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quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Os rapazes, em Luís Miguel Nava

Luís Miguel Nava, em 1974, com 17 anos
 


CONTRA OS FLASHES

 

É terra doutro o corpo dum rapaz, o leite amarrotado nele o incêndio corre contra os flashes, mínimo relâmpago de terra o poço da alegria.

 

As paisagens os miúdos reúnem-nas à mão, a miniatura delas é o seu rosto. Voltam-se as paisagens como as páginas.

 

Um deles, força macia, ensanguentado e verde inquina-se na luz, uma fralda de incêndio há de escorrer-lhe pelos lábios.

 

Eis o rosto, eis o poço, põem-se as imagens como toalhas, as pequenas pedras deflagrando.

Os miúdos a nudez destrói-os nesses lábios.

 

Luís Miguel Nava, Películas. Lisboa, Livraria Moraes Editores, 1979

 

Steve Walker

 

ATRÁS DA PÁGINA

 

As mãos no poema, pelas páginas

acima escoam-se os espelhos, a trovoada

vermelha emerge das imagens. A trovoada

redonda. Uma revoada

de espelhos é a alba, há poços nos espelhos

onde a nudez

se precipita, a luz mordendo a água.

 

Do poema vêem-se as trovoadas

imóveis

atrás da página, as imagens,

da alba, as dum rapaz arriando a noite, os astros

a afluírem-lhe aos cabelos. Vêem-se

à tona da trovoada os lenços

caindo na manhã, com as veias do rapaz

as desta a confundirem-se, depois

os poços da nudez abertos pelos astros.

 

Esse rapaz as suas próprias veias

o amarram à manhã.

Não me olhar ele ateia-me. Pequenos

incêndios, os da abóbada

do poema, arrancam-lhe a nudez.

Está alguém ao poema como a um espelho.

 

Luís Miguel Nava, Películas. Lisboa, Livraria Moraes Editores, 1979

 

Silvia Lermo, "Amor e morte", 2019


 

"Por que a crítica literária apagou o corpo masculino desejante e desejado em Luís Miguel Nava?

Por que os críticos literários ignoraram o dado do desejo homoerótico explícito nas imagens dos rapazes que saltam às páginas de seus poemas?"


(Sinei Ferreira Sales,  2015)

 



Luís Miguel de Oliveira Perry Nava, poeta que exerceu entre 1979 e 1994 a sua atividade literária e poética, nasceu em 1957 em Viseu e foi dramaticamente assassinado a 10 de maio de 1995 em Bruxelas. Prematura infelizmente foi a sua partida, mas continua a revelar-nos o prodígio da sua poesia, largamente intensa e marítima no seu envolvimento e na expansão de um novo estilo de erotismo, salientando-se os sentidos, os órgãos e o interior do corpo humano, relacionado com a própria beleza, surgindo através disso o amor na sua expressão profundamente sexual e apaixonada na imagem dos rapazes ou “o rapaz” – o destinatário. […]

As memórias de Luís Miguel Nava ficam retidas nas suas recordações essencialmente amorosas e simbolizadas pelos rapazes. O livro Onde à Nudez [inclui Películas (1979), Onde à nudez (publicado originalmente em A inércia da deserção), A inércia da deserção (1981), Como alguém disse (1982)] implica uma evocação ao próprio nu físico, para além da referência à nudez, que se torna explícita, porque ela já existe, sendo evocada para se tornar mais real. Depreende-se que essa nudez é visível, e que a sua ausência não se concebe no fluir da imagem de uma só figura ou do amado destinatário, mas em múltiplas figuras e imagens de destinatários, desfilando uma sequência de imagens sob a forma figurativa de espelhos, que podem remeter para a mesma e única pessoa, imagem transfigurada e quase obsessiva ou endeusada do rapaz, que não se sabe quem é, mas que surge em quase todos os poemas dos capítulos do referido livro, sob a insígnia de vários destinatários ou rapazes.

 

Susana Bravo, A Fala do Corpo em Luiza Neto Jorge e Luís Miguel Nava. Universidade Nova de Lisboa – FCSH, 2012

 

Películas, de 1979, é a sua estreia numa editora importante como a Moraes e vence o prémio Revelação da APE

 

Na poesia inicial de Luís Miguel Nava, podemos vislumbrar […] que a conceção lírica do autor principia-se por um ímpeto edênico, de grande luminosidade, em que o amor se insurge enquanto manifestação da liberdade, do encantamento pelo mundo. Dessa forma, a figura do rapaz, arquétipo de um viver em febre e plenitude, ganha relevo como uma epifania a concentrar o esplendor do cosmos e da natureza. […]

Nessa primeira fase, portanto, o corpo é antevisto pelo eu lírico enquanto materialidade alheia; trata-se sempre do corpo de um outro, um outro amado e amoroso. Dessa forma, o olhar do eu lírico sempre se evade para a exterioridade do mundo, em um gesto de contemplação estética:

 

HÁ UMA PEDRA FEROZ

 

Há uma pedra feroz,

um rapaz,

há o olhar do rapaz atado à pedra,

o olhar do rapaz, a minha casa,

o olhar do rapaz às vezes é a pedra.

 

Luís Miguel Nava, Películas, 1979

 

Nesse poema, de anteposições sintáticas cujo embaralhamento gera metáforas de efeito, o rapaz se insurge como aparição impactante. A prosopopeia “pedra feroz” já indica um fecundo entrelaçamento metafórico entre os signos “rapaz” e “pedra”. Tal nexo é explicitado de duas maneiras: primeiramente a pedra é o rapaz (nos dois primeiros versos) e, depois, o seu olhar (último verso).

No primeiro momento dessa gradação metafórica, indicado pelos versos concisos, elípticos (“Há uma pedra feroz,/ um rapaz,”), o rapaz-pedra desvela-nos uma fusão de cunho ontológico, na qual entes distintos (pedra e rapaz) se consubstanciam, formando um todo. Temos assim um corpo duro, mineral, um corpo cuja musculatura ganha o ímpeto das rochas, caracterização que fica ainda mais marcada pelo aspeto juvenil de tal rapaz, cuja carne tenra, fresca, desvela-nos um jovem na plenitude do vigor físico.

Na segunda aceção metafórica de “pedra”, a do último verso, tal elemento deixa de ser uma essência integralizada, uma manifestação do próprio ser do jovem, para tornar-se algo que o representa, o seu olhar (“O olhar do rapaz às vezes é a pedra”). Assim, a mirada do rapaz torna-se pedra, uma pedra feroz. A violência encantatória de tal mirada se antepõe, por efeito da antítese, a uma terceira metáfora, a do olhar enquanto casa (“o olhar do rapaz, a minha casa”), índice do conforto, da segurança e do aconchego. Um olhar que guarda, um olhar que abraça, trazendo-nos a sensação de conforto e intimidade, mas um olhar que é também feroz, selvagem e perigoso. Tal oscilação de significados delineia-nos uma imagem que ganha complexidade e, ao mesmo tempo, encantamento. Haja vista que o olhar amoroso, quando nos atinge, é naturalmente desconcertante, inquiridor, causando-nos medo e fascínio, terror e intimidade.

A visão corporal, aqui, se assenta na alteridade do eu lírico. O corpo, nessa primeira etapa da obra de Nava, é, para lembrarmos Octavio Paz, expressão da “outridade”. Nesse poema, por fim, o corpo como pedra desvela, por conseguinte, a dimensão erótica desse corpo afiado, fálico, enfurecido pelo ímpeto erótico.

Com efeito, a figurativização desse outro é de ordem encantatória, exprime um discurso do fascínio e da sedução. Dessa forma, para o poeta ainda iniciante, o corpo se insurge como esplendor, maravilha, verdadeiro paraíso perdido no chão banal do quotidiano.

Tal perspetiva do corpo enquanto vislumbre mágico, epifania solar, perdura em outros textos, como podemos perceber nesse exemplo:

 

ATRAVÉS DA NUDEZ

 

Este garoto é fácil compará-lo a um campo de relâmpagos
encarcerando um touro. Através da nudez vêem-se os astros.
É onde o poema interioriza
a sua própria hipérbole, a paisagem.

Movem-se os tigres como câmaras na areia, prontos eles
também a deflagrarem. A manhã
espanca a praia, é impossível descrevê-las sem falar
dos fios deste poema
que a cosem com a paisagem.

 

Luís Miguel Nava, Películas, 1979

 

O poema abre-se por uma imagem de grande plasticidade, uma comparação pela qual o garoto é visto como um “campo de relâmpagos” a encarcerar um touro. […]

O visualismo nasce, nesse poema, da convicção de que o real só se concretiza de fato graças ao efeito demiúrgico do poeta, capaz de tecer os fios do texto e imprimir maior clareza ao mundo sensorial (“É onde o poema interioriza/ a sua própria hipérbole, a paisagem.”). Daí a paisagem, mundo dos sentidos, permanecer interiorizada, de forma mais contundente, devido à referência a uma figura do exagero, a hipérbole, no íntimo do poema. O poema, portanto, intensifica o real, confere a ele um status mais verídico e expressivo.

Em seguida, na segunda estrofe, o eu lírico atenta-se a outras imagens surpreendentes, como a dos tigres prontos a deflagrem (o que exatamente?) e a manhã a espancar a praia. Os dois versos iniciais da segunda estrofe trazem uma incompletude sintática desconcertante. O verbo deflagrar exige um complemento que não se realiza textualmente, dada a secção operada pelo ponto final. De forma indireta, a palavra manhã, pelo efeito imagético do poema, surge como possível complemento textual a servir de objeto direto ao referido verbo. Mas o obscurantismo do texto não se estanca nesse ponto. O eu lírico, oculto pela armadura textual, haja vista que ele não se autoenuncia, insere um advérbio desconcertante, o “também”. Não são apenas os tigres que deflagram, outros seres também o fazem. Quem exatamente? Vejamos outros aspetos do poema, para talvez elencarmos possíveis inferências sobre tais enigmas.

A hipérbole “a manhã espanca a praia”, de grande força lírica, revela o esplendor da manhã, a sua pujante pletora orgiástica, concretizada apenas pelos fios do poema, essa tapeçaria que o eu lírico paciente costura. Nesse sentido, há uma identidade entre a voz poética e a voz do poeta. O eu lírico se configura, no poema, enquanto poeta, criador textual que “deflagra”, pelo seu olhar, a manhã, esse verdadeiro “campo de relâmpagos”. Talvez esteja aí esse outro que “também” deflagra, ou seja, o próprio eu lírico, persona emblemática do poeta enquanto arquétipo do demiurgo.

Com efeito, a “outridade” se antepõe à voz do eu lírico-poeta através do touro, do rapaz, e dos tigres espraiados na areia. Os animais, assim, são figurativizações do outro e, pelo seu ímpeto violento e selvagem, metáforas sensualizadas da alteridade.

O que nos interessa no texto, conformando-o ao recorte de nossa leitura, é justamente a imagem inicial. O garoto é um campo de relâmpagos que encarecera um touro. O touro é emblema da virilidade masculina, símbolo da libido do homem. Há um touro no garoto, preso por um campo de relâmpagos. Essa última imagem, formando o nexo comparativo campo-garoto, surpreende pelo efeito surpresa. O menino é como um campo a conter um touro. Tal campo, portanto, poderia expressar o próprio corpo do garoto, um campo onde um touro, o próprio desejo, está preso. Dessa forma, para Nava, o erotismo de tal imagem é reveladora da beleza do outro e da própria natureza.

É importante sublinhar que os rapazes da lírica de Nava fazem parte de uma geografia específica, a da natureza, e de maneira mais direta, à paisagem do mar, numa atualização, em clave moderna, do locus amoenus. Assim, em seus livros iniciais, o rapaz está associado ao mar, às ondas, ao sol, às areias, numa celebração cósmica do amor através de um erotismo que transcende o corpo e se derrama pelo mundo, numa contemplação estética e epifânica do cosmos. Em “Através da nudez”, de forma lapidar, tal imagem cósmica do erotismo fica perfeitamente expressa por um fragmento da primeira estrofe: “Através da nudez vêem-se os /astros”. Nesse poema, a nudez aflora em plenitude, em um momento raro da lírica de Nava (em sua escrita vindoura, a partir de O céu sob as entranhas, sua poesia irá rasgar como uma britadeira tal superficialidade corpórea, adentrando os meandros íntimos da carne e configurando uma estética do grotesco).

Em “Sketch” – um dos primeiros poemas em prosa de Nava, haja vista que o escritor cultuou com intensidade tal subgênero –, podemos antever, já no livro de estreia, traços desta estética do entranhamento carnal:

 

SKETCH

 

Vem o rapaz à página, é o seu sketch, a luz às vezes é de tal intensidade que a página fica em branco, outras porém mais fraca, o rapaz põe o poema em perspetiva, a água ainda mal alinhavada nas bainhas dela depois lava-se, a tensão no poema é então tanta que as imagens saltam em descargas, é assim colhido em planos vários, há alturas em que apenas um pormenor do rosto vem à página outras em que a ela aflui a nudez toda, um nó de imagens avoluma-se, o rapaz leva o silêncio ao máximo, acelera-o, é onde ele se ergue que há no poema uma pequena confluência de astros e a rebentação da luz é idêntica à das ondas, as imagens esticadas sob a pele irrompem pelas mãos, abrem janelas sobre os rins, a intensidade do rapaz é então tal que é ele quem põe em branco a página.

Luís Miguel Nava, Películas, 1979

 

Sketch representa um esboço de desenho ou uma cena precisa de um filme. Novamente, portanto, podemos confirmar o caráter altamente pictórico da lírica de Nava, na afirmação do aspeto imagístico presente em tal título. Nesse poema, podemos antever algumas características que irão germinar a lírica de Nava a posteriori. Primeiramente, como já referimos, há aqui o poema em prosa, muito frequente a partir do terceiro livro editado pelo escritor. Com efeito, o ritmo marcadamente lírico dos dois livros iniciais tenderá, a partir de O céu sob as entranhas, a se tornar prosaico e, em muitos aspetos, ganhará um tom cientificista, típico do texto de caráter acadêmico. Portanto, “Sketch” já prenuncia tal vertente em que o poema se assenta em um ritmo dissonante, prosaico e, nesse caso especificamente, fraturado. Outra característica aqui também prenunciadora da estética visceral de Nava é justamente a invasão rumo à entranha do corpo. Em “Sketch”, a luz prorrompe pelo íntimo do ventre, até incidir sobre os rins do rapaz. Também o locus amoenus se desfaz, aparecendo um espaço abstrato, também frequente na obra vindoura do autor, no qual se esboçam fragmentos esfacelados do mundo e do corpo humano, numa espacialização de cunho feérico, absurdo e surreal.

A voz lírica, mais uma vez impessoal, novamente se identifica enquanto um engenheiro da palavra, configurando-se como representação da persona do poeta. Trata-se de um escritor que atua à maneira de um artista visual, mais precisamente de um desenhista. Sua atividade será justamente a de retratar, na página em branco, as formas físicas desse rapaz. A página, portanto, é um sketch, um esboço de desenho, em que a compleição do jovem ganha expressividade. A luz incide sobre o papel e, quando ela é menos forte, as linhas ganham vida e o contorno do rapaz se exprime, enfim, com maior precisão. A água, recurso utilizado para compor o desenho, à maneira de uma aquarela, lava os contornos necessários, para que a figura plástica ganhe vida.

As imagens, movidas pela tensão do poema, prorrompem em cascata, numa verdadeira pletora, formando planos múltiplos, revelando ora o rosto, ora a nudez completa do jovem, em um “nó de imagens”. A presença do silêncio faz um paralelismo ao branco da página, numa sobreposição das artes lírica e plástica. O silêncio e o branco margeiam a figura amada, intensificando sons e formas, numa consubstanciação pictórico-sonora, em que aspetos de uma meta-arte, ou de uma metapoética, ficam explicitados, como os andaimes de um prédio em construção. Há aqui, portanto, a noção de receita do fazer poético, metaforizada pelo próprio ofício do desenhista. O eu lírico desenha para compor um texto verbal, revelando uma postura altamente visualista, uma poética calcada no concreto, fincada no visual que, paradoxalmente, não representa uma mimese da realidade, mas a sua transfiguração. Temos aqui uma mimese da própria obra de arte, num verdadeiro processo em mise en abyme, em que o poema retrata o desenho, e o desenho representa o próprio poema.

Se o locus amoenus se distancia de tal texto, ele, todavia, não está de todo ausente. Aparece, agora, como lugar referido pela comparação: “há no poema uma pequena confluência de astros e a rebentação da luz é idêntica à das ondas”. A luz que tangencia e dá formas às linhas plásticas é semelhante à luz das ondas. A natureza aparece ainda, mesmo que referida artificialmente, como uma imagem a imprimir vida ao texto-pintura.

O final do poema, como um fecho de ouro, é surpreende. As imagens esticam-se sob a pele do rapaz, irrompem das mãos e abrem janelas sobre os seus rins. Isso intensifica a imagem do jovem, ou melhor, dá dinamismo à figura, tornando-a não mais uma representação fidelizada da realidade, mas uma transfiguração onírica, de caráter surreal, tão bem aproveitada por Nava em suas obras mais tardias. Também aqui já podemos perceber o afã de escrutinar as entranhas, vasculhar as vísceras do corpo, num processo de mergulho no íntimo, tão peculiar na poesia do autor de Onde à nudez. O corpo, nesse poema, portanto, é uma mescla de formas decompostas, desfeitas, em que a entranha, as vísceras, o íntimo secreto, o cerne da carne são expostos à luz, numa verdadeira estética da dissecação, da autópsia, tão frequente no Nava de O céu sob as entranhas.

A última frase do poema novamente traz o branco como possibilidade da arte: “a intensidade do rapaz é então tal que é ele quem põe em branco a página”. A intensificação das formas plásticas, adensamento da própria palavra lírica, sublinha o seu avesso, ou seja, o branco, o nada, o silêncio. O poema, o desenho, é uma pequenina flama, uma fulguração que intensifica o inexpresso, o incriado, o avesso de toda criatividade artística. O rapaz, assim, surge novamente como epifania, mas agora malograda, em que a arte é colocada em clave negativa, como mera fagulha cercada pelo desvão do branco e do silêncio.

A exploração do branco da página e do silêncio é recorrente na lírica moderna. Em muitos aspetos, como por exemplo, na poesia de Orides Fontela, no Brasil, é representação de um impulso suicida: escrever não é abrir significados, mas, pelo contrário, é aclarar o nada, o não verbal, a própria morte. O mestre de tal processo é o poeta francês Stephane Mallarmé, cuja exploração do branco da página ganha status lírico e ontológico. O branco e o silêncio contribuem, no processo artístico, com a mesma importância que a própria palavra. Sua obra Un coup de dés é emblemática nesse sentido e, por seu turno, já também desvela um interesse da poesia pelas artes plásticas e pelo silêncio como procedimento também inerente ao fazer artístico. Conforme pudemos notar, Nava provavelmente inspirou-se em tal estética, compondo esse que é um poema dissonante no conjunto de Onde à nudez. Cabe ainda destacar, no poema, o caráter corrosivo da sintaxe, fragmentário, sem uma linearidade lexicalmente fluida. O silêncio, o branco, portanto, invadem o discurso (o desenho), fraturando-o, corroendo-o, dando-nos à luz apenas formas cambiantes, flutuantes de um rapaz a imperar sobre o papel, como um desafio ao incriado, ao próprio nada.

É importante nuançar que “Sketch” é exceção no livro e que na maioria dos textos a visão epifânica do jovem, aureolada pela beleza da natureza, é recorrente e forma um leitmotiv a transpassar toda a obra. Em um capítulo do livro, capítulo esse que se constitui em um longo poema feito de versos esparsos, todos iniciados por reticências, agrupados, parte do tempo, em três estrofes por página, formando grande distância de um verso para o outro, como frases soltas margeadas pelo branco do papel, a figura desse rapaz novamente irrompe, confirmando, enfim, o caráter do corpo como dimensão do erotismo e do amor:

 

... sinto
faltar-me esse rapaz como a respiração.

... esse rapaz
ao espírito do qual as ondas vinham rebentar.

... lembro-me de o seu
sorriso abrir até à água.

... o mar, sentindo às mãos desse rapaz uma janela abrir como um sorriso.

... a língua a interpelar-lhe a pele.

... a pele, sentindo ao fundo
de cada poro seu o mar rebentar.

Luís Miguel Nava, A inércia da deserção. Lisboa, &Etc, 1981

 

Nesse fragmento, o ato amoroso deixa de ser platónico e, como em outros raros momentos do livro, ganha concretude. Nos últimos versos do excerto, a língua pervaga a pele, sentindo no profundo de cada poro, em bela hipérbole, o mar a rebentar. As águas marítimas, índice metafórico da agitação erótica, invadem a pele, numa explosão orgiástica, em que os corpos, transidos pelo desejo, sofrem a combustão do ato sexual. A necessidade imperiosa do amor, sentimento até então pouco antevisto no livro e, de forma lacônica, raramente referenciado ao logo da escrita do autor português, irrompe: o amado é necessário como a respiração. O amor, arquetípico da poesia universal, não deixa de coroar essa poética do corpo, confirmando, enfim, as forças imperiosas do sentimento e do desejo. Também o espaço é fundamental em tal fragmento. O mar abre o sorriso encantado do rapaz, cujo corpo está tramado pelas ondas, pelo sol, pela beleza sedutora de uma espacialidade verdadeiramente adâmica e paradisíaca.
Ao longo de Onde à nudez, a pele é com certeza o órgão corpóreo mais valorizado, formando, em relação ao Céu sob as entranhas e demais obras posteriores, uma antítese. No livro de estreia de Nava, a exterioridade do corpo amado do rapaz é valorizada, esculpida, adorada em ardente paixão. Já em o Céu sob as entranhas e demais livros subsequentes, o que interessa é a entranha, o osso, o intestino, as artérias. Do exterior para o cerne do corpo, a viagem de Nava se traduz, no crescente de sua obra, por uma queda do paraíso, queda essa pontuada pela irrupção de uma falta de fé no amor, deficiência que se configura por uma visão amarga, despida de encantamento.

Tal desencanto ainda está longe de Onde à nudez, e também de Rebentação, livros nos quais o tom sublime, encantatório, nasce como dissonância frente à totalidade da produção do poeta. A confirmação desse tom sublime dá-se pela valorização de um único órgão da interioridade corpórea, o coração. Conforme Bataille, toda “a operação do erotismo tem por fim atingir o ser no mais íntimo, no ponto em que o coração desfalece” (BATAILLE, 2013, p.41). Tal metonímia do corpo, no entanto, por ser metáfora já convencional da espiritualidade, confirma-se mais como um elemento do sentimento amoroso, da emoção que transborda do íntimo, do que imagem da dissecação das entranhas. O coração, dessa forma, é o emblema máximo do amor e ele expressa, na obra de Nava, a verdade do ser:

 

[...] No fundo, nada é ilusório na verdade do amor: o ser amado equivale para o amante, só para o amante, sem dúvida, mas não importa, à verdade do ser. O acaso quer que, através dele, a complexidade do mundo tendo desaparecido, o amante perceba o fundo do ser, a simplicidade do ser. [...] (BATAILLE, 2013, p.44)

 

Há um verso lapidar do livro que exemplifica tal tom sentimental: “A pele serve de céu ao coração” (NAVA, 2002, p. 93). Pele e coração, corpo e espírito tramados, consubstanciados, formando não uma antítese, mas a síntese perfeita de uma experiência que atinge um apogeu, que revela um momento raríssimo da vida, em que o amor, enfim, visita os amantes, conflagrando a comunhão como verdadeira plenitude da existência. Conforme Octavio Paz, tal experiência se dá justamente devido ao caráter eletivo do amor:

 

O amor é atração por uma única pessoa: por um corpo e uma alma. O amor é escolha; o erotismo, aceitação. Sem erotismo – sem forma visível que entra pelos sentidos – não há amor, mas este atravessa o corpo desejado e procura a alma no corpo e, na alma, o corpo. A pessoa inteira. (PAZ, 2001, p. 34)

 

Tal situação se dá porque a sexualidade se transforma, ganha ímpeto criativo e se consagra enquanto amor. Tal sentimento, conforme mais uma vez pontua Paz, é a celebração do mistério que é o outro amado:

 

[...] A sexualidade é animal; o erotismo é humano. É um fenômeno que se manifesta dentro de uma sociedade e que consiste, essencialmente, em desviar ou mudar o impulso sexual reprodutor e transformá-lo numa representação. O amor, por sua vez, também é cerimônia e representação, mas é alguma coisa mais: uma purificação, como diziam os provençais em pessoas únicas. O amor é a metáfora final da sexualidade. Sua pedra de fundação é a liberdade: o mistério da pessoa. (PAZ, 2001, p. 96)

 

Nesse sentido, o amor é libertário, justamente por ser um mergulho no mistério do outro, uma fecunda busca do grande enigma da condição humana. Nos poemas do ainda estreante poeta português, tal sentimento se dá pelo coração e será através da pele que se realizará o coroamento entre corpo e alma, erotismo e amor. A pele, portanto, traduz o sentimento, o coração, e esse esplende o vigor corpóreo, pois o ilumina para além do sexo, na amplitude do espírito. Há um poema que confirma tal feito de maneira lapidar:

 

RAPAZ

 

Não sei como é possível falar desse
rapaz pelo interior
de cuja pele o sol surge antes de o fazer no céu.

Luís Miguel Nava, Como alguém disse. Lisboa, Contexto, 1982

 

Com efeito, o sol não nasce no espaço exterior ao corpo, mas do íntimo da carne e desponta da pele antes de irromper no céu. Essa luminosidade íntima, aureolar, confirma não somente a beleza do corpo, mas sobretudo a visitação rara do próprio sentimento amoroso.

Em outro poema, intitulado “A pouco e pouco”, tal síntese entre corpo e espírito, entre pele e coração, exprime-se pela dinamicidade dos gestos eróticos, pela sensibilidade de um olhar que descerra o amado até o cerne, até o “alcantilado” coração:

 

A POUCO E POUCO

 

Há entre o coração e a pele cumplicidades para cujo entendimento apenas corpos como o dele às vezes contribuem.

Olhando-o nos olhos não é fácil destrinçar do alcantilado coração a cama onde dormíamos, ao mais pequeno sopro o sol parece evaporar-se.

Por esse coração, ainda que escarpado, era, no entanto, fácil alcançar a pele, o mar à força de bater na rocha ia ficando a pouco e pouco em carne viva.

Luís Miguel Nava, Como alguém disse. Lisboa, Contexto, 1982

 

O entendimento entre os amantes dá-se de forma visionária e clarividente. A cumplicidade acontece porque o amado possui um corpo que entende o processo amoroso, um corpo intuitivo, capaz de orquestrar os gestos certeiros, para que pele e coração se consagrem ao momento da entrega. No poema, a proximidade espacial entre cama e coração congrega a síntese entre erotismo e sentimento, entre alma e corpo. Por um olhar fecundo, o eu lírico mergulha na alma do outro, devassando a totalidade íntima do amado. Olhar arrebatado, insinuante, pelo qual deflagramos vestígios de uma pequena narrativa, de uma história amorosa, apenas sugerida, de forma concisa e contundente, pelo jogo da sedução, pelo recorte do poema. O coração alcantilado, feito rocha íngreme, sugere, por seu turno, o mistério desse outro. O eu lírico tem de subir esse escarpado coração, viver os perigos dessa escalada, numa bela metáfora dos esforços da convivência. É pelo coração, por mais íngreme e inacessível, que se alcança a pele, o ato erótico. Por fim, como uma chave de ouro, de efeito surpresa, irrompe a imagem do mar em carne viva, prosopopeia bem afeita à dialética dos corpos em ebulição, dos corpos em embate íntimo, infrene, em atrito, em combustão.

Nos primórdios de sua escrita, Nava, enfim, desvelou uma fecunda confiança no amor, realizando poemas nos quais a luminosidade do ato erótico, consagrado ao sentimento, ganha viva e plena expressão artística. Todavia, conforme já nuançamos, tal perspectiva acaba se esgotando, logo no segundo livro editado pelo poeta. A partir de O céu sob as entranhas, sua obra toma outro rumo, definitivo, no qual o amor deixa de ser uma possibilidade, tornando-se inacessível, distante da vida do eu lírico. Para este, uma vez não mais encontrando no mundo a figura epifânica do amado, resta descer ao fundo das raízes do corpo, num processo de fragmentação da carne, de esfacelamento dos ossos, levando a uma verdadeira via crucis da experiência física e concreta do humano. Essa mudança de cosmovisão gera uma fratura em sua escrita, abrindo sua potencialidade criativa a uma verdadeira obsessão pelas vísceras.

 

Alexandre Felizardo, “A epifania do corpo amoroso na primeira poesia de Luís Miguel Nava”. Convergência Lusíada n.º 33, janeiro - junho de 2015

 

TM Davy, "Fire Island Moonrise", 2018


 

[…] o rapaz, personagem fulcral dos poemas de inclinação mais explicitamente erótica, é, pelo autor, assimilado a um relâmpago: “um rapaz e um relâmpago são a mesma coisa” (1997: 151). Tratar-se-ia de um rapaz-relâmpago, em cujo corpo também incidem o sol e o mar, tal como nos dão notícia os poemas “Na pele” e “Rapaz”. No primeiro, referindo-se aos “rapazes que circulam por Lisboa no verão”, afirma-se que “o mar está-lhes na pele” (p. 95). No segundo, fala-se de um “rapaz pelo interior / de cuja pele o sol surge antes de o fazer no céu” (p. 86). A esse respeito, vale observar o poema “Os pratos na balança” [Rebentação, 1984]:

 

OS PRATOS NA BALANÇA

Por entre as rochas um rapaz, nas mãos levando uma balança, avança em direção ao mar. Vai procurar pesá-lo. Num dos pratos, o mar há de revolver-se, debater-se, rebentar, há -de trazer à superfície a força das entranhas e atrair o céu, há-de-o fazer precipitar até com ele se confundir, e as próprias rochas através das quais o rapaz segue hão-de pesar no prato ferozmente. Imperturbável, o rapaz colocará no outro prato o seu sorriso. 

Luís Miguel Nava, Rebentação. Lisboa, &Etc, 1984

 

O rapaz equivale a um relâmpago, mas equivale também à fusão do céu com o mar. Tão inusitadas comparações ou equivalências nos suscitam averiguar o estatuto desse rapaz, suposto “objeto” do desejo erótico. Em entrevista, o poeta explica que “a personagem do rapaz que tanto surge nos [...] primeiros livros” não “corresponde a alguém de especial”(1997: 153). E, em outro momento, declara que tem “imensa pena”, “antes de mais, e sobretudo, por não poder falar daqueles que amo. Por não poder manifestar-lhes a amizade que lhes devo, ou simplesmente a exaltação de com eles partilhar certos momentos. Se o Dante fosse como eu, ninguém hoje teria ouvido falar da Beatriz” (1997: 152).

 

A poética de Luís Miguel Nava: vem sempre à pele o que a memória carregouCarla da Silva Miguelote. Niterói, Universidade Federal Fluminense – Centro de Estudos Gerais – Instituto de Letras, março de 2006

 




RAPAZES

 

Foi há cerca de um ano que eu

os vi, onde o granito e a luz são consanguíneos.

 

Seguiam abraçados um

ao outro, o pensamento posto no amoroso

lençol de que era na mão deles

o guarda-chuva uma antecipação.

 

Luís Miguel Nava, Rebentação. Lisboa: &Etc, 1984

 

Chama atenção a concisão do poema. Simples, objetivo. Sem muito arroubo ou preciosismos linguísticos. Dividido em duas partes, na primeira, um dístico, seguido por um quarteto. O tom narrativo do poema é marcado pela rememoração expressa pelos verbos nos tempos passados e pela descrição de uma cena que o sujeito observou e guardou consigo, incorporando a imagem como parte integrante de seu corpo.

No dístico, a cena irrompe à memória do sujeito. Para o sujeito, a memória trata de modo visceral todos os efeitos que os sentidos podem proporcionar, sejam eles, fatos efêmeros, representados pela luz, ou sejam fatos mais densos, como o representado pelo granito. Não há hierarquia para a memória, segundo o sujeito do poema. Ambos os efeitos circulam no corpo do sujeito de modo igual.

No quarteto, irrompe à cena um casal de rapazes que trocavam carícias e eram observados pelo sujeito. No entanto, de uma descrição objetiva, do segundo para o terceiro verso do quarteto, temos a fusão do sujeito com seu objeto. O sujeito transforma em palavras os pensamentos dos rapazes. Eles já estariam pensando no momento em que estariam largados sobre lençóis. No entanto, por estarem em local público, a antecipação do toque íntimo entre os corpos acontecia pela projeção do objeto fálico que ambos compartilhavam, o guarda-chuva.

A sutileza com que o sujeito descreve e se coloca no poema é um modo bastante peculiar nas poesias de Luís Miguel Nava. Pensando a tradição lírica em língua portuguesa, podemos afirmar com bastante segurança o lugar subversivo ocupado por esta poética que desestabiliza o discurso lírico-amoroso no ocidente. O usual é um homem escrevendo sobre mulheres, desejando mulheres, projetando mulheres irreais, mulheres que só vivem no papel. Neste poema, vemos a centralidade posta em rapazes, primeiro como objeto de desejo, segundo como seres desejantes. Figuras reais que vivem na memória do sujeito. Este que já se inclui no poema por meio da fusão lírica do sujeito, essa que vislumbra inclusive à desestabilização dos modelos de relacionamento binários.

É interessante notar ainda que a verdade do sexo, que estaria no ordenamento do sexo, ao gênero e ao desejo é desestabilizado na poética naviana, como se percebe no poema acima. Passa ao largo das definições do que seja ser homem ou mulher em nossa sociedade. Já que durante muito tempo acreditou-se que a verdade do sexo residiria no ideal de uma construção social do sexo. Isto é, como bem define a pesquisadora carioca Maria Luiza Heilborn (1997, p.101), a caracterização anátomo-fisiológica dos seres humanos e a atividade sexual propriamente dita. Em outras palavras, a verdade do sexo reside nos corpos dos indivíduos.

Os rapazes não passam por uma hierarquização de seu sexo, tampouco de seu desejo. Apenas vivem-no, experimentam-no. A ânsia é de que cada um consuma o corpo do outro. Os protótipos de masculinidade são dispensados em nome de outros desejos.

 

Sinei Ferreira Sales, Desentranhando desejos e identidades: Uma leitura queer de Luís Miguel Nava. Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2015. Disponível também em https://www.academia.edu/48897242/Desentranhando_desejos_e_identidades_uma_leitura_queer_de_Lu%C3%ADs_Miguel_Nava

 



 

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“Luís Miguel Nava (1957-1995)”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2017-09-29 <https://folhadepoesia.blogspot.com/2017/09/luis-miguel-nava-1957-1995.html>

 



CARREIRO, José. “Os rapazes, em Luís Miguel Nava”. Portugal, Folha de Poesia, 07-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/os-rapazes-em-luis-miguel-nava.html



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