Publicou o primeiro livro com 33 anos. Minha Senhora de Quê. “Não estou nada arrependida de não ter publicado aos 18,
19 anos, coisa muito comum”. Tem 55 anos, acaba de publicar dois livros. Próspero Morreu, uma peça de teatro em verso e o livro de poesia Vozes. Ana Luísa Amaral é uma poeta que pode dizer ao mesmo
tempo: “Não quero mudar de país. Portugal precisa das pessoas aqui, para
tentarmos resistir. (Não incomoda o cigarro?)”; e no instante a seguir falar de
cebolas e de Emily Dickinson.
Marcou encontro no Círculo Universitário do Porto. Palácio
belíssimo na rua do Campo Alegre, a dois passos da casa que foi a da infância
de Sophia. O Círculo tem um jardim e um espaço que deve ter sido uma estufa e
onde agora se almoça. Cá dentro, além das madeiras e dos móveis de bom gosto,
pode-se fumar. Fuma muito. Como denota a voz espessa que tem. Pelo meio
acabou-se a pilha, e ela ocupou esse interregno para saber se a filha, em
viagem, estava bem. A filha é constante no discurso e também aparece na
poesia.
Ana Luísa Amaral é professora associada no departamento de
estudos anglo-americanos da Faculdade de Letras do Porto. Tem um doutoramento
em Emily Dickinson. As suas áreas de interesse são a literatura inglesa e
norte-americana, a literatura comparada e os estudos feministas. Traduziu
diversos poetas. É autora de vários livros de poesia e infantis.
Na autobiografia curtíssima do livro Vozes fala de beijos e cebolas. Assim de repente, parece uma
combinação esdrúxula.
Pois.
Posso pensar? Não é uma pergunta simples. Sempre achei que o texto tem a ver
com a vida. O que existe é uma espécie de deflexão. Como com um lápis dentro de
água: não é reflectido, é deflectido. O que fica da vida, do mundo, é um rasto.
Mas esse traço está lá mais ou menos fingido. A mão que escreve tem um braço,
esse braço tem um corpo, esse corpo pertence a alguém. Esse alguém vive, ama,
odeia, tem sentimentos, e é do seu tempo. Desse poema, não posso escamotear a
minha própria vida. Estou a arranjar uma maneira inteligente de evitar entrar
pela minha vida, falando de beijos e cebolas…
Já no primeiro livro fala de cebolas.
“…
armários e cebolas perturbantes” – é a imagem. [Diz o poema de cor] Sei quase
todos os meus poemas de cor. Decoro os meus e os dos outros, não sei bem como.
Em contrapartida não sei números.
Porque é que tem dificuldade em falar dos beijos
e das cebolas?
Porque
os beijos são reais, e encaminham-me para uma dimensão pessoal, de relação
amorosa, de que não queria falar. Que não interessa muito, ou não interessa
nada.
As cebolas: são as várias camadas?
Sim. As
várias camadas de que o mundo é feito, as várias camadas de que uma pessoa se
compõe, os diferentes sentidos de que um poema se pode revestir.
Esse
poema elabora sobre esta ideia: quanto menos vida mais poesia. “Ah, quando eu
escrevia de beijos que não tinha, e cebolas em quase perfeição!”.
Mais adiante, diz: “… se não fossem os beijos
que não tinha, não havia poema”. O que quer dizer que sem vida, não há poema.
Pode
querer dizer, também, que com muita vida amorosa não há poema.
Em felicidade amorosa não se produz, é isso?
É. Creio
que é o Maiakovski que diz que a literatura e a felicidade não se coadunam.
Quando se está num estado de paixão assolapada, devastadora, a poesia surge
como um excesso, uma excrescência. Não é talvez tão necessária. Acho que a
poesia preenche falhas. Não significa que escreva em profunda tristeza,
angústia, desânimo.
Alguns poemas são profundamente tristes.
Alguns.
Outros, profundamente irónicos. Outros, eufóricos. Essa relação entre poema e
vida realmente faz-se, mas em certa medida a poesia pode funcionar como um
substituto para a vida. Embora isto pareça uma contradição em termos – se a
pessoa estiver morta, não escreve. Mas pode funcionar como um catalisador.
Indo às cebolas: foi educada para ser uma menina
bem comportada? As cebolas remetem-nos para a cozinha, para o universo
feminino. A pessoa com quem estou a falar é uma feminista.
Sou
filha única e fui educada para cumprir determinadas expectativas. Uma das
coisas que mais chocaram o meu pai foi a caderneta do colégio de freiras, que
dizia: “A menina é inteligente, mas muito indisciplinada”. O meu pai queria que
eu fosse engenheira química. Letras, jamais! A minha vida – posso começar por
aí? Nasci em Lisboa. Vivi até aos nove anos em Sintra. Gosto desse pormenor da
minha vida: Sintra não é tão central quanto Lisboa. Vivia num prédio onde, de
manhã, na sala, se via o nevoeiro a levantar. Pequenos pormenores: o meu pai,
de braços abertos, na varanda, eu a dizer: “Voa, voa”, e o meu pai: “Não,
parece que hoje não”. Eu acreditava que ele podia voar. Fui sempre crédula.
Aos nove
anos mudámo-nos, não para o Porto, mas para Leça da Palmeira.
Mais uma vez, para uma localidade que não é o
grande centro.
Mudámo-nos
com os meus avós e padrinhos, com quase 80 anos.
Em 1965,
fazer Porto-Lisboa demorava oito horas. O meu pai conhecia pessoas que faziam a
viagem em dois dias, que pernoitavam em Coimbra. Mudei a meio da quarta classe.
Era a lisboeta. Não me senti menorizada, senti-me não amada. Os jogos eram
diferentes.
Mas
tinha com o meu pai todas as conversas. Ainda hoje me faz uma falta imensa.
Falávamos sobre o universo, sobre música, sobre filosofia. O meu pai era o meu
grande companheiro.
O que é que ele fazia?
Era gerente
de uma firma. O que fazia não tinha nada a ver com a pessoa que ele era. Não
gosto de usar a palavra falhado, porque a acho triste, e porque ele não o era;
mas o meu pai tinha um dom, o do piano. A minha avó tocava piano, o meu pai
tocava piano. Não sei tocar uma nota. O meu pai era muito mais permissivo do
que a minha mãe. Embora tenha ficado zangado com o “indisciplinado”. A minha
mãe é que disciplinava.
Fui
seguindo o meu pai. Que era um homem conservador. Um conservador que me ensinou
valores de solidariedade que eu, que sou de esquerda, muitas vezes não encontro
em pessoas que se dizem de esquerda (e que têm gestos que contrariam a
ideologia que dizem professar). Era uma pessoa contraditória. Gosto da
contradição. Nunca vi no meu pai jactância pelo facto de ser conservador. Nunca
disse: “Eu sou melhor”.
Jactância era uma palavra que o seu pai usaria?
Era. É
uma palavra estranha, mas que dá jeito. Nunca pensei nisso, nas palavras que
ele usaria, engraçado…
Estou no fundo a perguntar da relação dele com
as palavras. Das palavras que ele escolhia para traduzir o que via e vivia.
As
palavras tinham muita importância para ele. Nunca me chamou outra coisa que não
“minha querida filha”. A minha relação com as palavras faz-se muito cedo. A
minha mãe ensinou-me, enquanto cozinhava, poemas. Entrei numa escola privada,
mista, aos quatro anos. A minha mãe conta que eu olhava para as imagens e dizia
os nomes das coisas; fingia que sabia ler. Olhava e via o desenho de uma pata
de um animal, dizia “pata”. Uma vez enganei-me. Vi uma pipa e disse “barril”.
Aconteceu no dia em que foi à escola um inspector e a professora queria mostrar
este portento que já sabia ler… [riso] Lembro-me muito bem de a minha mãe dizer
ao telefone: “Não se preocupe, que eu vou fazer o impossível”. Fazer o
impossível? Coisa extraordinária. Ou de usar palavras como “outrora”. A minha
mãe conta que eu dizia: “Está a chegar, está a chegar… Escreve, mamã”.
A chegar a inspiração? Como quem recebe a visita
da musa.
A minha
mãe anotava. “Chegou o Outono. As folhas que outrora foram verdes…”. Tinha
acabado de aprender a palavra outrora.
Quem é que lhe incutia a impressão de que aquilo
tinha importância?
O meu
pai sempre me dissuadiu de escrever poesia. Gostava de biografia. Ou História.
Ou livros científicos. Não lia romances, não lia poesia. A minha mãe dizia-me
poemas. A minha tia, Manuela Amaral, escrevia poesia. Quando aparecia, trazia
coisas diferentes. Livros, jogos, roupa diferente. Tinha feito os Alpes de
motorizada. Era considerada excêntrica.
Atravessa a sua poesia um veio nostálgico. Como
se houvesse um outrora que foi um tempo de felicidade, um tempo onde tudo
estava intacto, e a que só assistimos através da sua memória reconstitutiva.
Muito do seu trabalho poético é feito sobre a memória.
É
verdade. Foi uma coisa que passou a acontecer a partir de determinados livros.
Deve ter a ver com a idade. Não sei se os primeiros têm isso… E talvez sim.
Estou a pensar em poemas como Passado, sobre a escola. Sintra
tem no meu imaginário um poder quase mágico. Que se liga às próprias histórias
da minha mãe (que não queria vir para o norte). Recordo-me do espaço que era
dado às mulheres. A minha mãe ia à pastelaria com as amigas, passeava. No norte
não tinha amigas, e Leça tinha um único café, frequentado por homens.
O mar de Leça é agreste. O mar do sul é mais
suave.
O
caminho que conduz à Praia das Maçãs é a minha infância. As férias grandes eram
três meses, e ia de eléctrico todas as manhãs com a minha mãe, uma amiga, a
filha dela. Tenho um poema que fala de uma doçura que não existe no norte: “Era
de noite, a chuva sem doçura…”. É a chegada a outro rio, ao Douro, ao norte.
Alguma vez ficou uma pessoa agreste?
Acho que
não. Detesto que mandem em mim, detesto. E detesto mandar nos outros.
Essa natureza indómita, que a faz detestar que
mandem em si, vem de onde?
Acho que
é o meu lado indisciplinado. Esse lado de que as freiras se queixavam, que
pratico de modo pouco visível.
Tenho
muito medo da montanha russa. Andei uma vez nos EUA e fui ao engano, com a
minha filha. Mas adoro filmes de terror. É algo abertamente menos perigoso do
que a montanha russa. É como a subversão, que é, para mim, mais interessante do
que a transgressão. Trabalhei sobre esses conceitos quando escrevi a minha tese
de doutoramento sobre Emily Dickinson. No meu tempo, os doutoramentos eram relações
de sete anos. Um casamento.
Há a crise dos sete anos, nos casamentos, nas
relações, que Billy Wilder filmou em O Pecado Mora ao Lado. Não foi o seu caso com
Dickinson.
Há o
poema: “Sete anos de pastor/Jacob servia/ Labão, pai de Raquel, serrana bela, mas
não servia o pai, servia-a a ela”. Ao fim dos sete anos… Isto era por causa do
quê? Ah, o doutoramento. Continuo profundamente fascinada com Dickinson. As
suas indisciplinas, e são muitas, não são feitas via transgressão. Não rompe,
não fractura abertamente. Subverte. A subversão é construir uma versão sob a
versão existente e fazer com que essa versão existente se esboroe. É a
implosão, é a explosão dentro. Essa ideia de corrosão faz-se sentido. Depois,
há um lado no qual não reparo muito, mas para que as pessoas à minha volta me
chamam a atenção, e que interpreto como distracção. Uma falta de atenção a
pormenores que passam pela aparência. Não sei se isto se interessa…
Estamos nas camadas da cebola. Nem todas
importam da mesma maneira. Falou de Dickinson como quem fala de uma pessoa que
se encontra e que muda a nossa vida.
Ah, sim,
sim. O meu pai considerava românicas um curso subversivo. Se não era possível a
engenharia química, que estudasse germânicas.
Que estudasse alguma coisa relacionada com o
poder? Germânicas correspondia a isso na cabeça de um homem conservador como o
seu pai?
Pois.
Obedeci ao meu pai, de alguma forma. Estudei apenas inglês nos três primeiros
anos, depois apanhei uma reforma do Sottomayor Cardia. Se não tivesse estudado
essa variante, que escolhi sem querer, não teria encontrado Emily Dickinson.
Acabei o curso e comecei a dar aulas na faculdade. Romantismo inglês, poesia
inglesa contemporânea. Entretanto fiz provas – o equivalente ao mestrado – em King
Lear. Acho Shakespeare talvez o maior génio da literatura. Quem me
orientou foi a Maria Irene Ramalho, da Universidade de Coimbra, que muito
admiro. Foi ela que um dia me disse, de uma forma aparentemente inócua:
“Conhece?”. Como quem: “Conhece esta pessoa?”. E deu-me um livro de Emily
Dickinson. O meu projecto inicial era fazer uma tese sobre Sylvia Plath, Anne
Sexton, Elizabeth Jennings. Confesso que me foi difícil aderir. Mas depois li
um poema que dizia assim: “Quando sob uma dor titânica, as feições ficam no seu
lugar”.
Porque é que a deslumbrou?
Joga com
as questões do ser e do parecer. A minha filha era pequenina , estava sozinha
na sala, à noite, e lembro-me de ter sido uma coisa epifânica. Como se se
tivesse desterrado uma cortina e eu tivesse visto para lá daquilo. Comecei a
entender os poemas, a sentir uma grande, grande afinidade com aquela pessoa.
Fale mais dessa dor… tectónica?
Titânica.
Uma dor titânica pode ser uma falha tectónica.
Podia
bem ser tectónica. A questão dos vulcões, dos tremores internos, muito mais do
que externos… Os nossos temas de doutoramento, o que escolhemos para trabalhar,
diz muito de quem somos. Falámos há pouco de subversão. O subterrâneo é
fundamental na poesia de Dickinson.
Esse encontro, com uma poetisa, foi um
cataclismo em relação à pessoa que era? Claro que isso acaba por ter uma
tradução na poesia que escreve…
Em
relação à pessoa Ana Luísa Amaral? Sim, absolutamente. O que é que muda em mim?
Acho que me descobri, me revelei a mim mesma. Dickinson obrigou-me a pensar e a
percepcionar-me de uma outra forma. Quando lhe falei de um momento epifânico,
não o tive só em relação à poesia. Tive-o em relação ao que estava por detrás
dos poemas, e que eu mal conhecia. Não sabemos muito dela. Sabemos pelas
cartas. Mas as cartas são poesia, tudo se cruza, enfim. A subversão começou a
assumir uma importância cada vez maior em mim.
O que é que pode ser um gesto subversivo?
Um
polícia nunca diz a um motorista que estaciona mal: “O senhor subverteu”. É uma
transgressão automobilística. Subverter seria estacionar num lugar onde fosse
permitido, mas depois… pôr uma bomba. Os rastilhos e as bombas podem estar sob
a aparência menos ameaçadora. Os vulcões de Dickinson não são vulcões a explodir.
São vulcões que estão sempre num estado latente de ameaça. Isso é algo que me
leva para outro caminho, e depois disso nunca mais fui a mesma.
Ao mesmo
tempo, começo uma outra área: a dos estudos feministas. Outra revelação. O que
eu não queria: ser uma menina bem comportada.
A transgressão é mais fácil do que a subversão.
Mas primeiro é preciso identificar contra o que quer transgredir. Pode
identificar a raiz do mal estar? Aquilo com que não lidava bem.
Mas
continuo a não lidar bem. Tenho 55 anos. Não me considero infeliz, não é isso.
Mas não me considero uma pessoa em bem estar. Não sei se a palavra sobressalto
se me aplica… Mas quem é que pode estar em bem estar? Vemos à nossa volta tudo
a tombar, a desabar. Fui sempre muito insatisfeita, sobressaltada. Não sou
deprimida, nunca fui.
A poesia deu-lhe uma iluminação para essas zonas
de angústia?
Talvez.
E uma forma diferente de ver o mundo. Quando passei a identificar determinados
pontos críticos onde o poder se exercia – estou a pensar nas mulheres – não lhe
posso dizer que passei a ser mais feliz. Passei a ser ainda mais angustiada.
Mas pelo menos mais lúcida. Isso é muito importante.
Aprende-se tudo nos livros?
“Não me
chega o saber de experiência feito, e o outro, o dos livros, sobra-me.” Um livro
pode ser… Creio que era o Napoleão que dizia: “Tenho mais medo de um jornal do
que de cem baionetas”. Um livro pode levar-nos a sítios desconhecidos e pode
ser uma bomba. Pode ser um rastilho para as coisas certas e estáveis do mundo.
Há um rastilho que tem um efeito detonador, para
a maior parte das pessoas, mais poderoso do que o dos livros: o amor. Num dos
poemas cita em epígrafe Bocage: “… que assim desarranjaste a minha vida”.
A ideia
de desarranjo está em todos os meus livros.
Desarranjo, caos, imperfeição. Palavras
constantes. Imperfeição está também no poema autobiográfico do Vozes.
O
desarranjo pode ser a força motriz. Essa espécie de revolta por dentro, essa
rebeldia… O desafiar. O recusar o dominante. Dickinson e o feminismo deram-me
isso. Quando falo de feminismo, não falo de homens contra mulheres, não digo
que os homens são uns algozes e as mulheres umas desgraçadas. Não tem nada a
ver com isto. É uma questão de direitos humanos. Não há nenhuma razão
científica ou de bom senso pela qual um ser humano deva ser discriminado pelo
facto de ter nascido com uma determinada configuração anatómica. Que a
discriminação existe, existe. Estas problemáticas levaram-me a outras e
foram-me radicalizando. Se fizer uma retrospectiva, percebo que estou cada vez
mais radical. Mais intolerante. Mais impaciente.
Porquê essa rebeldia e radicalização?
Normalmente essa incapacidade para condescender corresponde aos verdes anos.
É
verdade. Depois a gente aburguesa-se. Comigo foi ao contrário. Porque tudo me
chegou um pouco tarde. Mesmo a minha rebeldia política. Chegou-me quando os
meus colegas de faculdade estavam mais calmos.
Quando é que passou a ser de esquerda?
Começo a
ter simpatias pela UDP no meu quarto ano de faculdade, em 1978. Escrevi um
poema péssimo então, que nunca publiquei: “Sacrifique-se a vida ou mate-se um
burguês”. De um primarismo atroz! [riso] No 25 de Abril não fui extremamente
activa e empenhada.
Há nos poemas alusão a criaturas mitológicas e a
animais. Harpias, dragões, panteras.
Gosto de
tigres. Gosto mais dos tigres do que dos leões. Os leões são criaturas mais
sérias. Pertencem à categoria dominante. O tigre é mais selvagem, está em
extinção. Sou uma pescadora, adoro pescar. Pescava trutas enormes quando vivia
nos Estados Unidos. Há um poema lindo da Elizabeth Bishop que se chama The
Fish. Uma vez apanhei uma insolação porque estava à espera de uma
truta. A minha filha, pequenina, dizia: “Ó mãe, vamos embora”. Quase morri,
Em alguns poemas fala da sua filha. É
praticamente a única pessoa concreta que traz para os seus poemas.
Há um
poema sobre o meu pai, Que escada de Jacob, que
escrevi depois da morte dele. Depois da morte dele.
No poema Testamento diz que, se morrer, quer que a sua filha se lembre de si.
Que não
se esqueça de mim. Esse poema acaba a falar de batatas íntegras. Não há batatas
íntegras, há pessoas íntegras. Há dois conceitos que vemos desbaratados ou
espezinhados: a integridade e a bondade. A palavra bondade é uma palavra que já
não se usa. Parece que é uma palavra antiga, demodé. Fala-se de pessoas
muito inteligentes, valoriza-se a inteligência. Mas uma pessoa boa é rara. A
bondade é também a solidariedade para com o outro. É a “com-paixão”. É a
simpatia no sentido “sentir com”. Dos nossos políticos, está muito arredada. A
integridade também parece um valor esquecido.
Como é que faz a justaposição das batatas e de
um valor como a integridade?
“… as
batatas no saco esquecidas e íntegras”. No resto do poema escrevo: “… em vez de
lhe ensinarem contas de somar e a descascar batatas”. E as horas, “o horário
certo”. Trata-se de uma filha, e não de um filho. Ou seja, estamos a falar de
papéis.
Está a falar de competência para a vida?
Competência de género (a que sabe descascar batatas) e competência social (a
que cumpre as horas).
Dessas
duas competências. Em vez dessas duas competências, tentei passar à minha filha
a importância do íntegro. A minha filha aparece na minha poesia porque é a
pessoa mais importante da minha vida.
Eu não
ia falar da relação mãe-filha. Pode haver homens tão ou mais cuidadores do que
as mulheres, e quando um juiz dá a custódia de uma criança a uma mãe partindo
do princípio de que ela é uma melhor cuidadora do que o pai, isto significa um
peso social enorme, para um homem como para uma mulher. A relação com os filhos
é uma relação para a vida.
Mas nem
tudo o que está nos poemas é verdade. Num poema digo que a minha filha partiu
uma tigela na cozinha, e ela nunca partiu uma tigela na cozinha. E cumpria
horários certos, não jantava uma vez às seis da tarde e outra à meia-noite.
Que palavras é que a sua filha apontaria como
sendo as suas palavras nucleares? Assim como lhe perguntei se jactância seria
uma palavra do seu pai.
Quer lhe
que telefone a perguntar? [riso] Indignação, talvez. Inquietação, outra. E
espero que amor.
E cebolas?
Ah, eu
adoro cozinhar. Há agora uns refogados que se compram feitos. Sim, sim, a
cebola picada que se despeja para a panela, e já está o estrugido – como se diz
no norte – feito. Um disparate.
A cozinha não apouca as mulheres, como diziam
algumas feministas?
Ah,
não!, credo. A cozinha apoucava-as porque significava o espaço doméstico e a
exclusão de outros espaços, do espaço público, do espaço político. O que
apoucava as mulheres não era serem chefes de cozinha (normalmente, esses eram
os homens); era serem as que proviam o bem estar da família através do
cozinhado.
O seu pai gostaria desta mulher em que se
transformou? Sendo ele um conservador e tendo-a educado para outro destino.
Acho que
sim, acho que teria muito orgulho. Discutíamos brutalmente. Não podíamos falar
de política. Em relação à política, era irredutível. E em relação às minhas
posições políticas tenho a certeza que se distanciaria, e criticava-as. Mas
depois, no essencial… O essencial são as pessoas. Sabe o que acho? Este tempo
que vivemos, é tão curto… E não temos outro sítio para onde ir, só temos este
planeta. Porque não tentar viver o melhor possível? O que conta, de facto, são
os laços que nos aproximam. Se soubéssemos cuidar da nossa espécie já era bem
bom. Faz-me impressão a ambição desmedida, o querer possuir muita coisa. Outra
palavra que a minha filha me ouve dizer muitas vezes: impunidade. Como é possível?
A violência é uma coisa contra a qual me revolto. E já não subverto, mas
transgrido. Devemos falar, falar sem medo.
O livro Próspero Morreu não tem nem um mês. O seu fascínio pel’ A Tempestade de Shakespeare fê-la, por exemplo,
escrever um livro infantil que parte da peça.
Próspero
já estava noutros poemas, e Caliban [personagens d’ A Tempestade]. É uma peça de
teatro em verso em que estava a trabalhar há anos. Já foi feita uma leitura
encenada. Era para ser o Paulo Eduardo Carvalho – outra pessoa que estruturou a
minha vida, uma perda – [a fazê-la]. A Tempestade é para mim a
peça mais poética de Shakespeare. As figuras de Próspero e Caliban vão ser
usadas para interpretar as relações de poder que estruturam o chamado mundo
desenvolvido e o mundo subdesenvolvido. Boaventura de Sousa Santos faz isso.
Próspero é o colonizador, Caliban é o colonizado; é dissimulado, mas a sua
subserviência é uma estratégia para a sobrevivência.
No meu
texto, há personagens que não são d’ A Tempestade. Penélope e
Ariadne. Bárbara, a Escrava, e Camões, e Teseu. Ariadne tem de casar com Teseu,
mas a grande paixão dela é Caliban.
Lê-se na contracapa: “Mas sabe, minha filha do
risco que é amar (…) E a vida é o assombro que assombra e amedronta”.
Há um
outro verso de que gosto: “Sem liberdade, é o poder um monstro de braços
bifurcados, onde se aloja lei sem pensamento e se torna viscoso o coração”.
Portanto, é também uma peça sobre como podem liberdade e amor conviver.
Quis ser mais Ulisses do que Penélope?
Jamais.
Porquê?
Porque Ulisses é o que empreende a viagem. E
Penélope fica a fazer e refazer a sua teia, à espera.
Mas
Penélope escolheu isso. Esperar e fazer a teia é a sua opção. A possibilidade
de escolha nunca pode ser uma coisa negativa. A liberdade não pode nunca ser
uma coisa negativa. O que me assusta é um discurso que privilegia a escolha e
uma prática que a desmente e onde impera o medo, o receio. O discurso da
cautela faz-me impressão. Não sei ser cautelosa. Não sei ter cuidado com o que
se deve dizer. Mas se não me sei defender muito bem, ainda bem. As pessoas que
se sabem defender muito…
As das horas certas de que fala no seu verso.
Exactamente.
São pessoas que não arriscam. E é sempre um risco tudo aquilo que fazemos.
Anabela Mota Ribeiro, Público, 2011-12-11