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quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Soneto científico a fingir (Ana Luísa Amaral, 1956-2022)

 
Ana Luísa Amaral diz o seu "Soneto científico a fingir".



SONETO CIENTÍFICO A FINGIR

 

Dar o mote ao amor. Glosar o tema

tantas vezes que assuste o pensamento.

Se for antigo, seja. Mas é belo

e como a arte: nem útil nem moral.

 

Que me interessa que seja por soneto

em vez de verso ou linha devastada?

O soneto é antigo? Pois que seja:

também o mundo é e ainda existe.

 

Só não vejo vantagens pela rima.

Dir-me-ão que é limite: deixa ser.

Se me dobro demais por ser mulher

(esta rimou, mas foi só por acaso)

 

Se me dobro demais, dizia eu,

não consigo falar-me como devo,

ou seja, na mentira que é o verso,

ou seja, na mentira do que mostro.

 

E se é soneto coxo, não faz mal.

E se não tem tercetos, paciência:

dar o mote ao amor, glosar o tema,

e depois desviar. Isso é ciência!

 

Ana Luísa Amaral, E muitos os caminhos, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, p. 35.

 

 

Num poema chamado "Soneto Científico a Fingir" (E Muitos os Caminhos, p. 35), a poeta finge um soneto, que não é, e ostenta a poesia como mentira em relação ao eu que se inscreve no texto: "não consigo falar-me como devo,/ ou seja, na mentira que é o verso/ ou seja, na mentira do que mostro". Trata-se, nesse "Soneto Científico a Fingir", de glosar o eterno e velho tema do amor, e a ciência que o poeta propõe é a da mentira, do desvio em relação ao centro: «dar o mote ao amor, glosar o tema/ e depois desviar. Isso é ciência!» Descentrar, mais uma vez, mentindo e com a mentira inventar - «O melhor rouxinol:/ o inventado», diz-se noutro poema a fingir-se ode, intitulado "Ao Rouxinol: a Ode que não é" (E Muitos os Caminhos, p. 49).

 

Isabel Pires de Lima, «Concertos/desconsertos: arte poética e busca do sujeito na poesia de Ana Luísa Amaral», in Maria de Fátima Outeirinho & Rosa Maria Martelo (orgs.), Cadernos de Literatura Comparada – Identidades no Feminino, n.º 2, Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa/Granito, 2001.

[Também publicado na revista Veredas, nº 3 – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas – Faculdade de Letras – Universidade de Coimbra].




 

Neste poema – um “soneto coxo”, ou seria um soneto estrambótico “na largueza de cinco quadras que multiplicam os decassílabos em ausência de tercetos”? (MARTELO) – Ana Luísa Amaral expõe algumas características que estarão presentes em toda a sua obra: o tão antigo e cantado tema do amor continua e continuará presente em sua poesia e, mais ainda, se for um soneto de amor – tradição da poesia petrarquiana – retomado pela poeta em A Gênese do Amor (seu décimo livro de poemas). No entanto, este soneto não é um soneto de amor, trata-se de um soneto “científico” – que tem ciência. Ciência de si mesmo? Consciência? Conhecimento para a execução de uma arte? Ou ciência que tantas vezes se opõe ao amor e que o explica como reação química?

Obviamente que, em se tratando de poesia portuguesa, num “Soneto científico a fingir” (grifo nosso) não pode passar despercebida a “poética do fingimento” de Fernando Pessoa, a poética que tem “ciência” de que está “a fingir”. Portanto, ainda no título do poema, nos deparamos com a herança clássica: o soneto (de Petrarca, Dante e Camões) e a herança do maior poeta modernista português: Pessoa. E essa é mais uma característica marcante da poesia de Ana Luísa Amaral: a poeta explora a possibilidade de dialogar com a poesia clássica, com a poesia modernista e mesmo com a poesia contemporânea portuguesa.

Portanto, Ana Luísa sente-se à vontade para, ao contrário dos poetas modernistas, explorar os temas e as formas clássicas – abandonados pelos poetas modernos com seus versos e linhas “devastados” –; mas retornar a estas formas clássicas não deixa de ser, de certo modo, uma forma de subversão: Ana Luísa Amaral ao retornar ao uso das formas e dos temas clássicos confronta um paradigma instaurado pela poesia modernista, a regra de não ter regra: “Que me interessa que seja por soneto / em vez de verso ou linha devastada? / O soneto é antigo? Pois que seja: / também o mundo é e ainda existe” (AMARAL, 2010, p. 215). Mas Ana Luísa Amaral nos apresentará uma espécie de alternância no uso das formas clássicas e modernas: observemos que, apesar de a princípio estar nos apresentando uma forma clássica, há uma continuidade, na não utilização de rimas, com o modernismo: “Só não vejo vantagens pela rima” (AMARAL, 2010, p. 215). Ou melhor, na não utilização das rimas como forma fixa, pois também este não seria um critério rígido: “Dir-me-ão que é limite: deixa ser. / Se me dobro demais por ser mulher / [esta rimou, mas foi só por acaso]” (AMARAL, 2010, p. 215). E é exatamente neste ponto de seu “Soneto científico a fingir”, que a poeta trará a referência ao fato de ser uma poeta, uma mulher que escreve dialogando com as poéticas clássica e moderna.

Na tradição da poesia modernista portuguesa, pessoana portanto, Ana Luísa Amaral “sabe” que deve apropriar-se da poética do fingidor, do poeta que “finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”, ou seja, deve “falar-se” e “mostrar-se” na “mentira que é o verso”: “Se me dobro demais, dizia eu, / não consigo falar-me como devo, / ou seja, na mentira que é o verso, / ou seja, na mentira do que mostro” (AMARAL, 2010, p. 215). Assim, é possível perceber que Ana Luísa Amaral transita entre as tradições antigas e as (já tradições) modernas, estabelecendo, assim, uma nova poética, que não é rígida nem na forma de seguir a tradição, nem na forma de romper com ela. Melhor dizendo: a poeta dialogará com as tradições, subvertendo as regras na sua maneira de não as seguir estritamente. Escreve um soneto, mas é um soneto “coxo” e com linguagem coloquial.

Não se trata de um soneto de catorze versos, com dois quartetos e dois tercetos, mas de um poema de vinte versos, com cinco quartetos. Do mesmo modo, não se utiliza de linguagem elevada, mais apropriada a um soneto tradicional, e sim de uma linguagem irónica, à maneira de Bocage ou Gregório de Matos. Vejamos a última estrofe do poema: “E se é soneto coxo, não faz mal. / E se não tem tercetos, paciência: / dar o mote ao amor, glosar o tema, / e depois desviar. Isso é ciência!”

Ana Luísa Amaral estabelece, dessa forma, que é necessário dialogar com a tradição: escrever sonetos, explorar ainda a temática amorosa, “dar mote ao amor” e depois ter a sabedoria (“ciência”) de desviar do tema, ou seja, como numa espécie de imitatio, a autora demonstra que conhece a técnica, tem ciência, e a partir da tradição se desvia da mesma tradição, criando sua própria arte, ainda que para isso seja preciso escrever versos de “pé quebrado” e que a emenda seja pior do que o soneto.

Voltemos outra vez ao verso central do primeiro poema de Ana Cristina Cesar apresentado aqui: sua poética é “quebrada pelo meio”, talvez seja imperfeita como o “poema de pé quebrado”, ou o “soneto coxo” de Ana Luísa Amaral –, ou seja, há nessa imperfeição uma ruptura com a poética que a precede, ruptura ocasionada pelo fato de, por ser mulher, ao deparar-se com a sua própria sexualidade e feminilidade, não é possível manter-se estritamente na tradição.

 

Rhea Sílvia Willmer, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina Cesar: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014

 


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CARREIRO, José. “Soneto científico a fingir (Ana Luísa Amaral, 1956-2022)”. Portugal, Folha de Poesia, 10-08-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/08/soneto-cientifico-fingir-ana-luisa.html


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