Páginas

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Lamento (Pátria sem rumo), Miguel Torga

“Há uma coisa que nunca poderei perdoar aos políticos: é deixarem sistematicamente sem argumentos a minha esperança”.

Miguel Torga, Diário IV, 1985



Poema de Miguel Torga declamado pelo autor.
80 Poemas por Miguel Torga, Antena 1, 1987-12-04
Lisboa e São Martinho da Anta


Chaves, 11 de setembro de 1975

 

LAMENTO

 

Pátria sem rumo, minha voz parada

Diante do futuro!

Em que rosa-dos-ventos há um caminho

Português?

Um brumoso caminho

De inédita aventura,

Que o poeta, adivinho,

Veja com nitidez

Da gávea da loucura?

 

Ah, Camões, que não sou, afortunado!

Também desiludido

Mas ainda lembrado da epopeia!

Ah, meu povo traído,

Mansa colmeia

A que ninguém colhe o mel!...

Ah, meu pobre corcel

Impaciente,

Alado

E condenado

A choutar nesta praia do Ocidente...

 

Miguel Torga, Antologia Poética, Diário XII, 1977, Coimbra, pp. 447-448

 

 

Questionário sobre o poema "Lamento", de Miguel Torga.

1. Faça o levantamento dos vocábulos ligados à navegação marítima e justifique por que se lhe faz referência.

2. Justifique o título.

3. Tendo em atenção a data de produção do poema, explicite a razão para a ocorrência das frases exclamativa e interrogativas na primeira estrofe.

4. Explicite que conceito de poeta está expresso na primeira estrofe.

5. Refira o que se pretende significar com os símbolos “colmeia” e “corcel”.

6. De que precisa a Pátria?

 

 

Cenários de resposta:

1. Os vocábulos ligados à navegação marítima - rumorosa-dos-ventos, brumoso, nitidez, gávea, Camões, epopeia, praia do Ocidente – dão conta do estado anti-heroico e sem rumo que se vivia em Portugal, no pós-25 de abril de 1974.

 

2. O poeta explicita tristemente a dor, a amargura e desalento de o país não estar bem.

 

3. A exclamação inicial dá conta da sua perplexidade perante o estado de crise, decadência e indefinição do país, no pós-25 de abril. Por esta razão, o sujeito poético interroga-se sobre o rumo que Portugal deverá seguir.

 

4. A tónica de desalento faz com que Torga acredite mais na Literatura do que na sua literatura (“minha voz parada”). No texto, o sujeito poético menciona o poeta-adivinho, aquele que é clarividente (que “veja com nitidez”) num país decadente, em estado de insanidade (“loucura”). Portanto, temos um poeta empenhado civicamente, que tem uma missão a cumprir na inversão da situação que o preocupa.

 

5. Colmeia pode ser entendida como referência ao povo trabalhador; corcel, por sua vez, será o povo lutador.

 

6. Segundo a leitura do poema, a Pátria precisaria, por exemplo, de ser revitalizada através dos valores de trabalho e de luta associados ao povo. 

Nota: sabemos que em 1974, no primeiro congresso, Miguel Torga enviou uma mensagem ao PS: “Votos de que o povo português possa encontrar na realidade de um socialismo de feição própria a sua plenitude humana e a sua dignidade cívica não projetadas numa lonjura messiânica, mas inseridas num concreto futuro próximo”. Falou algumas vezes em ações políticas de esclarecimento e defendia umSocialismo comunitário de base anarquista”. (http://denunciacoimbra2.wordpress.com/2007/08/13/a-miguel-torga/).

 

 

Miguel torga - 80 Poemas. Portugal, EMI, 1987


    Texto de apoio

  

As malhas identitárias tecidas pela História

 

A revolução de Abril semeou inicialmente algumas breves ilusões em Torga (1999: 1297) mas depois diversos aspetos desencadearam a desilusão, a sensação de que os ideias de liberdade e igualdade pelos quais lutou foram traídos, através do seu pungente “lamento”: ”Pátria sem rumo, minha voz parada / Diante do futuro! / Em que rosa-dos-ventos há um caminho / Português?// […] Ah, meu povo traído, / Mansa colmeia / A que ninguém colhe o mel!.../ Ah, meu pobre corcel/ […] A choutar nesta praia do Ocidente” (1999:1311).

Neste caso, é com a voz da pátria que ninguém ouve que o poeta se identifica, perante a perspetiva de um futuro incerto e nebuloso face à inércia de um povo, incapaz de encontrar o caminho certo para desenvolver o país, como foi feito pelos antepassados. Por conseguinte, os portugueses, essa “mansa colmeia”, parecem condenados à mediocridade e ao abandono na cauda da Europa.

O diarista revela-nos a sua preocupação com a instabilidade do país, com a pobreza cultural, agravada pelo longo período ditatorial e pela inércia dos governantes que, de modo demagógico, prometem melhorar a situação, sem que tal suceda.

A mesma nostalgia e preocupação habitam o poema “Pátria”, escrito a 28/4/1977, que esboça o retrato do país, ao longo de oito séculos de existência, exaltando-lhe os êxitos e constatando o desmoronar do império:

 

Foste um mundo no mundo, / E és agora / O resto que de ti / Já não posso perder: / A terra, o mar e o céu / Que todo eu / Sei conhecer. // Foste um sonho redondo, / E és agora / Um palmo de amargura / Retornada. / Amargura que em mim / Também nunca tem fim, / Por ter sido comigo baptizada. // Foste um destino aberto, / E és agora / Um destino fechado. / Destino igual ao meu, amortalhado / Nesta luz de incerteza / E de certeza / Que vem do sol presente e do passado. (1999:1335).

 

Neste caso, a aliança entre a pátria e o poeta é de novo evidente, já que em ambos habita a amargura, uma espécie de antinomia entre um passado glorioso e um presente decadente e, além do mais, partilham o mesmo “destino amortalhado”. A mesma ideia de uma condenação eminente espelha-se, um mês depois, ao desabafar: “Á medida que o tempo passa mais agónicas são as horas. A saúde piora, a pátria desintegra-se, a solidão aumenta” (1999:1336).

Do ponto de vista cultural, constata-se a crítica à perda da autenticidade, à imitação do estrangeiro, sendo condenado na literatura o francesismo e a imitação de outros modelos estrangeiros. Além disso, essa tendência, paralela à mediocridade reflete-se também na arquitetura e em todas as artes em geral.

Por isso, inquieta-o a perda de genuinidade e a descaracterização que afetam algumas paisagens que a importação de modas estrangeiras adultera, substituindo a arquitetura rural tradicional. Tal facto é visível numa anotação datada de 22/12/1975, onde afirma que não resistimos à avalanche emigratória devido à falta de casticismo, segurança anímica e “imunidade cultural”, por isso “degradados na própria inocência, somos hoje um mostruário de tintas e a vergonha dos olhos” (1999:1314).

Por outro lado, num registo datado de 30/5/1982, Torga refere a proliferação de grupos culturais pelo país, que parecem norteados por uma certa ânsia de procurar as raízes. Todavia, este interesse, segundo o autor, reduz-se a um ilusório renascimento, visto que: “Perdido o sentido da História, toda a reidentificação coletiva não passa de um tropismo obstinado da memória” (1999:1461).

Por seu turno, o diarista revela alguma preocupação e desconfiança devido à entrada de Portugal para a Comunidade Económica Europeia, receando que o nosso país, como refere em 1991: “receba diariamente ordens alheias de cultura e cultivo, e seja obrigatoriamente transformado num eucaliptal” (1999:1718). É, então, ainda na sequência desta preocupação que o autor se opõe à regionalização que, segundo ele, provocaria uma desintegração da identidade nacional, mutilando-a. (1999:1722-1731).

É novamente o receio da perda da identidade, da liberdade, da individualidade histórica e cultural que emerge, quando o autor ergue a sua voz contra o tratado de Maastricht, afirmando:

 

Tenho por certo que Maastricht há-se ser uma nódoa indelével na memória da Europa, envergonhada de, no curso da sua gloriosa história, ter trocado neste triste momento o calor do seu génio criador pela febre usurária e, nas próprias assembleias onde prega a boa-nova das regras comunitárias, fintar de mil maneiras os parceiros. (1999:1740)

 

Esta posição é ainda reiterada no discurso de agradecimento do prémio “Figura do Ano” (8/7/92), onde considera Maastricht como uma irresponsabilidade da Europa e uma traição à nossa identidade (1999:1745); no discurso de agradecimento do Prémio Montaigne (1999:1752) e também quando o Tratado entra em vigor (1999:1778). A Europa é representada como um elemento cilindrador da nossa cultura e identidade, transparecendo o receio da alienação económica e cultural, movida pelos interesses económicos niveladores. Emerge a oposição entre um Portugal vulnerável, subserviente, e a Europa poderosa e dominadora.

Neste último volume (o XVI), constatamos que as notas motivadas pelas digressões ao ar livre, a desvendar novos horizontes, pelas estradas de Portugal e do mundo, são radicalmente substituídas pelo cenário do seu escritório. Condenado à imobilidade, Torga refugia-se numa mais profunda interioridade e reflexividade, perspetivando o mundo em constante mudança, entre quatro paredes. Porém, o seu interesse pelo exterior não diminui. Aliás, como já havia escrito: “O meu espaço de liberdade é o mapa de Portugal subentendido na folha de papel onde escrevo” (1999:1280). E, nesta esteira, surge-nos um outro conceito de “pátria” ainda não referido, e que ultrapassa a territorial. À semelhança do que já preconizara Fernando Pessoa, também Torga considera como sua pátria a Língua Portuguesa, como explicita numa passagem datada de 14/11/1966:

 

Pessoa sabia: a língua é uma pátria. A pátria dum escritor, pelo menos. Pátria que não herda passivamente de qualquer providencial Afonso Henriques, mas activa e penosamente constrói dia a dia, unindo no tempo o seu corpo disperso. [….]

Sim, a língua é uma pátria, e como consola lembrá-lo em certas horas! Enche o coração de paz a certeza de que nenhuma marginalidade margina os cultores da palavra, centros geográficos da nação, queiram ou não os imperadores do silêncio. (1999:1094-1095)

 

Deste modo, o amor à terra portuguesa expande-se à língua, materializando-se neste Diário através da escrita autêntica, mas depurada e, muito particularmente, da poesia. Será pois esta a última “pátria” onde a identidade se projeta.

Nesta esteira, no Diário, a análise do “eu” não se sobrepõe à análise da realidade circundante, ambas se fundem e se interpenetram. Isto porque a escrita de Torga, como acto primordial, ontológico que é, germina nas fragas profundas do seu ser, autêntica e única (pois quanto mais autêntica, mais universal). O seu vasto conhecimento da terra, da cultura da História, da literatura nacional e mundial é apenas um “meio” e nunca um fim.

 

Gago, Dora Nunes. “Avivo no teu rosto, o rosto que me deste”: espelhos da identidade nacional no Diário de Miguel Torga. Moderna Sprak, Upsala, Sweden 106(1).2012. pp. 65-84.

 

    Poderá também gostar de:


  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 

 

 


CARREIRO, José. “Lamento (Pátria sem rumo), Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 26-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/lamento-patria-sem-rumo-miguel-torga.html



Sem comentários:

Enviar um comentário