mais assíduo frequentador, como o próprio Villon, de lugares como estes - a que se chamavam “casas de banhos”, mas eram antes “tabernas” de características muito especiais - do que propriamente das aulas da Universidade... Seja como for, e não obstante os atrativos ele outra ordem que a vida estudantil apresentaria, Villon acaba por licenciar-se pela Faculdade das Artes. Mas, poucos anos depois, as más companhias - tanto masculinas como femininas - arrastam-no para situações altamente comprometedoras. Apesar de tudo, as companhias femininas ainda serão as menos graves - e Villon, mais tarde, certamente se recordará de todas elas, numa saborosa “Balada das Damas de Paris”, em que celebra (já no século xv!), sobre todas as demais mulheres, a tagarelice, o poder de argumentação, a lábia, em suma, elas parisienses:

 

Se bem que sejam bem-falantes

venezianas, florentinas;

se bem que a nós digam bastante

ainda outras mais antigas;

e que as de Roma ou Lombardia

falem que nem um chafariz

(mais as de Génova ou de Pisa)

- finas de boca, só em Paris!

 

Falam de papo geralmente

- ao que se diz - napolitanas;

e são também eloquentes

as alemãs e as prussianas.

Mas sejam gregas ou troianas

ou de qualquer outro país,

húngaras mesmo ou castelhanas

- finas de boca, só em Paris!

 

Sejam bretãs, sejam suíças,

ou de Tolosa, ou da Gasconha,

ao pé de duas parisinas

perdem o pio mais a ronha.

De inglesas digo a mesma cousa.

(Faltou citar algum país?)

Em parte alguma isto se encontra:

- finas de boca, só em Paris!

 

Príncipe, dá a estas damas

justo valor, como um juiz.

Por mais que as outras tenham fama

- finas de boca, só em Paris!

 

Desde já previno os interessados que aquilo que acabaram de ouvir foi mais uma “adaptação” que propriamente uma "tradução": por maior cuidado que se ponha nesta tarefa, o tal poder de François Villon para colocar a palavra no lugar exacto “para que ela exerça a sua fascinação” torna praticamente intraduzíveis quase todas as suas poesias. A esta dificuldade acrescente-se ainda o emprego constante do "calão" - reflexo dos “meios” boémios frequentados por Villon - e ter-se-á uma ideia de quanto são espinhosas ele obter as necessárias correspondências. Darei só um exemplo: no refrão, quando Villon diz “Il n 'est bon bec que de Paris" - o que daria, quase à letra, "Não há línguas afiadas como as de Paris" - , vi-me obrigado a traduzir, até por exigências ele ritmo, "Lábia a valer, só em Paris!". E fui forçado também a omitir referências a outras não-parisienses, tais como: piemontesas, egípcias, lorenas, picardas... Mas creio que se conservou o sentido geral da poesia.

Posto isto, voltemos ao "romance" da vida de Villon. Com efeito, é de um autêntico "romance" que se trata. Envolvido no assassínio de um padre e no assalto ao cofre do Colégio de Navarra, Villon vê-se compelido por mais de uma vez a ausentar-se de Paris e acaba por ser preso, em 1461, em Meung-sur-Loire, nas prisões do bispo de Orléans. Nessa altura o que o salva é a passagem do rei Luís XI por esta cidade e a amnistia de que, por esse motivo, ele se vê beneficiado. É, no entanto, sol de pouca dura: dois anos depois, implicado em nova rixa, ei-lo condenado à forca. Escreve então um dos seus melhores poemas: um epitáfio em forma de balada, em que pede clemência para si e para os companheiros igualmente condenados. Esse é o texto que vamos agora apresentar numa versão de Herculano de Carvalho, incluída no livro Musa de Quatro Idiomas, aonde já temos ido buscar outros empréstimos; e creio poder assegurar que seria impossível traduzir melhor uma poesia como esta:

 

Homens irmãos que mais que nós viveis,

Não deixeis vosso peito empedernido,

Pois que, se compaixão de nós haveis,

Bem será Deus de vós compadecido.

Aqui somos atados cinco, seis.

Quanto à carne, demais por nós nutrida,

É gasta, devorada, corrompida

E nós, ossos, cinza e pó vamos ser.

Que ninguém de nós ria nesta vida;

Rogai a Deus que nos queira absolver!

 

Se clamamos, irmãos, vós não deveis

Ter desdém, por termos sido feridos

Pela justiça. Pois vós sabereis

Que nem todos têm certos os sentidos;

Intercedei por nós assim transidos

junto do Filho da Virgem Maria,

Que não seja, da graça, a alma vazia,

Pra do fogo infernal nos proteger.

Somos mortos, nada nos arrelia;

Rogai a Deus que nos queira absolver!

 

Pela chuva lavados e polidos,

Pelo sol ressequidos e tostados,

Os olhos pelos corvos engolidos,

A barba e os cabelos arrancados.

Nunca jamais estamos assentados;

Pra cá, pra lá, como o vento varia;

Para onde quer, sem parar, nos envia.

Bicadas: mil, até dedais parecer.

Não sejais, pois, da nossa confraria;

Rogai a Deus que nos queira absolver!

 

Senhor Jesus, de todos senhoria,

Poupai-nos do Inferno a tirania:

Nada temos com ele a resolver.

Homens, aqui não cabe a zombaria;

Rogai a Deus que nos queira absolver!

 

A perspetiva da morte iminente, a perspetiva do próprio Inferno, são bem patentes nestes versos, sem dúvida elos mais impressionantes e patéticos de toda a poesia europeia, já pela consciência do mal e pelo sentimento de arrependimento que exprimem, já pela situação extrema em que de facto se inscrevem. E a situação é tão desesperada que só na clemência divina é que François Villon coloca as suas últimas esperanças; só para ela recorre, só dela espera uma derradeira absolvição. Mas a justiça dos homens, por esta vez, intervém a tempo: um decreto do Parlamento vem anular a sentença; e Villon, em lugar da pena ele morte, vê-se tão-só banido de Paris pelo espaço de dez anos. Depois disto, perde-se inteiramente o rasto de François Villon; mas o rasto ela sua poesia, esse, nunca mais se perdeu: e em 1489, menos de trinta anos depois destes acontecimentos, menos ele quarenta anos depois ela invenção da imprensa, um dos primeiros livros de versos que sai dos prelos franceses é justamente o que reúne as obras ele François Villon.

 

David Mourão-Ferreira, "O 'Outono da Idade Média' V - François Villon, criminoso e poeta", Colóquio/Letras, n.º 166/167, Jan. 2004, p. 441-445.

 



 

Poderá também gostar de ler:


DA COSTA, D. Testamento do Vilão – Invenção e recepção da poesia de François Villon. 2013. f. 304. Tese – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Letras Modernas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

 

DA COSTA, Daniel. “Autor e personagem - François Villon e a nova crítica na França”, in Revista Criação & Crítica n.º 12, 2014. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-1124.v0i12p76-87

 

DA COSTA, Daniel. “Clément Marot: o principal editor antigo do corpus atribuído a François Villon”, in Revista Criação & Crítica, dezembro 2015. DOI:10.11606/issn.1984-1124.v0i15p41-54. Project: Invenção e recepção das obras atribuídas a François Villon

 

BASTOS, Gustavo. “François Villon, o primeiro dos poetas malditos” - parte I (16/07/2016 | Atualizado 08/03/2020) e parte II (23/07/2016 | Atualizado 

 



CARREIRO, José. “François Villon, criminoso e poeta”. Portugal, Folha de Poesia, 17-08-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/08/francois-villon-criminoso-e-poeta.html



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