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quinta-feira, 22 de setembro de 2022

A um Negrilho, Miguel Torga

Foto: in Árvores Monumentais de Portugal, Ernesto Goes(1984)

 

A UM NEGRILHO1

 

Na terra onde nasci há um só poeta.

Os meus versos são folhas dos seus ramos.

Quando chego de longe e conversamos,

É ele que me revela o mundo visitado.

Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada,

E a luz do sol aceso ou apagado

É nos seus olhos que se vê pousada.

 

Esse poeta és tu, mestre da inquietação

Serena!

Tu, imortal avena2

Que harmonizas o vento e adormeces o imenso

Redil3 de estrelas ao luar maninho4.

Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso

Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!

 

Miguel Torga, Antologia Poética, 5.ª ed. Lisboa, Dom Quixote, 1999. Poema publicado inicialmente em Diário, VII, 1957

 

________

1 Negrilho: árvore de grande porte que dá madeira escura, também designada por olmo ou ulmeiro.

2 Avena: flauta pastoril; símbolo do estilo simples, próprio dos versos pastoris.

3 Redil: local cercado onde se recolhe o gado, especialmente cabras e ovelhas.

4 Maninho: que não é fecundo; estéril.



 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Indique as características do «Negrilho» referidas no poema.

2. Explicite o efeito de sentido produzido pela mudança de pessoa verbal – «ele»/«tu» – da primeira para a segunda estrofe.

3. Refira as atitudes assumidas pelo «eu» no seu relacionamento com o «Negrilho».

4. Interprete o significado da metáfora «imenso/ Redil de estrelas» (vv. 11-12).

5. Caracterize o conceito de poesia simbolizado pelo «Negrilho».

 

Explicitação de cenários de resposta

1. De acordo com o poema, o «Negrilho» é:

- uma árvore («folhas dos seus ramos») imponente («gigante»), antiga (nela o «tempo» faz «ninho»), de copa abundante («bosque suspenso») e em cuja ramagem se refletem a «luz do sol» e a luminosidade noturna (cf. vv. 6-7);

- um espaço protetor, a que se acolhem o «eu», «os pássaros e o tempo»;

- um ser com estatuto humano, dotado quer de atributos físicos - a voz («conversamos») e os «olhos» -, quer de traços psicológicos, pois é definido como sábio («revela o mundo visitado») e sonhador;

- o único poeta da terra natal do «eu», e «mestre da inquietação/ Serena».

 

2. A alteração de pessoa verbal - de «ele» para «tu» - entre as duas estrofes faz ressaltar a proximidade entre o «eu» e o «Negrilho». Na primeira estrofe, o sujeito poético enfatiza o carácter excecional daquela árvore e da sua relação com ela, mas mantém. através do discurso de terceira pessoa, um tom contido de aparente distanciamento. Ao dirigir-se ao «Negrilho», na segunda estrofe, tratando-o por «tu», dá expressão dramática à sua relação com a árvore, revelando, em toda a sua intensidade, o envolvimento afetivo que a caracteriza.

 

3. No seu relacionamento com o «Negrilho», o sujeito poético assume atitudes de:

- identificação e respeito, tomando o «Negrilho» como origem dos seus próprios versos (cf. v. 2) e como «mestre» (cf. v. 8);

- aprendizagem («conversamos», «revela»), pois é o «Negrilho» quem decifra o «mundo», permitindo ao «eu» aceder ao sentido das coisas vistas;

- admiração, devido à capacidade suprema que o «Negrilho» tem de simbolizar a harmonia da natureza (cf. vv. 8-9 e 11-12).

 

4. Ao recorrer à metáfora «imenso/ Redil de estrelas», o sujeito poético estabelece uma analogia entre o gado miúdo e as «estrelas»: os minúsculos pontos luminosos distribuídos na imensidão do céu sugerem a imagem do gado que está reunido, para passar a noite, numa cerca (o «Redil»): assim, o sujeito poético expressa, por um lado, a valorização da realidade rural, terrena, que surge como que refletida no céu, e, por outro, uma vivência do Cosmos como uma realidade próxima e familiar.

 

5. O conceito de poesia simbolizado pelo «Negrilho» apresenta os seguintes traços:

- valorização da sabedoria da terra («É ele que me revela o mundo visitado»);

- simplicidade poética, inspirada na natureza («imortal avena»);

- ideal de harmonia e de serenidade («inquietação/ Serena»);

- valor da poesia como ordenadora mágica do Universo;

- expressão do sonho humano de elevação («gigante a sonhar») e de integração na ordem cósmica;

- …

Nota - A apresentação de três traços caracterizadores é considerada suficiente para a atribuição da totalidade da cotação referente aos aspetos de conteúdo.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B n.º 139. Portugal, GAVE, 2001, 1.ª fase, 2.ª chamada


 


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  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 

 



CARREIRO, José. “A um Negrilho, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 22-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/a-um-negrilho-miguel-torga.html


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