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sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Viagem: Aparelhei o barco da ilusão, Miguel Torga


 

VIAGEM

 

Aparelhei o barco da ilusão

E reforcei a fé de marinheiro,

Era longe o meu sonho, e traiçoeiro

O mar...

(Só nos é concedida

Esta vida

Que temos;

E é nela que é preciso

Procurar

O velho paraíso

Que perdemos.)

 

Prestes1, larguei a vela

E disse adeus ao cais, à paz tolhida,

Desmedida,

A revolta imensidão

Transforma dia a dia a embarcação

Numa errante2 e alada3 sepultura...

Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura,

O que importa é partir, não é chegar.

 

Miguel Torga, Antologia Poética, 5.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 1999

 

__________

[1] Prestes: (adj.) pronto; preparado; (adv.) depressa.

[2] errante: que muda continuamente de lugar.

[3] alada: com asas.

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. A «Viagem» representada no poema tem um carácter metafórico.

1.1. Identifique os diferentes momentos dessa «Viagem».

1.2. Interprete o valor simbólico que os elementos «barco» e «marinheiro» adquirem no texto.

2. Indique os traços caracterizadores do sujeito poético.

3. Analise os efeitos de sentido resultantes da utilização de parêntesis na primeira estrofe.

4. Comente a importância dos dois últimos versos na construção do sentido do poema.

 

 

Explicitação de cenários de resposta

1.1. A «Viagem» representa metaforicamente a vida do homem e constitui-se nos seguintes momentos:

- preparativos de embarque, com lançamento da «vela» e partida apressada do «cais» (cf. vv. 1-2 e 12-13), ou seja, tomada de decisão por parte do «eu» de enfrentar a «aventura» da vida;

- navegação em pleno mar (cf. vv. 14-18), enfrentando o sujeito as «ondas», ou seja, lutando com determinação pela concretização do seu percurso pessoal.

 

1.2. Os elementos «barco» e «marinheiro» representam simbolicamente o sujeito e metaforizam o seu pensamento sonhador («barco da ilusão»), a crença em si mesmo («fé de marinheiro») e a vontade de enfrentar a vida («Viagem», «mar», «aventura»), comandando o seu destino pessoal, isto é, traçando-lhe um rumo, tal como o «marinheiro» no comando do seu «barco».

    Este par simbólico representa, assim, a luta incessante do homem pela conquista da felicidade, única forma de enfrentar e ultrapassar a angústia existencial provocada pela certeza da morte (cf. vv. 14-17).

 

2. O sujeito poético caracteriza-se por ser:

- sonhador, acreditando no «sonho» de uma vida marcada pela busca da felicidade plena, na procura do «velho paraíso» perdido (cf. vv. 1-3 e 5-11);

- insatisfeito, rejeitando um modelo de vida limitado (cf. v. 13);

- determinado, persistindo na concretização do seu objetivo, apesar das adversidades a enfrentar (cf. v. 3 e vv. 15-18);

- lúcido, consciente de que nem mesmo a «ilusão» pode alterar a precariedade da existência humana (cf. vv. 14-17);

- aventureiro, enfrentando a incerteza e o risco próprios da «aventura» (cf. vv. 19-20).

Nota - A apresentação de quatro traços caracterizadores é considerada suficiente para a atribuição da totalidade da cotação referente aos aspetos de conteúdo.

 

3. A utilização de parêntesis introduz uma pausa discursiva que suspende o relato da «Viagem» e instaura um momento de reflexão em que o sujeito explicita (em cumplicidade com o leitor) os fundamentos da sua atitude, apresentando-os como uma regra de vida que propõe a toda a humanidade: o homem, no curto espaço da sua existência terrena a única que «nos» é «concedida» -, deve ter como ideal a busca e a (re)conquista da felicidade edénica. Os parêntesis evidenciam a importância desta tese no poema, isolando-a e conferindo-lhe unidade e autonomia.

 

4. Colocados no final do poema e apresentados sob a forma de uma máxima, estes versos ganham particular importância, pois neles se põe em evidência uma espécie de chave interpretativa. Na verdade, ao salientar a noção de que o princípio motor de «qualquer aventura» é a própria busca, e não o objetivo a alcançar, o sujeito clarifica o modo como encara a vida.

    Assim se justifica que o «eu», embora certo de que a morte é o destino inevitável do homem (cf. vv. 15-17), não abdique da sua capacidade de busca e persista na concretização do «sonho» que conferirá sentido à existência humana - o da procura da felicidade na única «vida» («Esta», a terrena) que aos homens «é concedida».

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais - Agrupamentos 1, 2 e 3 e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B n.º 139. Portugal, GAVE, 2000, 1.ª fase, 1.ª chamada

 

 

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  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 

 



CARREIRO, José. “Viagem: Aparelhei o barco da ilusão, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 23-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/viagem-aparelhei-o-barco-da-ilusao.html


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