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quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Soneto científico a fingir (Ana Luísa Amaral, 1956-2022)

 
Ana Luísa Amaral diz o seu "Soneto científico a fingir".



SONETO CIENTÍFICO A FINGIR

 

Dar o mote ao amor. Glosar o tema

tantas vezes que assuste o pensamento.

Se for antigo, seja. Mas é belo

e como a arte: nem útil nem moral.

 

Que me interessa que seja por soneto

em vez de verso ou linha devastada?

O soneto é antigo? Pois que seja:

também o mundo é e ainda existe.

 

Só não vejo vantagens pela rima.

Dir-me-ão que é limite: deixa ser.

Se me dobro demais por ser mulher

(esta rimou, mas foi só por acaso)

 

Se me dobro demais, dizia eu,

não consigo falar-me como devo,

ou seja, na mentira que é o verso,

ou seja, na mentira do que mostro.

 

E se é soneto coxo, não faz mal.

E se não tem tercetos, paciência:

dar o mote ao amor, glosar o tema,

e depois desviar. Isso é ciência!

 

Ana Luísa Amaral, E muitos os caminhos, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, p. 35.

 

 

Num poema chamado "Soneto Científico a Fingir" (E Muitos os Caminhos, p. 35), a poeta finge um soneto, que não é, e ostenta a poesia como mentira em relação ao eu que se inscreve no texto: "não consigo falar-me como devo,/ ou seja, na mentira que é o verso/ ou seja, na mentira do que mostro". Trata-se, nesse "Soneto Científico a Fingir", de glosar o eterno e velho tema do amor, e a ciência que o poeta propõe é a da mentira, do desvio em relação ao centro: «dar o mote ao amor, glosar o tema/ e depois desviar. Isso é ciência!» Descentrar, mais uma vez, mentindo e com a mentira inventar - «O melhor rouxinol:/ o inventado», diz-se noutro poema a fingir-se ode, intitulado "Ao Rouxinol: a Ode que não é" (E Muitos os Caminhos, p. 49).

 

Isabel Pires de Lima, «Concertos/desconsertos: arte poética e busca do sujeito na poesia de Ana Luísa Amaral», in Maria de Fátima Outeirinho & Rosa Maria Martelo (orgs.), Cadernos de Literatura Comparada – Identidades no Feminino, n.º 2, Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa/Granito, 2001.

[Também publicado na revista Veredas, nº 3 – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas – Faculdade de Letras – Universidade de Coimbra].




 

Neste poema – um “soneto coxo”, ou seria um soneto estrambótico “na largueza de cinco quadras que multiplicam os decassílabos em ausência de tercetos”? (MARTELO) – Ana Luísa Amaral expõe algumas características que estarão presentes em toda a sua obra: o tão antigo e cantado tema do amor continua e continuará presente em sua poesia e, mais ainda, se for um soneto de amor – tradição da poesia petrarquiana – retomado pela poeta em A Gênese do Amor (seu décimo livro de poemas). No entanto, este soneto não é um soneto de amor, trata-se de um soneto “científico” – que tem ciência. Ciência de si mesmo? Consciência? Conhecimento para a execução de uma arte? Ou ciência que tantas vezes se opõe ao amor e que o explica como reação química?

Obviamente que, em se tratando de poesia portuguesa, num “Soneto científico a fingir” (grifo nosso) não pode passar despercebida a “poética do fingimento” de Fernando Pessoa, a poética que tem “ciência” de que está “a fingir”. Portanto, ainda no título do poema, nos deparamos com a herança clássica: o soneto (de Petrarca, Dante e Camões) e a herança do maior poeta modernista português: Pessoa. E essa é mais uma característica marcante da poesia de Ana Luísa Amaral: a poeta explora a possibilidade de dialogar com a poesia clássica, com a poesia modernista e mesmo com a poesia contemporânea portuguesa.

Portanto, Ana Luísa sente-se à vontade para, ao contrário dos poetas modernistas, explorar os temas e as formas clássicas – abandonados pelos poetas modernos com seus versos e linhas “devastados” –; mas retornar a estas formas clássicas não deixa de ser, de certo modo, uma forma de subversão: Ana Luísa Amaral ao retornar ao uso das formas e dos temas clássicos confronta um paradigma instaurado pela poesia modernista, a regra de não ter regra: “Que me interessa que seja por soneto / em vez de verso ou linha devastada? / O soneto é antigo? Pois que seja: / também o mundo é e ainda existe” (AMARAL, 2010, p. 215). Mas Ana Luísa Amaral nos apresentará uma espécie de alternância no uso das formas clássicas e modernas: observemos que, apesar de a princípio estar nos apresentando uma forma clássica, há uma continuidade, na não utilização de rimas, com o modernismo: “Só não vejo vantagens pela rima” (AMARAL, 2010, p. 215). Ou melhor, na não utilização das rimas como forma fixa, pois também este não seria um critério rígido: “Dir-me-ão que é limite: deixa ser. / Se me dobro demais por ser mulher / [esta rimou, mas foi só por acaso]” (AMARAL, 2010, p. 215). E é exatamente neste ponto de seu “Soneto científico a fingir”, que a poeta trará a referência ao fato de ser uma poeta, uma mulher que escreve dialogando com as poéticas clássica e moderna.

Na tradição da poesia modernista portuguesa, pessoana portanto, Ana Luísa Amaral “sabe” que deve apropriar-se da poética do fingidor, do poeta que “finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”, ou seja, deve “falar-se” e “mostrar-se” na “mentira que é o verso”: “Se me dobro demais, dizia eu, / não consigo falar-me como devo, / ou seja, na mentira que é o verso, / ou seja, na mentira do que mostro” (AMARAL, 2010, p. 215). Assim, é possível perceber que Ana Luísa Amaral transita entre as tradições antigas e as (já tradições) modernas, estabelecendo, assim, uma nova poética, que não é rígida nem na forma de seguir a tradição, nem na forma de romper com ela. Melhor dizendo: a poeta dialogará com as tradições, subvertendo as regras na sua maneira de não as seguir estritamente. Escreve um soneto, mas é um soneto “coxo” e com linguagem coloquial.

Não se trata de um soneto de catorze versos, com dois quartetos e dois tercetos, mas de um poema de vinte versos, com cinco quartetos. Do mesmo modo, não se utiliza de linguagem elevada, mais apropriada a um soneto tradicional, e sim de uma linguagem irónica, à maneira de Bocage ou Gregório de Matos. Vejamos a última estrofe do poema: “E se é soneto coxo, não faz mal. / E se não tem tercetos, paciência: / dar o mote ao amor, glosar o tema, / e depois desviar. Isso é ciência!”

Ana Luísa Amaral estabelece, dessa forma, que é necessário dialogar com a tradição: escrever sonetos, explorar ainda a temática amorosa, “dar mote ao amor” e depois ter a sabedoria (“ciência”) de desviar do tema, ou seja, como numa espécie de imitatio, a autora demonstra que conhece a técnica, tem ciência, e a partir da tradição se desvia da mesma tradição, criando sua própria arte, ainda que para isso seja preciso escrever versos de “pé quebrado” e que a emenda seja pior do que o soneto.

Voltemos outra vez ao verso central do primeiro poema de Ana Cristina Cesar apresentado aqui: sua poética é “quebrada pelo meio”, talvez seja imperfeita como o “poema de pé quebrado”, ou o “soneto coxo” de Ana Luísa Amaral –, ou seja, há nessa imperfeição uma ruptura com a poética que a precede, ruptura ocasionada pelo fato de, por ser mulher, ao deparar-se com a sua própria sexualidade e feminilidade, não é possível manter-se estritamente na tradição.

 

Rhea Sílvia Willmer, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina Cesar: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014

 


***

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CARREIRO, José. “Soneto científico a fingir (Ana Luísa Amaral, 1956-2022)”. Portugal, Folha de Poesia, 10-08-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/08/soneto-cientifico-fingir-ana-luisa.html


domingo, 2 de junho de 2019

Ana Luísa Amaral

Revelada nos anos 90, tal como os já citados Manuel Gusmão e Fernando Pinto do Amaral, Ana Luísa Amaral (Minha Senhora de Quê, 1990; Coisas de Partir, 1993; Epopeias, 1994; E Muitos os Caminhos, 1995; Às Vezes o Paraíso, 1998; Imagens, 2000; Imagias, 2002) continua – com modulações eventualmente paródicas, ou, mais frequentemente, sob o signo de uma mais ou menos velada ironia favorecida por outras tradições literárias que lhe são familiares, como a anglo-americana, em que, nos últimos tempos, também sobressaem as questões de género, como veiculadoras de um ponto de vista específico – aquela que é uma das linhas mais em evidência na poesia portuguesa à beira do termo do século, a que faz do diálogo com a memória literária e cultural uma das suas mais fortes razões de ser, derivando, no entanto, nas mais recentes recolhas, para uma esfera de recorte cada vez mais afirmadamente intimista, a exigir «uma nova língua», outras «linguagens». 

Fernando J. B. Martinho, Literatura portuguesa do século XX, Lisboa, Instituto Camões, 2004, p. 49.







NÚ: ESTUDO EM COMOÇÃO

Em que meditas tu
quando olhas para mim dessa maneira,
deitada no sofá
diagonal ao espaço onde me sento,
fingindo eu não te olhar?
Em que pensa o teu corpo
elástico, alongado,
pronto a vir ter comigo
se eu pedir?
As orelhas contidas em recanto,
as patas recuadas,
o que atravessa agora o branco dos teus olhos:
lua em quarto-crescente,
um prado claro?
E quando dormes, como noutras horas,
que sonhos te viajam:
a mãe, a caça, a mão macia, o salto
muito perfeito
e alto, muito esguio?
Onde: a noite sem frio
que nos abrigará
um dia
e que há-de ser
(só pode ser)
igual?


Ana Luísa Amaral











LUGARES COMUNS


Entrei em Londres 
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar 
de praia (isto é só para quem não sabe 
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era 
mesmo muito manhoso, 
não é que fosse mal intencionado, era manhoso 
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha 
suja. Muito rasca.
Claro que os meus preconceitos todos 
de mulher me vieram ao de cima, porque o café 
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate 
(se fosse em Portugal era sandes de queijo), 
mas pensei: Estou em Londres, estou 
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses 
até nem se metem como os nossos, 
e por aí fora...
E lá entrei no café manhoso, de árvore 
de plástico ao canto. 
Foi só depois de entrar que vi uma mulher 
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me 
mais forte, não sei porquê mas senti-me mais forte. 
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e 
depois eu
Lá pedi o café, que não era nada mau 
para café manhoso como aquele e o homem 
que me serviu disse: There you are, love. 
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou 
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois 
pensei: Já lhes está tão entranhado 
nas culturas e a intenção não era má e também 
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião 
quero lá saber
E paguei o café, que não era nada mau, 
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta 
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto 
e depois vi as horas e pensei que o táxi 
estava a chegar e eu tinha que sair. 
E quando me ia levantar, a mulher sorriu 
como quem diz: That’s it
e olhou assim à sua volta para o presunto 
e os ovos e os homens todos a comer 
e eu senti-me mais forte, não sei porquê, 
mas senti-me mais forte
e pensei que afinal não interessa Londres ou nós, 
que em toda a parte 
as mesmas coisas são


Ana Luísa Amaral


Ana Luísa Amaral
© Jorge Carmona / ed. LDS / Antena 2




Representações do contemporâneo | Tradição literária | Figurações do poeta | Arte poética na poesia de Ana Luísa Amaral

 

Uma poesia do quotidiano feminino. Diálogo com a tradição.

Ana Luísa Amaral tem recolhido em torno de si uma invejável unanimidade por parte da crítica mais atenta ao campo poético, ao ser considerada uma das mais interessantes revelações da poesia portuguesa dos anos 90. E como se isso não bastasse, a sua obra poética tem também sido olhada como congregadora das mais significativas tendências que esta novíssima poesia manifesta. Refiro-me

1 – à construção de epifanias do quotidiano, no caso de Ana Luísa Amaral, um quotidiano tradicionalmente periférico, o quotidiano feminino;

2 – à revisitação intertextual do cânone estético cultural ocidental;

3 – à contrafação paródica, mais ou menos lúdica do dito cânone, nomeadamente do cânone literário modernista, que a poeta em questão conhece bem;

4 – à vivência de um desconserto existencial que questiona uma axiologia forte, sem deixar de a reclamar, no caso vertente, no fio do horizonte;

5 – à interrogação metapoética e densamente autorreflexiva;

6 – à discursividade narrativa que não deixa de incorporar o fragmento, ligada quer à rememoriação, quer ao anedótico;

7– à reivindicação da poesia como experiência do excesso, quer do excesso excessivo do barroco, quer do excesso rasurado do limite, experiências que não impedem, em Ana Luísa Amaral, o recurso por vezes bem rebuscado à elipse.

 

Isabel Pires de Lima, «Concertos/desconsertos: arte poética e busca do sujeito na poesia de Ana Luísa Amaral», in Maria de Fátima Outeirinho & Rosa Maria Martelo (orgs.), Cadernos deLiteratura Comparada – Identidades no Feminino, n.º 2, Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa/Granito, 2001. [Também publicado na revista Veredas, nº 3 – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas – Faculdade de Letras – Universidade de Coimbra].

 

Figurações do poeta

Desde o princípio, a poesia de Ana Luísa Amaral se confronta com a questão central da modernidade, do fazer poético como descentramento do sujeito, o que acarreta formas de enunciação ambíguas entre a ficção do eu e a sua figuração e situações de oscilação ontológica1, confirmando esta oscilação o tal síndroma de «estar entre». […]

Há todo o dramatismo nessa vivência poética lírica moderna que tem consciência de que o poema se constrói de palavras apenas, frágeis, fugazes, limpas de emoção, embora poderosas «coisas de partir2», partir de quebrar e partir de navegar; palavras que enunciam a ficção da voz poética emocionada pelo amor, «lírica de emoção» de um tu, a qual ambiguamente dá origem a outra figuração de si mesma, tentando rasurar esse tu, «empurrar-te para cima do poema»3, como é dito. 

Isabel Pires de Lima, «Concertos/desconsertos: arte poética e busca do sujeito na poesia de Ana Luísa Amaral», in Maria de Fátima Outeirinho & Rosa Maria Martelo (orgs.), Cadernos deLiteratura Comparada – Identidades no Feminino, n.º 2, Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa/Granito, 2001, pp. 52-55. [Também publicado na revista Veredas, nº 3 – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas – Faculdade de Letras – Universidade de Coimbra].

 

Tradição literária

A tradição é um tempo-espaço aberto que pede ao poeta faro criativo para transformar o passado, nutrir-se dele, a fim de gerar o ato criador. […] O mapa de palavras, legado da tradição, é rota permanente que o eu lírico reconhece e com ele recomeça, também num duplo registo – sereia e cisne –, a delinear imagens de amor transmutadas da lírica ocidental.

Sensível, portanto, à sua atualidade, a poeta mostra o seu roteiro poético pessoal, inscrevendo no corpo da poesia a rota do Amor. Sensualmente, o eu lírico, em diálogo com o Outro, par amoroso, caligrafa linhas, esboçando a sua topografia […].

A poeta, por sua vez, confere a rota, despreza a rigidez da forma impressa em rimas e métricas, e inscreve no poema a mobilidade do diálogo ou réplica, traduzindo, em versos próprios, voz e ritmo de poetas e musas, conforme a tradição e à luz do seu tempo.

Misturam-se vozes de poeta e musa, dificultando identificar o eu e o outro da fala. […] Ana Luísa Amaral cede lugar ao desejo e […] exprime amorosamente a sua criação.

[…] A poeta sabe, como os poetas e musas da tradição, que para escrever o amor é preciso «engenho» e «brando pesar»; e mais, sabe que a linguagem é, como diz Barthes: «ao mesmo tempo demais e demasiadamente pouca, excessiva e pobre». 

Maria Aparecida Junqueira, «Imagens: tempos espacializados naPoesia de Ana Luísa Amaral», 
in
Ângulon.º 125/126, Cadernos do Centro Cultural Teresa d’Ávila, Publicações FATEA, 2011.

 

Representações do contemporâneo

Por vezes, é certo, evoca-se nestes poemas essa esfera a que chamamos doméstica e que, não tendo evidentemente de ser exclusivamente feminina, tem sido de facto – e por que motivo senão pela desvalorização a que vota a maioria das culturas ditas civilizadas? – largamente reservada às criaturas do sexo feminino. Não me refiro ao doméstico enquanto fonte de inspiração […], mas ao doméstico e suas tarefas como experiência e prática de vida humana, tão rica de sentido e de valor, como insuficiente e sufocante. É este último mundo que nos surge em alguns poemas de Ana Luísa Amaral. 

Maria Irene Ramalho, «Duplo posfácio», in Ana Luísa Amaral,  
Minha Senhora de quê, Lisboa, Quetzal Editores, 1999, pp. 96-97.

 

 

Linguagem, estilo e estrutura

1. Características da poesia de Ana Luísa Amaral

O amor, o tempo, a memória, a infância, a poesia, a dor. O modo vocativo, os versos de orações elíticas, as repetições com diferença, a sintaxe equívoca, as assonâncias, as aliterações. O uso do raciocínio lógico. O humor às vezes envergonhado. E as imagens e os conceitos inesperadamente associados, ao modo dos metafísicos ingleses: admite-se, num poema de homenagem elegíaca4, uma alusão aos fracos dotes de cozinheira desaparecida? Ou à sua «desarrumação», que, porém, paradoxalmente, é também a fonte da sua capacidade – como que poética – de nomear, e assim radicalmente de organizar? 

Maria Irene Ramalho, «Coisas Exatas: A Propósito de Imagias, de Ana Luísa Amaral», in Scripta, v. 6, n.º12, Belo Horizonte, Revista do Programa de Pós-graduação em Letras e do Centro de Estudos Luso-afro-brasileiros da PUC Minas, 2003, p. 260.

 

2. Sintaxe e pontuação

O «reino» de Ana Luísa é […] o da sintaxe, ou melhor, das «sintaxes trocadas» […].

O espacejamento do texto reproduz, com grande felicidade, essa justaposição imagética que nunca funciona sem um pequeno (ou grande) salto associativo, fazendo desta poesia um discurso que progride por síncope (o que se articula com um outro rumo da sua poesia, mais próximo de uma discursividade «lisa», de contornos mais sugestivamente infantis). É aqui – nesta arte da elipse – que provavelmente a lição de Dickinson5 mais se nota, fazendo-o sobretudo […] em torno de uma ressemantização6 da pontuação […]. Sucede isso nos casos em que o poema acaba sem querer concluir, denunciando o travessão final essa indeterminação semântica […].

Tal ressemantização opera ainda sobre os dois pontos, sincopando decididamente o discurso e criando um efeito de parataxe7 que […] responde fielmente ao imperativo de «transler», o mesmo é dizer, de suspender os nexos da gramática do mundo herdada. 

Osvaldo Silvestre, «Recordações da Casa Amarela, A poesia de AnaLuísa Amaral», in Relâmpago, n.º 3, 1998, p. 49.

 

Uma poesia do amor

Dez anos depois, Minha senhora de quê mantém a frescura e a novidade com que em 1990 surpreendeu os leitores de poesia portuguesa. Uma novidade e uma frescura tanto mais de salientar quanto é certo que Ana Luísa Amaral escreve os seus poemas em diálogo constante com os poetas, com a poesia e com a tradição – ou, melhor dizendo, com as tradições. […] No quarto [livro de poesia de Ana Luísa Amaral], intitulado E muitos os caminhos (1995), de novo a poesia, a forma poética, a própria cultura são viradas do avesso. Em seis belos poemas de amor reunidos sob o título geral de «Histórias de uma noite de verão», a poeta não só escreve um «soneto», decerto porque o soneto é uma forma privilegiada de poesia de amor, mas escreve-o irreverentemente «a fingir», assim obliquamente redefinindo uma cultura que coloca as mulheres em posição subalterna. Nos restantes poemas desta sequência, é o próprio amor que é virado do avesso, como se todo o sentimento irrompesse de repente a exigir uma nova linguagem de paixão, como se o Hades, o fogo do amor e a criatividade, bem como os próprios poetas, tivessem de ser reimaginados, e a Beatriz fosse dada uma nova voz para dizer, não a tranquila doçura do amor sancionado e divino, mas o poder terrível do transgressivo, humano amor.

 

Maria Irene Ramalho de Sousa Santos, «Prefácio» a Ana Luísa A maral, Minha senhora de quêLisboa, Quetzal Editores, 1999, pp. 7, 11 e 12 (texto adaptado).

 

Arte poética

À poesia se pede que dê à linguagem consciência de si própria, para que nós, que não somos poetas, reconheçamos nas palavras os traços do mundo suficientes para, resguardando-nos do vazio, o tornar habitável. O cerne do universo poético de Ana Luísa Amaral encontra-se, provavelmente, no ponto onde esse reconhecimento se fabrica, e por isso os seus versos parecem apenas necessários, sem desvios. Dir-se-ia que lhe é muito fácil identificar o ritmo que une os movimentos dispersos que nos transportam de dia para dia, tecidos por igual de labor doméstico e reflexão, de afetos e memórias, de leitura e de «trabalho sério», matéria imponderável que no verso ganha corpo e se torna imagem com sentido.

Melhor que qualquer outra, assenta-lhe a poética que no livro inaugural, Minha Senhora de quê? (1990), os versos do poema «Discreta Arte» delineiam, assimilando a criação aos gestos familiares e simples de quem arranja o espaço para o convívio quotidiano:

«Discretamente. Cultivar a palavra. / Arte de dispor flores por longa mesa, / prazer de dispor quadros por paredes / em critério de escolha pessoal.»

E, no entanto, esta é uma poética de superior exigência, que ambiciona realizar «O excesso mais perfeito», como diz um dos títulos de Às vezes o paraíso (1998) − «um poema de respiração tensa» capaz de reunir em si «muito mais tudo que as gregas divindades / de equilíbrio», intensidade pura −, e que de uma tal desmesura discretamente se constrói.

 

Fátima Freitas Morna, «Ana Luísa Amaral», in Isabel Pires de Lima (coord.), Vozes e Olhares no Feminino, Porto, Edições Afrontamento & Porto, 2001, p. 94.  

***

 

Uma interioridade de espaços, gestos e laços quotidianos e (mais) femininos, embora estreitamente conjugados com a revisitação intertextual e a desconstrução irónica dos grandes temas da Modernidade estética, conduz, também neste caso, ao fragmento narrativo, ao fait-divers, à exploração da memória e mesmo ao humor. Contudo, a centralização desta temática, numa poesia que, ao mesmo tempo, dialoga agilmente com o cânone poético que a excluiu ou pelo menos secundarizou como temática «menor», obriga a uma permanente deriva entre centro e periferia, a ambos desajustando de um modo inovador. Chegamos, assim, embora por outra via, à mesma lógica de intensidades anteriormente observada: fazendo derivar o centro da periferia, ou sobrepondo-os de modo inextricável, recusando qualquer hierarquização de temas ou formas, cabe à poesia fundar «[o] excesso mais perfeito» (Amaral, Às Vezes o Paraíso, p. 61), descobrir um «infinito tudo» (Amaral, E Muitos os Caminhos, p. 7) que, antes de mais, é essa luz discursiva à qual Luiza Neto Jorge chamou «resplendor». Sob este ponto de vista, é significativo que esta poesia recorra, por exemplo, à torsão sintática e à elipse como marcas de excesso de presença ou ausência discursivas, fazendo da produção de sentido uma experiência de limites. 

Rosa Maria Martelo, «Anos 90 – poesia», in Óscar Lopes e Maria de Fátima Marinho (dir.), História da literatura portuguesa – as correntes contemporâneas – vol. 7, Lisboa, Publicações Alfa, 2002, p. 500.

 

NOTAS:

1 Ontológica: que se refere ao ser em si mesmo.

2 «Coisas de partir»: título de poema e livro de Ana Luísa Amaral.

3 «Empurrar-te para cima do poema»: verso do poema «coisas de partir».

4 Elegíaca: melancólica, triste.

5 Dickinson: Emilly Dickinson foi uma poetisa americana; sobre ela escreveu Ana Luísa Amaral a sua tese de doutoramento.

6 Ressemantização: novo sentido dado.

7 Parataxe: processo de articulação de frases através de coordenação sintática, frases parentéticas que introduzem comentários ou atos expressivos do locutor ou alguns tipos de interrogativas.

 

https://eltrapezio.eu/es/espana/ana-luisa-amaral-ganha-premio-rainha-sofia-de-poesia-ibero-americana_20994.html


 

ENTREVISTA
“Uma coisa é escrever poesia, outra coisa é fazer livros”


Autora premiada e traduzida em várias línguas, poeta, professora universitária, tradutora, nasceu em Lisboa em 1956, mas vive em Leça da Palmeira desde os 9 anos. Foi lá que nos recebeu. Numa sala onde não faltam livros e poemas inéditos, e onde fomos visitados amiúde pelas duas gatas da poeta e também pela cadela Mily, em homenagem à poeta Emily Dickinson sobre quem Ana Luísa Amaral fez doutoramento. Deixou de fumar e esteve mais de meio ano sem escrever. Acaba de ver o seu livro de poesia "What´s in a name" sair nos Estados Unidos da América pela editora New Directions.



NAVEGAÇÕES DOENTES

Tenho os sintomas todos:
navegam-me fluidos
e o devaneio em barcos de desejo

Os sons de trovoada
mesmo tapando ouvidos:
esclerótica paixão que não domino

Tenho os sintomas todos
e assim me reconheço
acamada, incurável: na parede do fundo
navegantes os barcos



Agradeço-lhe antes de qualquer coisa receber-nos em sua casa e apresentar-nos as gatas e esta cadela, que tem um nome para homenagear outra poeta. 
Sim, Mily Dickinson. É uma homenagem, ao fim e ao cabo, à grande poeta Emily Dickinson. O problema é que ela de Milly Dickinson, como já reparou, tem muito pouco. A Emily Dickinson, daquilo que sabemos da vida dela, era uma pessoa bastante recatada, recolhida. Foi uma mulher que saiu de casa, para longe de casa, duas vezes em toda a vida. Aliás, a partir dos 30 anos, dos 33 mais ou menos, começa a vestir-se de branco e não sai do quarto até aos 50 e tal. Acho que ela morre com 53, 54, agora não me lembro muito bem, sou muito má com contas, portanto, praticamente não sei. É muito engraçado, ela vai de resto a uma consulta, porque tem problemas de visão e vai a uma consulta em Boston, e é consultada através de um tabique, portanto o médico não a vê. Ela diz-lhe o que é que sente, quais são os problemas, e o médico do outro lado faz-lhe o diagnóstico.

E essas reservas todas deviam-se a quê?
Não sabemos. Bom, acho que por um lado há todo um contexto social, cultural, histórico, digamos assim, que de alguma forma propicia este tipo de comportamento das mulheres, não é? Se pensar nas Bronte, nas irmãs Bronte, também não saíam de casa. Se pensar em Elisabeth Barrett Browning, ela estava enfiada em casa até conhecer por carta Robert Browning, que finalmente a raptou! Ele raptou-a literalmente de casa dos pais, com o consentimento dela, bem entendido. Fugiram os dois, casaram e pronto, a partir daí, Elisabeth Barrett Browning fez uma vida super pública, digamos. Mas os exemplos de mulheres do século XIX, de meados do século XIX, que do ponto de vista privado, digamos, têm um comportamento muito contido, muito reservado, são vários. A grande questão com Emily Dickinson é que ela adopta esse comportamento e leva-o até ao extremo. Como faz aliás com a sua poesia. Por exemplo, ela pega na prosódia do hino puritano, do hino religioso, que são 4 batimentos, 3 batimentos, 4,3, 4, 3, e depois, de vez em quando, distorce-o. Ou seja, ela sabe muito bem como fazer correctamente, se quiser. Aliás, há um poema muito engraçado em que ela diz “I cannot dance upon my toes// No man instructed me”, portanto “Eu não posso andar em pontas// Nenhum homem me ensinou”, mas é mentira porque ela sabe muito bem andar em pontas. Ou seja, ela sabe muito bem como regular o verso só que de vez em quando desregula-o.

Propositadamente.
Propositadamente, com certeza. No caso do hino puritano é adaptar a forma religiosa da altura, só que depois aquilo é tudo desconstruído, desmontado. Por isso acho que o processo usado em Emily Dickinson não é tanto a transgressão, mas é mais a subversão. Porque são processos diferentes. Um polícia não me diz assim: “a senhora cometeu uma subversão”, diz-me: “a senhora cometeu uma transgressão”. Porque a transgressão é um rompimento das normas às claras, de uma forma aberta, ao passo que a subversão é construir sob, debaixo, não é?, uma versão subterrânea. Então, e isto é a minha opinião, no caso da subversão em vez da explosão temos a implosão, implode por dentro.

E a Ana Luísa acha isso mais interessante?
Muito mais interessante, é claro.

Porque não é declarado.
Há uma carta muito interessante que cito muitas vezes em que ela diz: “o meu ofício é a circunferência”. Acho que isto define muito bem a poética de Emily Dickinson, porque a circunferência não tem centro, contrariamente ao círculo, a circunferência é a linha só e é uma linha que simultaneamente fecha e abre. É a fronteira. E a poesia de Dickinson é constantemente feita numa fronteira, num estar entre, in between.

Fala dela com conhecimento, mas também com uma enorme paixão.
Sim, tenho as minhas grandes paixões: Emily Dickinson, William Blake, William Shakespeare. Peço desculpa por ir tão para trás, porque realmente estes são os grandes para mim. Shakespeare tem tudo. É um poeta antes de mais nada, porque muitas das suas peças são escritas também em verso iâmbico. Não só os sonetos, estou a falar também das peças, e em Shakespeare encontra tudo. A natureza humana está toda lá. Desde o ciúme, o amor, a raiva, a morte, a dissimulação, o poder, o desejo de poder, como o poder corrompe. Por exemplo, estudos sobre a corrupção que o poder provoca, etc. Depois o Blake. Ele falou do seu tempo, finais do século XVIII e início do XIX, mas isto também retrata o nosso tempo. Não conheço nenhum outro poeta que tenha falado do horror, da tragédia que é a desigualdade tremenda entre as pessoas como ele: “Some are born to sweet delight// Some are born do endless night”, “Alguns nascem para doces delícias// Alguns nascem para a noite sem fim.” “Noite sem fim” é uma coisa extraordinária. E é verdade, algumas pessoas nascem para a noite sem fim. Estou a pensar nos refugiados, por exemplo, alguns do continente africano, que nós sabemos que vão nascer para a noite sem fim, e outras que nascem para as doces delícias. E depois Dickinson, com certeza. E depois, claro, os mais recentes: Camões, Sá de Miranda, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, adoro Mário de Sá-Carneiro, acho-o um grande, um enorme poeta e não está ainda devidamente... agora as pessoas estão a começar a interessar-se pela poesia dele, mas acho que a grandeza do Pessoa o ofuscou.

Saiu há pouco tempo um livro seu nos Estados Unidos, editado pela New Directions. Este livro, “What`s in a name”, já teve algumas referências. Está contente?
Estou, estou. Tem tido belas recensões, belas críticas.

The New York Times.
Também, sim sim. Poetry Review of Books, sei lá, a Paris Review. Olhe, pronto. Sim, tem tido boas referências.

Fica constrangida quando refiro isto. 
Sim, um bocadinho.

Porquê?
Não sei, não sei.

Estava a falar-me há pouco dos seus deuses. Tivemos ocasião de conversar com um poeta que nos dizia que o trabalho dele é escrever contra, precisamente contra os deuses dele. No sentido de não fazer igual a eles porque quando se gosta muito de um poeta corre-se o risco de o copiar. O seu processo de escrita de poesia também tem alguma coisa a ver com isso ou não?
Não, rigorosamente nada. Ou seja, quando escrevo não penso como é que tenho que escrever. Escrevo e acabou-se. Escrevo;porque preciso. Sempre escrevi desde que me conheço e escrevo porque necessito de escrever. Posso dar-lhe um exemplo: os momentos de maior tristeza, para além obviamente de perdas imensas que tive na vida, como o meu pai, o Paulo Eduardo de Carvalho, a minha tia, portanto, os momentos de maior tristeza que tive foram estes últimos meses em que deixei de fumar. Estive seguramente uns 7 meses sem conseguir escrever. Aliás, escrevia umas porcarias, pronto; não prestava para nada. Finalmente há coisa de um mês e meio comecei a escrever. Aquilo foi de repente, percebe? Ou seja, de facto isto é verdade: as sinapses têm de se refazer. Toda a minha vida girava em torno do cigarro: fumava porque estava triste, fumava porque estava contente, fumava porque estava a escrever, fumava porque não estava a escrever, fumava a ver televisão, fumava a conversar. Enfim, fumava em qualquer situação.

A inspiração ligada ao cigarro.
Sim, muito ligada ao cigarro. E para mim isso era absolutamente fundamental. Como lhe digo, quando deixei de fumar estive 7 meses sem escrever e foram meses de uma profunda tristeza, uma profunda tristeza.

Mas há tristezas que podem ser motores para escrever. Não foi o caso desta?
Não, mas acabei por conseguir escrever, agora escrevo. Acho até que estou a escrever de forma um bocadinho diferente, é uma coisa estranha.

Dizia que escreve porque precisa.
Porque preciso de escrever. Não sei viver sem escrever. Por isso dei este exemplo do cigarro, para ilustrar, porque para mim é absolutamente fundamental escrever. Tal como preciso de beber água ou como preciso de ler.

De resto tem aqui uma pilha de poemas inéditos que não publica. Ou seja, são a prova de que, de facto, escreve muito. 
Depois ficam ali, pronto.

E ficam ali porquê?
Porque acho que não prestam. (risos) Não têm grande qualidade ou, também pode acontecer, por vezes não se integram no livro. Porque uma coisa é escrever poesia, outra coisa é fazer livros. Fazer um livro de poemas, para mim, pressupõe oferecer uma certa ordem aos poemas, digamos assim. É-me mais fácil escrever poemas do que fazer livros, devo dizer. Um livro para mim tem de ter uma coerência interna, e aí sim eu penso o que vou fazer com os poemas. Quando escrevo o poema não penso o que vou fazer. Não penso: agora tenho de tentar escrever contra ou a favor ou seja lá o que for deste ou daquele.

E escreve de uma vez? Como é que isso acontece?
Depende, depende. Às vezes escrevo um bocadinho e depois ... já me aconteceu, acontece-me várias vezes até, escrever três ou quatro versos, três ou quatro estrofes, e depois ter que sair, interromper e não poder continuar. E depois repego, retomo o poema.

Mas antes de se sentar e escrever, o poema já anda consigo, digamos assim?
Muitas vezes sim.

Portanto, não é uma coisa repentina? Ou pode ser?
Pode ser. Também pode ser uma coisa repentina.

Pode-se escrever sem ler?
Não. Concordo com a ideia de que toda a literatura acaba por ser uma reescrita do que se escreveu antes. Agora, ela tem que ter uma voz nova sempre. E o que é maravilhoso é isso. É possível fazer vozes novas ainda, mesmo com tantos séculos de literatura. Porque as combinações que se fazem com as palavras são infinitas, também. Repare, nós temos esta coisa que é extraordinária: o nosso alfabeto é o mesmo, e as palavras a mesma coisa. As palavras que uso para conversar consigo são as mesmas que uso para escrever um poema. Agora, quando escrevo um poema obviamente é a forma como combino as palavras e isso não sei explicar. É claro que eu queria ter uma voz diferente, mas quando estou no processo de escrita do poema não tento exercitar nenhuma voz diferente. Escrevo somente.

E essas vozes novas de que fala continuam a existir apesar de os temas na poesia e na literatura em geral serem recorrentes. Os temas serão sempre os mesmos?
We are pretty much the same (risos) Repare, Lear, o Rei Lear, tem uma coisa maravilhosa: naquela altura em que as filhas lhe tiram tudo, em que ele está no meio da charneca nu, louco, pergunta: "is man no more than this?" Será que o homem não é mais do que isto? E depois diz: "dispam-nos de tudo, das roupas, da cultura, de tudo o resto, e nós não passamos de seres acossados." E é verdade. Acossados, e portanto, passíveis de sermos agressivos, de matarmos para ter um bocado de pão. Todavia no meio disto aparecem sempre algumas excepções que redimem o que pode ser essa...

Condição...
Essa condição humana, justamente. Portanto, retire tudo, a capa da cultura, essas capas todas e é muito complicado. Nós somos, infelizmente, aquilo que éramos aqui há uns séculos atrás. Enquanto assim formos, o amor, o ódio, a tristeza, o ciúme, tudo isso continuará a ser-nos comum. Por isso é que continuamos a comover-nos. Às vezes vou no comboio e uma criança pequenina começa a rir-se à gargalhada. Repare nas expressões das pessoas em volta. Rarísssimamente ficam indiferentes. As pessoas sorriem, é muito engraçado. Há um ou outro que não sorriem, mas 90% sorriem. Ou, por exemplo, uma criança começa a gritar desalmadamente. As pessoas ficam incomodadíssimas. Ou seja, de facto nós somos muito parecidos uns com os outros.

Isso leva-nos para uma outra condição sua que é a questão do feminismo. Parece-lhe que continua a fazer sentido, hoje?
Claro. Então com estes números que temos tido da violência doméstica, já viu? Quantas mulheres morreram desde o início do ano? Morreram! Mortas por violência doméstica. Acho que está tudo ligado. Enquanto o sistema não mudar, este sistema patriarcal... Não sou contra os homens, de forma alguma. O feminismo não é contra os homens, e é importante que isto seja dito desta maneira. Para mim o feminismo é uma questão de direitos humanos, só. Resume-se a isto: direitos humanos.

E, portanto, há um longo caminho a fazer.
Há um longo caminho a fazer. Nós somos todos feitos da mesma matéria com que, de resto, são feitas também as estrelas. É a mesma coisa. Portanto, a pele é igual. Todos nós temos pele, todos nós temos corpo, todos nós precisamos, como mamíferos, de sermos tocados. Portanto, se se afastavam os homens, por exemplo, da educação das crianças e era uma tarefa só das mulheres, o homem coitado, o desgraçado, trabalhava fora e ganhava dinheiro para sustentar a família, o que era horrível também. Se ele perdia o emprego era uma responsabilidade tremenda. Portanto, isso era uma perda para os homens. O que acontece é que o nosso sistema, que é patriarcal, de alguma forma tentou mostrar, ou provar, até por teorias, a dominação masculina. Por isso é que falamos no falocêntrico, centrado no falo, tentando provar que os homens dominam e as mulheres se submetem. A partir do momento em que os vários feminismos põem isto em causa, o que acontece é que há reacções, e os homens reagem, pois claro. Os homens que foram educados na ideia de que dominam, sentem-se ameaçados. É normal que se sintam ameaçados. Agora, isto não é ameaça nenhuma, pelo contrário. Isto só representa uma melhor forma de vivermos todos juntos.

Acha que ainda sentem essa ameaça?
Então não sentem? Acho que esta questão da violência doméstica tem a ver com isso.

Temos de terminar, mas não queria deixar de lhe dizer que gosto muito dessa ideia de sermos feitos da mesma matéria que as estrelas.
Então não somos?! Há um belíssimo documentário, aliás, não é um documentário, é um poema em filme, que é do Patricio Guzmán, aquele cineasta chileno, que se chama "Nostalgia de la luz" que é lindíssimo. A determinado momento diz-se mais ou menos isto que eu estou a dizer, mas de uma forma mais científica: uma pessoa ligada à química explica que o cálcio que existe nos nossos ossos é o cálcio que existe nas estrelas, é o cálcio que existe no universo. O mesmo cálcio - é extraordinário. Portanto, esta cisão que temos vindo a provocar entre nós e a natureza está a virar-se contra nós. Quero dizer, este tempo desgraçado, as mudanças climáticas, tudo isto está a virar-se contra nós. Quando tudo devia estar, de alguma forma, em harmonia.

É preciso voltar a ouvir a natureza, não é?
É preciso voltar ouvir as coisas, a música das estrelas, pois claro.

- A poesia serve para quê?
A poesia de facto não serve para nada, não tem uma aplicação prática. Com a poesia não se faz uma mesa, não se constrói uma casa. Mas ela é absolutamente fundamental, porque, como toda a arte, assiste-lhe não o pragmatismo, mas o simbólico, e nós, humanos, precisamos do simbólico, que passa sempre pela nossa relação com os outros. Precisamos dele como precisamos de comer ou de dormir. Porque é sua a dimensão estética, mesmo quando fala do horror ou da crueldade. A poesia, tal como eu a concebo, faz-nos, acredito, melhores pessoas, porque nos move (podendo fazer-nos agir) – e nos comove.

- Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?
Dois: “Eu cantarei de amor tão docemente”, de Camões, e “Farei um verso de puro nada”, de Guilherme d’Aquitânia.

- Se não fosse poeta portuguesa (ou de outro país) seria de que nacionalidade?
Talvez italiana, porque a língua italiana é, para mim, a língua mais bela que conheço – depois da minha.

- Um bom poema é?
Desculpe citar algo que não é meu, mas de Emily Dickinson: “Se leio um livro, e ele torna o meu corpo tão frio que fogo nenhum o pode aquecer, sei que isso é poesia”. Substitua-se “livro” por “poema” e isso é para mim um bom poema: o que se sente no corpo e fala à cabeça e ao coração.

- O que a comove?
A bondade. Alguma poesia. Ou pensar que somos feitos da mesma matéria de que são feitas as estrelas.

- Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?
“Carta a meus filhos, sobre os fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena.

- Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?
Deixa uma filha maravilhosa, amigos e poemas. Leva saudades.

O Poema Ensina a Cair começou por ser, em 2015, uma rubrica semanal do Expresso Diário sobre poesia portuguesa. Pretendia divulgar autores contemporâneos, mas não só. A ideia original de Raquel Marinho volta agora ao Expresso, desta vez com uma comunidade grande de seguidores nas redes sociais. Pode acompanhá-la no Instagram e no Facebook.

Raquel Marinho, Expresso, 2019-05-29

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ENTREVISTA
Ana Luísa Amaral não sabe ser cautelosa

 


“Ana Luísa Amaral” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 02-06-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/06/ana-luisa-amaral.html